A Dor.
A Dor. A amiga Dor.
Eu a conhecia bem. Desde meu primeiro entendimento como gente lá
já estava ela. Martelando sempre a bigorna da minha cabeça.
Cada batida tão natural e própria de mim igual ao coração
entre minhas costelas.
Podemos dizer que nos tornamos inimigos íntimos. Acostumamos a
viver juntos de uma maneira pacífica, presos na mesma cela por
muito tempo. No meio da inimizade, a qual em campo aberto comandaria um
a matar o outro, desenvolvemos um certo respeito mútuo.
Admiração odiosa e um acordo implícito. Cada um fazia
sua parte. Era questão de boa fé de um dos lados para se
evitar o conflito. Se eu esquecesse de tomar as pílulas que me
aliviassem, a dor se propunha a ser leve, de modo a não me irritar
muito no correr do tempo.
Às vezes, num ressentimento incerto, atribuía a moléstia
à circundante moral que me torneou homem.
Cresci sob a sombra de uma ideologia ruim. O credo de só haver
bondade se houver o castigo. Gira o mundo em torno da mordida da maçã.
Quedamos sempre para a Fossa. Um movimento. A revolução
em círculo. Completude do ômega sobreposto ao alfa. O regresso
à plácida e estúpida imobilidade de Deus.
Era cristão e temia feito um.
Viveria nesse medo até o desterro para a necrópole, se num
dia, em posse de alguns manuais de pensamentos estrangeiros aos horizontes
do meu pecado original, não descobrisse sítios de aterrorizante
Liberdade1 .
Sejam os livros a lenha da Fé ou seu crepúsculo se proclamará
nas páginas livres.
Ao me perceber inteligente demais para acreditar em Deus, sai a negar
quem sempre fui. Primeiro, porque me obrigara a bondade forçada
até então, cogitei em ser mau. Contudo, não consegui
ser maligno. Faltava a coragem para certas maldades mui odiosas e era
trabalho sem recompensa realizar as pequenas mesquinharias. Mais ainda,
por algumas ter feito, causou a mim uma indecifrável coceira na
alma.
Ser bom, no limite, era mais simples e agradável.
Forjei uma lógica pessoal para justificar a bondade, cujo fim era
enfrentar o mundo. Crente de fazer apenas o bem e recusar o mal porque
me era da natureza, fui adiante nessa ética.
E a dorzinha que nasceu comigo também foi.
Minha carne cresceu até o limite do meu corpo. Tornei-me o homem
que me destinavaa ser.
E minha dor de criança se tornou a dor de um homem.
Acreditando que ser bom bastasse para ser o melhor de mim, não
fui brilhante em nenhuma profissão. Não era o protagonista
das grandes empreitadas da humanidade, nem dos fatos a mexer com minha
vida. Todavia, não odiei quem era.
Crendo ser o bem imã para o amor verdadeiro, esperei certamente
me fazer feliz nas maratonas apaixonadas. Essa corrida eu também
perdi.
Nenhuma mulher me amou como a amei.
Sempre fui preterido a aqueles cuja bondade não era a qualidade
prioritária, mas sim a materialidade. Mesmo quando eu entregava
o que tinha melhor de mim feito personagem de folhetim.
Umas riram. De fato, o precipício alheio sempre diverte. Outras,
mais bondosas, desculpavam-se pela minha gafe. Aconselhavam tentar ser
feliz noutra freguesia. Havia aquelas que simplesmente se viravam e iam
em silêncio, rebolando o traseiro, as ancas quais nunca eu provaria.
As carnes inalcançáveis são as mais deleitosas.
E eu não odiei nenhuma delas.
Não fiz família, não fiz fortuna, não tenho
apreço e nem inveja de meus iguais. Sou só. Invisível
no retângulo do meu quarto, à frente de uma tela que me ilumina
o escuro com luz azul.
E não odiava.
Abandonei Deus, mas não abandonei o Homem. Fiel da humanidade eu
fui, apesar dela ter me abandonado em minha cruz, sem ninguém ao
meu lado para perdoar e condenar. Somente a dolorosa companheira de meus
passos não me deixou a mercê do meu apartamento vazio.
Um dia, já certo de não crescer mais e de só restar
encolher até virar o rebento mortuário a ser depositado
no berço da Terra, percebi a dor de cabeça crescer um pouquinho.
Um quase nada. Uma agulhada. Não encarei isso um ato rebelde. Normal.
Com a idade a política do corpo se inclina para o lado da enfermidade.
Não é porque a madeira se faz podre que a larva da broca
se fará menos empreiteira de sua fome. Certamente, apenas estava
doente de Tempo, deformando com os dias.
II
Porém, dada
noite, eu acordei aos urros!
A Dor troara ecoando ricochete nas paredes cerebrais!
Incomodei a vizinhança a ponto de depois ser advertido noutro dia,
como se eu, tão tranqüilo, fosse teimoso reincidente de noitadas
barulhentas.
Ataquei as pílulas. Nunca havia tomado tantas de uma vez. A agonia
parou. Deite-me na cama e antes de pousar no travesseiro, num reflexo
mecânico, revistei-o para encontrar alguma coisa de peçonha,
que possivelmente tivesse me picado a cabeça. Parei e me achei
bobo. Esperava encontrar um escorpião aninhado onde depositava
meu crânio?
A Dor voltou ao seu incômodo tolerável. Um funcionário
público. Velocidade de repartição. Levei o mais prosaico
dos dias e retornei para meu leito a hora de repousar.
Dormi.
Acordei!
Doía mais do que nunca doera!
Dessa vez me controlava em apreço aos vizinhos, em especial a Dona
Elida, a qual, tadinha, sofria de nervoso.
De volta aos remédios. Não tive piedade. Esvaziei o vidro.
Abateria a maldita de uma vez e dormiria tranqüilo e solitário
para o resto dos dias. Ou morreria.
Fiquei tonto. Meu corpo fez menção se livrar do remédio.
Forcei. Não vomitei. Segurei. Lágrimas nos olhos. A dor
se acalmou. Respirei aliviado.
Tentei retornar a cama. Dei alguns passos, quando veio o primeiro chute.
Uma compulsão inédita. A imagem me explodiu dentro das órbitas
fechadas. O jogo de futebol do dia anterior na TV. A cabeça agitava.
Um grande clássico qualquer. Jogava-me para frente e para trás.
Vi o carrilhão quebrando o atleta. A dor era de uma agressão
física. Pênalti indiscutível. Caí no chão.
Gol! Tremi! A hola ergueu e abaixou em sua onda humana e eu finalmente
vomitei.
Livre dos analgésicos, eu adormeci na imundice que veio dentro
de mim.
III
Tempos de paz se
seguiram. Talvez a experiência tenha traumatizado não só
a mim, mas também a ela. A Dor. Doía-se dentro de sua mediocridade
e, às vezes, tinha impressão que minha companheira faltara
ao trabalho.
Receei o retorno do espasmo. Após anos de convivência e até
um certo companheirismo, meu colega de cela surtou e foi além dos
limites estabelecidos da boa convivência. Porém, novamente,
eu dei o melhor de mim numa relação e relevei. Vai ver foi
apenas um dia ruim para ambos.
Resignei-me. De volta à normalidade, para a vida ser o que sempre
me foi, nem boa, nem ruim, apenas reta e sem surpresas...
IV
Surpresa.
Antes do trabalho, na aurora, ia eu tirar os pêlos da minha masculinidade
e esculpir uma apreciável cara estéril para a clientela,
quando parei, dando pela novidade.
Não sei a data exata do começo. Deve ter se iniciado uns
dias antes, quando a dor se tornou mais presente, mostrando um leve esforço
para se sobressair em sua produção de flagelo. Com a lâmina
da navalha pousada no pescoço, prestes à devastação,
descobri.
Minha cabeça crescera.
Como a Dor.
Devia ser engano. Impressão. Paranóia de despertar. Fui
trabalhar. Mais uma vez, na semana seguinte, à frente do espelho,
a mesma percepção. Uma bobagem imensa. Ri-me, mas mordi
a unha do meu polegar como se isso me curasse da preocupação.
Fui vigilante. Todo dia conferia as dimensões do meu estojo mental.
Cheguei ao cúmulo de passar na loja ao lado do ponto do ônibus
e adquirir uma fita de medição para alfaiates e costureiras.
Passei a tomar notas num caderninho.
Dados são cruéis. Um centímetro. Toda segunda-feira
a circunferência de meu crânio ganhava um centímetro.
Desesperei-me. Deu na imaginação o Homem Elefante:
Se na Índia tivesse nascido marcado com a elefantíase, o
deformado seria sagrado. Seus mais singelos movimentos no sono observados
como vaticínio para o futuro das nações. Se respirasse
calmamente e se virasse tranqüilo no conforto do leito, a Terra seria
boa; caso se agitasse, os maus tempos estariam por vir.
Entretanto, nasci aqui. Se me calhasse de ter um cabeção
torto, apenas restaria viver na ostra de um asilo ou no mafuá da
estrada. Nunca mais ver alguém, menos do que eu via, ou assistido
por todos em um palco perfumado de algodão doce e desprezo de platéia.
Fui ao médico.
O doutor me atendeu sem aquele respeito que se tem pelos clientes particulares.
O hospital não era público, mas meu convênio médico
era próprio ao meu parco salário. Tinha-se a rapidez do
sistema pago sem perder o desdém dos médicos cansados das
jornadas ingratas dos sanatórios para o povo.
Ele era notavelmente branco, barrigudo e desprezível. Ouviu impaciente
o conto da minha descoberta. O sorriso de fumante amarelo-câncer
entre os bigodões fazia me sentir uma vítima da idiotia.
Aconselhou deixar para lá e receitou analgésicos mais fortes.
Quase acatei. Porém, a Dor acordou. Exigi. Ele perguntou para que
exames se nós sabemos assim de vista não haver nada de sério
acontecendo. Invoquei o sagrado direito do consumidor. Blasfemei dentro
daquele templo alvo e azulejado? Não sei. Os olhos do barrigudo
me fizeram ter a certeza que se ele fosse me cortar as verrugas das costas,
por um lapso qualquer terminaria eunuco.
O médico me mandou colocar fios leitores de eletricidade nervosa
na cabeça, e a máquina não viu nada de importante
dentro de mim. Tomei sermão pela Medicina perder tempo com desconfianças
de gente que não tem nada o que fazer.
Mas a Dor crescia simetricamente ao diagnóstico do espelho. E com
elas, minha coragem. Voltei ao consultório e bati forte. A barriga
indolente me mandou ao raio X, tirar sangue e recolher a merda. Fui. O
sangue não disse nada assim como os excrementos. Faltava a chapa
do crânio.
Tirou o plástico preto do envelopão amarelo. Colocou contra
a luz do teto. Ele não acreditou. Soltou um palavrão. Afixou
a impressão radioativa sobre a caixa de luz branca.
Eu vi e não acreditei também.
V
Cheguei em casa ciente
que deveria voltar para ser exposto outra vez à desencarnação
radioativa. Não era estimulante. Podia reclamar da perda de tempo,
privando-me de atividades mais agradáveis ou necessárias
para desvendar meus males; todavia a questão era não haver
nada mais a fazer de minha vida além disso e do meu automatismo
rotineiro. O lado bom - ter algo novo digno de nota a me ocupar o tempo
- no entanto, perdeu-se na inquietação.
Sentei no sofá velho e comecei a tirar migalhas do seu couro leproso
esperando alguma coisa se pronunciar.
Senti as desvantagens dos homens vivos diante dos ficcionais. Nas histórias,
surge sempre alguém a ligar toda a trama dando um quadro, enfim,
apreciável. Os fatos produzem o tão esperado sentido. Alivio
dos protagonistas, livres do temor de suas vidas serem regidas pelo caos.
Isso quando os próprios heróis não são sagazes
natos e fazem eles mesmos esse serviço.
Como nada falou e eu não era herói, fui ver a prova da incompetência.
Peguei a chapa rejeitada e olhei à luz do teto e, mais uma vez,
vi que minha mente estava grávida.
Os ossos de um homenzinho deitado à maneira fetal jaziam na minha
cabeça.
VI
O médico explicou
o absurdo reclamando da reutilização das chapas de raios
X seguidamente e de como isso pode afetar diagnósticos e comprometer
os profissionais sérios da Medicina. Certamente, sondaram com radiação
os interiores de uma futura mãe e a prova de sua semente verteu
para meu exame, uma prática econômica, mas causadora de vexames
como esse...
Perguntei estranhado se não é danoso tirar chapas de mulheres
grávidas. Se não afetaria a prenha e a cria, legando a esta
a degeneração das células. Afinal, césio não
faz perder os dedos, os dentes e os cabelos, sob a ascendência do
câncer?
A baleia branca rosou. Coçou a cabeça. Olhou-me com desejos
maléficos. Rebaixei-o ao que era. Desconversou e me mandou voltar
no dia seguinte para corrigir a trapalhada. Só para troçar,
pedi a prova de minha gestação cerebral.
Em casa, revendo o caso, fiz algo que há muito não fazia.
Gargalhei. Ruidosamente. Sem me importar com o estrago à paz do
prédio. Só havia a comédia da consulta e o palhaço
do médico barrigudão. Ah! Eu era a audiência satisfeita.
Lembrei da necessidade de pedir outro atestado para o dia seguinte e fui
me recolher sobre o cobertor. Fechei os olhos. Outra lembrança:
não sonhava não sabia desde quando.
Se me perguntassem um sonho, falaria os das noites infantis, algo da puberdade
e nada da maturidade.
Era eu um homem sem sonhos?
A febre me despertou. O cobertor não bastava. O frio me fez tremer
o esqueleto. Levantei e abri a morada das traças. Cobertores velhos
não perdem a utilidade. Precavido, mediquei-me e novamente, por
hábito, tal qual se mexe com a língua um dente dolorido,
fui medir a cabeça.
Ao confirmar a métrica, gelei
Não lembrava de cair. De me machucar. Revirei a cama em busca de
uma tesoura ou qualquer treco cortante. Na minha testa, já grande,
riscou-se uma cicatriz.
Era reta, perfeita e vertical. Toquei-a com cuidado. Não estava
dolorido. Uma cartilagem macia e úmida a cercava. Apavorado fui
pegar desinfetantes e bandagens. Depois iria para a emergência e
eles me costurariam. Por ora, eu me tamparia.
Joguei o desinfetante e aguardei o ardor. Ardeu. Ardeu mais do que se
esperava. Memória. Eu. Menino curioso. No banheiro. Durante o banho.
Fui mexer na colônia do pai e molhei minha genitália com
gotas cáusticas de eucalipto e álcool.
A tontura vem depois da lembrança. Cambaleei. Respirei forte. Não
sei porque, respireii forte, como se ar me faltasse, como um reflexo,
uma reação natural do corpo ao momento exótico. Aspirei
e soltei. Repito e repito. Cada vez mais enérgico.
Já estava na cama, quando a dor maior, a maior de todas, a grande
mãe de todo o sofrimento nesse mundo de Deus veio em uma violência
singular!
A cabeça expandiu. A cabeça contraía. Fechava-se
em si, buscando a desintegração. A expulsão de sua
substância. O avesso. O vômito. O escarro. O gozo. O pólen
navegando no ar para a preservação da vida e da alergia.
A fenda inchara, formando dois grossos beiços paralelos vermelhos
de batom carnoso de puta ao redor do regaço; da maldita evaginação
escorreu um líquido amargo que me cegou.
A Dor, então, arregaçou os limites de minhas fibras.
Era somente um homem! A natureza não me preparou para aquele martírio!
Desfaleci.
VII
Pela primeira vez
em anos, sonhei. Ou lembrei de um sonho.
Dizem que sem sonhos só há loucura; pois quando renegados
eles escapam pelo ladrão e grudam nos alicerces do mundo como fungos
famintos de fantasias científicas da Guerra Fria, comprometendo-os
e afundando o nosso chão.
Estava nas cadeiras de um teatro de cortinas vermelhas esperando um espetáculo.
A platéia era de gente a mim familiar, contudo, naquela hora, desconhecia
as identidades. Nada acontecia. Entretive-me a observar os detalhes da
arquitetura onírica. Uma bela casa. O foro rubro crepusculava.
Olhei o público. Notei em meus colegas que tanto a pele, os pêlos,
o humor vítreo, os dentes e os tecidos que os cobriam na forma
de trajes galantes eram todos da mesma textura: Quadros televisivos iludindo
o olho a 30 vezes por segundo em riscos horizontais de cobalto.
Apenas eu era de carne no meio da multidão de luz de televisão.
Sentia-me preto na USP. Meus colegas me ignoravam como se fosse da mesma
qualidade deles ou como se estivesse ausente. Não me abalei.
O incômodo de fato era a emanação elétrica
vinda pelo corredor entre as cadeiras, de trás da cortina que separava
o teatro do mundo exterior. Erguia me o pêlo feito um gato acuado.
Havia alguém lá.
Começou o espetáculo. No palco, entrei eu.
Eu estava lá. A mercê de todos. Roupa preta de gala. Ao mesmo
tempo em que estava cá. Sentado na arquibancada, admirando-me.
Cumprimentei. Palmas. Aplaudi e cumprimentei. Fui iniciar a canção.
Antes da primeira nota, uma arma atirou, acertou a cabeça, não
havia Jaqueline K. para me amparar e eu caí no palco me agarrando
ao microfone antigo. Levanto na platéia. Correria. Olhei para trás
em direção à cortina da saída. Ela se abriu.
Emanou a luz fabricante de cegos. Vi um vulto de nanquim de polvo em seu
centro, cheirei o perfume de vísceras de matadouro e acordei.
VIII
Movia-me com dificuldade.
Os lençóis e cobertores grudavam na minha pele, puxando
os pêlos atados ao emplasto, cujos componentes do adesivo, depois
atestei, eram do engenho do meu corpo.
Haviam secado e fizeram uma casca de ferida sobre mim e a cama. Um casulo
coagulado de um grande inseto.
Movi-me com dificuldade e me desintegrei da carapaça do vômito
seco. De novo, passara mal e me livrara do que havia dentro.
Cri.
Entretanto, dessa vez botei para fora sangue e pedaços de mim.
Lembrei da chapa radioativa e lembrei do câncer. Estaria desfazendo-me
por dentro, vítima das degenerações do meu humor?
Precisava ver o médico. Urgente!
Escapei da cama e vi o estrago. Odor abortivo. A náusea reinava.
As moscas, seguidas pelas formiguinhas, estas em filas e aquelas em bandos,
já tinham vindo conferir o evangelho da carne. A boa nova era que
mais nenhum artrópode carniceiro passaria fome, pois Deus é
bom. Fizera o maná sair de mim e tornou meu quarto a Canaã
da porcaria.
O chuveiro haveria de me limpar. Caminhei a principio fraco para o banheiro;
depois de passos, no entanto, as juntas despertaram. Dei por mim. Estava
em pé triunfante! Dei por mim e era um homem ereto, uma ereção
inédita em minhas memórias. Sem nenhum motivo, a não
ser minha redenção física, sorri bobo.
Mas no meio da festiva saúde, veio a sensação. A
ausência. Faltava alguma coisa. Bateram minha carteira. Verifiquei
o bolso ausente do pijama. Nada. Esquecera de levar algo comigo, que sem
qual, sentia-me despido. O que era, o que era o que eu tinha perdido?
A Dor.
A cabeça não doía!
Sentia a vida sem dor, pensava sem dor, respirava sem dor. De repente
tiraram a quenga do cavalo, após anos de arado. Não ousei
me conter. Pulei. Um tolo bêbado. Saltei! Dei viva à vida!
Risos, lágrimas e glórias. Sem duvida, fui um abençoado
idiota nessa hora!
Ao espelho. Vi-me. Limpei-me. Medi-me. Comparei as notas do caderno. Perfeito!
A cabeça desinchara. Não voltou ao original, porém
diminuiu bastante. Eu não seria mais o homem-elefante. E a cicatriz...
Não havia cicatriz. Somente um risquinho raso.
E a alegria.
E no meio da alegria, parei. Olhei o espelho. Olhos arregalados. Boca
aberta.
O abandono. O abandono subiu pela minha espinha ao ritmo de uma lagarta
urticante. Mil agulhas nos nódulos. Acupuntura do medo. Excluído?
Deserdado? Excomungado? A palavra certa é excomunhão. Algum
deus me baniu de sua presença.
O inferno é o horror da ausência2
.
Perdi alguma coisa e tive medo...
IX
O doutor olhou a
nova chapa.
Uma chapa debutante. Nada mais de enroscos com impressões anteriores.
O vaticínio veio sem gentilezas. O açougueiro medicinal
atestou meu bem estar e minha implicância em fazê-lo trabalhar
por um pagamento injusto. Não importei com a aspereza do gordo.
Estava ainda encantado pela alforria do sofrimento.
A cabeça recuara ao seu tamanho normal e, nas patas do porco, via
só um crânio vulgar. Minha simples cachola. Se a vida terminasse
naquela hora, naquele consultório, seria esse um final feliz para
mim, mesmo sem princesa e acompanhado pelo ogro da má vontade.
Mas ainda não me acabei.
Voltei para casa. Sem doer, a vida era maior. Ampla, arejada e aberta
às grandes possibilidades. Tecia planos de ressurreição
dentro do ônibus. Cada ponto de poluição de informação,
cartazes, anúncios, homens sanduíches em busca do ouro e
dizeres comerciais das avenidas me intoxicavam de inspiração
pessoal. Excitavam. Eram meu pôr-do-sol comercial. Redesenhava as
linhas do destino em minha mão. Poderia tudo, faria tudo e seria
único. Amém.
Limpei o lar dos meus expurgos. Os lençóis ensangüentados
foram para o lixo, junto com o irrecuperável colchão. Esfreguei
o chão cantando e vez ou outra bailei com a vassoura. Quis a casa
perfumada de cloro e esterilidade. Um novo homem nasceu. Viva eu!
Parei cansado, quando a euforia se foi e restou a dor dos músculos
sedentários. Admirei o trabalho feito e apreciei essa dor, sabendo
ser passageira e que voltaria logo ao paraíso do não sofrer.
Sorrir para mim mesmo, por mim mesmo, tornou-se um vício novo e
recorrente. No entanto, recolhi meus dentes ao perceber a mácula
da limpeza. Uma trilha da gosma persistia no chão, próximo
ao rodapé da parede. Teria me esquecido? Fazer o quê, e fui
limpar.
O caminho ainda fresco e pastoso enganaria como os rastros de algum grande
molusco saído debaixo da pedra. Curioso como só lá
havia frescura, enquanto no resto tudo secou em casca e coagulo.
Sem o sofrimento para me ocupar, o tédio me impulsionava a inventar
tarefas nas horas de folga. Propus-me a ler uma quantidade de boa literatura
por dia, a fazer um belo esforço em exercícios e a limpar
a casa. Mente, corpo, cama e mesa, tudo são.
Confesso, porém. As preguiças mentais e físicas me
demoveram das primeiras tarefas, No entanto, o asco de panelas sujas e
minha alergia a poeira me capacitaram a ser excelente dono do lar. E,
investigando como inspetor da higiene, descobri não estar mais
sozinho em casa.
Havia ratos.
Não era de se espantar, se meu fluído atraiu insetos, porque
não serviria para os roedores? O primeiro sinal tinha sido a trilha
pegajosa. Certamente, vieram pastar em meu regurgito e se sujaram. Ao
retornar para seus refúgios marcaram os caminhos. O segundo foi
a invasão à despensa.
As coisas estavam reviradas. Sacos roídos, contêineres rompidos,
alimentos corrompidos pela baba dos bichos. Joguei muita coisa fora. De
certa forma me admirei do gosto das coisinhas nojentas. Saquearam os biscoitos,
a goiabada, os pêssegos em calda, as salsichas e sardinhas enlatadas,
as frutas, o açúcar e o leite. Tanto o arroz como o feijão
foram poupados. A farinha de trigo também. Nada cru foi tocado.
Nada que precisasse de cozimento ou outro tratamento para nós homens
comermos.
Limpei a despensa. Procurei os buracos por onde os saqueadores entraram.
Nada. Reabasteci os alimentos e os suspendi em prateleiras para dificultar
o saque. Acreditei estar tudo certo.
Não estava.
X
Sonhar já
não era mais novidade.
Caminhava eu por um túnel úmido, cavado na terra para uma
fuga de onde? Na hora, era -me incógnito. Não. Não
caminhava. O buraco era pequeno. Rastejava. Fazia tão bem como
se os cotovelos me fossem o motor mais natural.
Certo momento, o mundo aumentou. Num esforço de colosso, pois das
articulações ainda não era o dono, ergui o pescoço
e me encontrei numa galeria com espaço bastante para andar sobre
a sola do pé. No entanto, podia apenas me arrastar. Continuei.
Minha pele era resistente ao atrito com o chão e frágil
ao toque da luz vinda da boca da cratera.
Estava numa cratera. Sabia lá se feita pela queda dos astros ou
pelo espirro da terra; mas acima, com certeza, estava o céu, o
dia e a minha vida. Lá fora havia água e comida. Pus-me
a escalar os paredões e me decepcionei com a fraqueza de minhas
carnes moles. Sonhava, de certo, ser um homem, mas carregava a moleza
e os anéis das larvas. O verme escorregou impotente até
o chão.
Teria desistido se não fosse a fome nascida do perfume de iguaria
vindo de cima. Ele me ergueu. Anzol enfiado no nariz. Estava de pé,
feito Adão da lama ou Tarzan dos macacos. Garra a garra, vitória
a vitória, o cheiro da sobrevivência forçou meu corpo,
naquela hora forte, a trepar na muralha...
Acordei intrigado.
Sonhos não têm cheiro.
Pode-se ver num sonho, pode-se ouvir num sonho. Porém, o nariz
descansa. Sentado na cama, remoía o fato. Teria inaugurado nova
variação de sonhar? Sonhos cheirosos, fedidos ou perfumados.
Técnica minha exclusiva. Ia patentear e comercializar. Aprenda
por tanto e torne suas noites mais divertidas e eu rico.
Suei. Corpo cheio de gotas. Todas as noites. Teria uma nova companhia?
No lugar da cabeça recalcitrante, um corpo febril. Sede. Fui até
a cozinha. Um copo de água gelada. Talvez depois uma chuveirada.
Relaxar. Sem acender luz, sem machucar meus olhos, segui pelo caminho
familiar. Bati os joelhos nos moveis. Cinzel no escuro. Ai. Calma. Preguiça
em caçar o interruptor. A luz fria da geladeira bastaria para guardar
o trajeto e voltar à cama sem pancadas.
Entretanto, o recinto já tinha seu farol. Hum! Pisei em liquido
gélido e depois em geléia de coisa amassada.
Rápido. Acendi a luz da cozinha. A porta da geladeira estava aberta.
O gelo derreteu. A água fria inundou o chão. Mais. A maquina
fora saqueada. Comida caída no assoalho, espalhada, espezinhada.
Dentro, o que sobrara estava roído. A carne, especialmente a carne.
Rastros claros dos dentes.
Impressionante. Ratos audazes.
Não se tratava de simples convivência ou parasitismo. Lutava-se
pelo espaço vital. Sem problemas. Se expurguei a dor de minha cabeça,
faria o mesmo com os ratos de minha cozinha.
Mas tinha dó. Um dos meus pecados cometidos contra mim era a clemência.
Quem dera possuir a impiedade e a satisfação cruel dos legítimos
ateus. Era um descrente que não praticava. Tinha pena dos ratos.
Disse ao vendedor da loja de animais quando me mostrou as ratoeiras e
os venenos. O homem riu. Ter compaixão pelos gatos e pelos cachorros
era comum, mas dos roedores... Esquisito. Entretanto, há de se
fazer alguma coisa?
Pedi o método de efeito mais rápido e menos doloroso. Apresentou
uma ratoeira com espinhos de ferro cravados no lugar onde o pescoço
seria pressionado pela haste da mola. Justificou. Uma ratoeira lisa faria
o bichinho agonizar aos gritos e espasmos por momentos sem fim, se este
tivesse o azar de apenas estrangular ao invés de quebrar o pescoço.
Na outra, espinhosa, a morte seria ligeira, pois além do golpe
e da asfixia, ainda se perfurava a vítima.
Comprei e espalhei pelos cantinhos escuros da casa com um queijo de isca.
Como nos desenhos da TV. Queijo bom. Meio caro até. A última
refeição do condenado deve ser digna e primar pelo capricho.
No fundo, mesmo exterminador, ainda era anjo bom. Esperei, feliz comigo
mesmo.
Na cama, olhei para o teto. Já estava acostumado à ausência
do sofrimento e procurava suprir seu espaço com pequenos afazeres
de prazer. Masturbava-me homenageando amores passados e mulheres de silicone
e celulose. Ou esfregava as pernas debaixo das cobertas para sentir a
maciez reconfortante dos lençóis. Hábito de infância.
Foram horas. O sono veio lento. Batia leve o torpor. Apaguei...
Acordei. De súbito. Tremi. Um alerta. Algo a acontecer, o qual
não podia nomear. Culpa pelo massacre dos ratos? Me envergonhei.
Mesmo para a bondade há limite, depois rolamos para a vala da bobagem.
Cobri o rosto num pânico vexado. A bexiga reclamou. Apertado. Fui
aliviar e, ao pisar fora do conforto da cama, gritei.
XI
Um animal!
Certeza!
Um animal pequeno e dono de uma brutal força na boca. Os Ratos.
A peste se levantou contra o exterminador. Atentei contra eles e agora
cobram meus dedos. Desesperado. Busquei arrancar a criatura de mim. No
entanto, quanto mais puxava, minha carne mais se rasgava. E se não
fosse um rato? A mãe falava do nosso pequeno cágado. Nunca
deixar o réptil me morder, pois de sua mordedura não há
soltura, salvo a decapitação do bicho ou a mutilação
do meu membro. Era, ao mesmo tempo, medo por mim e, novamente, dó
da besta. Todavia, não tinha cágados. Somente ratos e era
impossível um rato morder assim, concluí sei lá porquê.
Havia de ser outro bicho? Lembrei das histórias e sensações
vis sobre os monstros a fazerem sob as camas seu covil e o ardil para
meninos mijões. Há muito não era chamado de menino
e nem mijava no colchão. Além disso não existem provas
cientificas desses pavorosos hóspedes.
Somente dentro dos corações e mentes, como veria adiante.
Por fim, me acalmei. O agressor não se mexia. Seria meu sangue
venenoso à sua espécie, de modo a matá-lo na primeira
mordida? Morreu me abocanhando feito a cabeça da cobra de um programa
de curiosidades inacreditáveis que ainda morde depois decapitada,
lorota na qual nunca acreditei até aquela hora que escapou das
minhas memórias e veio me pegar o pé.
A mão ensangüentada examinou a coisa. Era fria feito metal.
Abri sua mandíbula de mola e verifiquei com os dedos existir na
parte inferior dentes finos. Na parte de cima era banguela e fina.
Estiquei a mão e acendi a luz deixando uma digital vermelha no
interruptor. Confirmei a expectativa. Caí na própria armadilha.
Segurava uma ratoeira.
Espanto. Armei todas longe do quarto e da minha passagem. Em lugares seguros.
Procurei, sem saber o motivo prático, onde estaria a isca de queijo.
Não estava em seu descanso no aparelho. Olhei no chão. Devia
tê-la derrubado em meus pontapés. Procurei-a. Não.
De forma alguma achei o queijo. Entretanto, maior foi a descoberta.
No caminho, da cama à porta do quarto, havia, à espreita
dos meus pés, uma trilha de ratoeiras. Todas sem queijo e prontas
para disparar seus mecanismos de morte.
XII
Estava certo.
Eu era apenas um único personagem no meu espetáculo onírico.
Em todos os sonhos, havia um peregrino a correr por um mundo nebuloso
e solitário, ora labirinto arquitetado, ora galeria cavernosa,
permeada de edificações gigantes erguidas por entes antediluvianos
e insondáveis.
Desses um sobreviveu. Sabia. Dormitava nalgum lugar. Persistia, pairando
no ar, ozônio hostil, a inimizade das duas espécies entre
nós concorrendo pelo direito do mundo.
Vez o via.
Ora uma extraordinária baleia cachalote hibernando sob o mar, ora
um titã adormecido, petrificado em montanha no sono imortal, ora
uma coisa sombria de respiração pausada e tranqüila.
Óbvio. Seu despertar era meu fim.
Pânico e rancor. Teci contra o nemêsis mil atentados. Rudimentares.
Inúteis. Inócua a sua força. Na ficção
noturna, percebia-me pequeno e estúpido; no entanto, aconselhava
a voz intestinal, se permanecesse vivo bastante, se a grande fera sonhasse
o suficiente, poderia escalar alguma evolução pessoal e
me equiparar ao seu poder de deus.
E, até, superá-lo.
E destruí-lo.
E, desperto, desistia de organizar minha vida.
XIII
Perdia a batalha
para os ratos.
As coisas reviravam em casa. Camundongos poltergeists. Espíritos
sujos. Irritantes. O saque de alimentos, fato constante. As mesmas características
contínuas. Apenas a comida já cozida ou que pudesse comer
sem cozer. E carne. Ah! Fui premiado com ratos exclusivistas, com cardápio
caro e requintado. Seria a compensação pelas roupas e papeis
intactos, apenas remexidos como se por intrometidos investigando o que
dizia respeito só a mim?
Os venenos e as ratoeiras se mostraram ineficazes. As traquitanas em meu
quarto foram os primeiros de uma série de exotismos a ocorrer.
Noutra vez preparei um tanto de comida temperada de veneno ao lado dos
mantimentos, estando estes erguidos na prateleira e aquela no chão.
Cri ser mais fácil para um roedor atacar o veneno a ter de escalar
a parede. Os ratos, não. Eles foram direto à parte suspensa,
sem ferir a outra.
Cabeça quente. Hum. Resolvi comer também. Pus a sopa de
lentilhas no prato sobre a mesa e fui buscar o pão que eu deixara
da sala. Ao voltar, sentei-me, piquei o pão e antes de colocar
a primeira colher na boca vi três pontinhos cinzas perto do prato.
Três grãos de veneno de rato que eu não havia deixado.
Vasculhei a sopa em busca de formas parecidas. Impossível distinguir
entre a lentilha. Joguei a sopa na pia e comi o pão seco.
Irritado.
Fui ter com o senhorio. Considero-me um inquilino exemplar. Tolerante.
Servil. Hum! Nunca atrasei nada. Nunca incomodei ninguém. Mesmo
quando me incomodavam com as festas e com as contendas domésticas.
Satisfeito comigo mesmo, levava minha vida em casa. Um discreto misantropo.
Tanto que o senhorio vivia esquecendo meu nome.
Reclamei dos ratos.
Disse-me surpreso. Que em muito tempo eu era o primeiro a reclamar disso
e que ninguém mais o fizera. Seria só eu o felizardo? Vejamos
os vizinhos do corredor.
À esquerda, Dona Elida. Fraquinha. Transparente. Pele arenosa.
Uma velhinha de cristal. Ela segurava a vida pela linha do crochê
que tecia. Agradeceu a Deus por não ter em casa esses transmissores
de moléstias. Além de contaminá-la iam fazer aumentar
seu nervoso. Via-se que seu nervoso era capaz de desmontá-la músculo
a músculo. Então, rolaria em bolinhas coloridas pelo corredor,
dissipando-se para sempre.
Falou-me também - menos uma reclamação, mais um pedido
de desculpas por uma falha minha - não conseguir dormir pelo barulho
de toda noite de meu lado, arranhando o chão, e, mesmo sabendo
como é difícil conter o fogo jovem, solicitou um pouco de
piedade silenciosa. Não havia como não sentir culpa pela
decrepitude da senhora, mesmo sendo eu inocente de sua decadência.
Culpei os ratos do barulho e os dois me olharam acusadores de que eu mentia.
À direita, os Alípios. O casal brigador das sextas-feiras.
Não quebravam os pratos. Menos. Carlo e Luana começavam
uma discussão em voz alta por qualquer motivo. O motivo sempre
é pequeno diante da paixão pelos esportes de pugilismo moral.
Às vezes nem sequer havia. Progrediam em som e fúria até
a voz do marido, denunciadora de sua força, suplantar a mulher,
a qual se recolhia em silêncio. Nalgumas noites carentes de sossego,
chateado, torcia para um matar o outro em nome da civilidade e do descanso
público. Ai ficava culposo, torcendo novamente, para meus pensamentos
não terem o poder de prover a tragédia.
Luana abriu a porta e vi ainda estar viva.
Olhou para nossos rostos e depois encarou nossos pés. Foi bonita.
Tinha o ferruginoso viço das criaturas da inércia. Via-se
bem. Seus seios não murcharam, suas ancas ainda convidavam à
perpetuação de nossa raça. Podia-se derruba-la no
chão em busca de alivio. No entanto, não há tesão
que supere a pena.
Ela já deve ter sorrido. Deve ter sido outra pessoa em algum dia,
em outra vida. Matriz da inveja nas mulheres em sua órbita. Cedeu
lugar para a desastrosa empresa da piedade. Naquela, hora, ela olhava
para o chão, pedindo esquecimento.
Inquirimos sobre os ratos. O tom de voz era mono e não havia ratos.
Só uns barulhos. Achei que ela ia reclamar dos supostos arranhões
em meu apartamento. Contudo, por sua vida matrimonial não ser um
exemplo em silêncio, não me incriminou.
Agradecemos, nos desculpamos e fomos pelo corredor. O senhorio me perguntou
se realmente eram ratos e se não podia ser impressão. Não.
Falei das provas físicas. Os ataques à geladeira e à
despensa. Admirou-se. Nunca ouviu falar de ratos furtando geladeiras.
De soslaio, vi Luana nos observando com o rosto encostado no batente.
Mais preciso: observando-me. Um sorriso reviveu aquela outra pessoa quem
um dia ela fora.
Movi a cabeça para trás. Ela recolheu os dentes e depois
a si mesma para dentro do apartamento. Era mais jovem do que eu. Se não
fosse calejado da recusa recorrente, da dor amorosa, do desprezo, eu comia.
O senhorio não achou ser caso de se preocupar com infestações
no prédio, porém concordou, melhor prevenção
do que remédios. Ia alugar apartamentos. Não convinha, ao
apresentar o lugar, os novos inquilinos toparem com hóspedes imprevistos.
Chamou um aniquilador profissional, de macacão, furgão e
método.
Revistou o edifício. Nada. Era bem feita a estrutura. Não
havia entradas de esgoto, esconderijos e lixo que servissem de comida.
Sem abrigo e alimento, só um santo rato para sobreviver em meio
a tanto ascetismo.
Quis garantir. Inspecionou meu apartamento. Mostrei-lhe os pontos onde
os ratos atacaram. O homem de barba grisalha admirou a precisão
dos bichos. Atacaram a comida e nada mais. Fios de cobre e outros materiais
brilhantes estavam intactos.
Observou as paredes. Nenhum buraco. Nenhuma rachadura. Encanamento perfeito.
Não havia tranqueira bastante para os ratos se aninharem. Elogiou
minha limpeza e senti a piada sobre a minha masculinidade. A hombridade
é relativa à sujeira e não havia nenhuma para a morada
dos meus atormentadores. Não havia fezes também, nem mijo.
Enfim, perguntou-me se eu já vira esses ratos.
A negativa foi respondida com um sorriso que eu desgostei.
Todavia, seu tempo fora pago. Assobiando músicas vulgares, semeou
os grãos da morte. Enquanto depositava os venenos, eu acompanhava
seu trabalho. Volta e meia, palestrava sobre os cuidados e os males dos
ratos. Fingia prestar atenção, quando vi.
Um rato?
Alguma coisa no canto escuro. Próximo ao armário. Sentiu-se
flagrada. Rápido. Sumiu na sombra. Chamei o exterminador. Nos movemos
o armário e esperamos sair a criatura. Não saiu. Impressão.
Para garantir, deixou um veneno no lugar.
Quando ele terminou e se foi, reduzi meu universo a mim mesmo. Sentei
na cadeira e concluí não estar aproveitando a ausência
da dor e, sim, gastando a liberdade com ratos. Me irritei. Um problema
mesquinho atrás do outro me emperrando. Nem grandes dilemas, nem
perigosos desafios. Continuava coadjuvante.
Ia deprimir. Não podia deixar. Era-me pesado demais para fraquejar.
Se me permitisse ruir, a ruína seria total. Precisava de outras
coisas a pensar. A cabeça era oficina. Precisava de matéria-prima
nova para talhar esperança. Fechei os olhos. Desanuviei. Tudo estava
leve.
Olhei para armário. Me esforçando enquadrava o veneno no
meu olhar. Esperei ter a sorte de ver o rato retornar e comer seu fim.
Voltei-me ao vulto. Engano. Não. Vi o rato. Separei a imagem da
memória. Decupei. Defini o rato. Se era grande... Era grande. Uma
ratazana. Grande. Demais para uma ratazana. Não. Existem ratazanas
do tamanho de gatos. Mas mesmo se fosse uma ratazana do tamanho de um
gato ela não andaria como homem. O bicho estava apoiado no armário,
sustentado pelas pernas traseiras como fazem normalmente.
Jurei ser um rato grande como um gato erguido nas pernas de trás
que saltou quando avistado, sem menos, sem mais, e uma voz minha me questionou.
Pois jurava também, ao invés de ser um imenso roedor, lembrava
mais um pequeno homem que desapareceu nas trevas.
Solitário e acuado, quase senti falta dos conselhos da Dor.
XIV
Aprende-se de tudo.
Aprendi a conviver com os ratos. O veneno do profissional se mostrou ineficaz.
Meu apartamento continuava o único alvo, logo não tive coragem
para cobrar mais providências do senhorio.
Sosseguei.
Neurótico. Estava alarmado com a possibilidade de contrair peste
bubônica ou raiva, porém, quase decepcionado, nunca estive
tão saudável.
Sem a Dor me carcomendo, adquiri uma inédita disposição.
Produzia como nunca. Selecionava problemas departamentais perpetuados
por anos pela preguiça trabalhista. O chefe gostou, meus colegas
não. Fui promovido e odiado na seção.
Amparado por esse novo poderzinho de escritório, não mais
irresoluto e, sim, certo de mim, convidei a moça da portaria do
trabalho, cujo nome continuamente me escapava, menina simpática,
gordinha, um bundão, a sair para a noite e comê-la.
Ah! Depois de uma vida de castidade forçada, aliviei-me líquido
entre suas pernas.
Ela se apaixonou. Eu não. Azar o nosso. Virou sombra. Encheu. Chupa-se
a laranja e se joga fora o bagaço. Caprichoso. Puxei as cordas
certas. Joguei a gorda na rua.
Claro, o remorso se apresentou. De um modo menor, mais fraco, a ponto
de se desfazer para sempre noutro dia.
Não mais me preocupavam os ratos. Para estes tinha a velha disposição
de se conviver bem. Duas reservas de alimentos. Uma para mim, outra para
eles. Sabia de sua fúria faminta e a chance desta ser uma jogada
inútil. Poderiam ignorar meu arranjo e atacarem tudo. Mas deu certo.
Comiam o que era deles e eu comia o que era meu. Alimentava os animais
como se fossem de estimação.
Devo apontar que durante os meses que se seguiram desse escambo, comida
por sossego, nunca vi nenhum desses capetas. Ratos discretos.
Esqueci os sonhos. Lembrava pouco. Imagens rápidas. Novamente sentia-me
deixar de existir durante o sono. Desaparecer quando trevava o mundo e
renascer de manhã para o trabalho.
Não sofri. A carreira engrenou. Escalava a humanidade, montava
em algumas mulheres frágeis o bastante para se entregar a qualquer
um e tudo ia bem. Cheguei ao topo. Satisfeito e pequeno.
Porém, a vida não se completa sem eclipses.
O esquecimento do sono contaminou o dia desperto. Esquecia-me das coisas.
Não nomes, não números. Perdia os feitos.
Abria o guarda roupa e encontrava trajes dos quais não lembrava.
Não eram os antigos, os comprados anos atrás e deixados
para trás pois a rotação da moda ou a preguiça
de cavar fundo relegava os trapos a poeira.
Roupas novas! Roupas novas quais eu não recordava de ter ido às
lojas, prová-las e adquiri-las. Temia ser enganado pelos vendedores,
por isso guardava sempre as notas, mas destas não as encontrei.
Também não lembrava de ganhar nenhuma delas de minhas infelizes
amantes, mais presentes tentando me prender em suas vidas.
Minha predileção é o bege. O cinza. O caqui. Qualquer
camuflagem que me desse couro invisível aos outros. Achei calças
pretas. Mais largas, algumas folgadas até. Camisas vermelhas e
amarelas. Cabiam em meu corpo, mas nunca antes as havia provado.
Um temor supersticioso me tomou. Do medo vem o respeito. Deixei-as quietas
nos cabides. E a esperança. Uma hora lembraria.
Sem mais lembranças. Mais esquecimento. Na maioria das vezes era
vegetariano. Obriguei-me a ficar longe da carne por conhecer a falha das
assepsias em nossos matadouros em matérias de semanários.
Gostei dos vegetais, afeiçoei-me às folhas, aos tubérculos
e as sementes. Todavia, a necessidade de proteína era uma saudade
interior e fazia-me atacar alguns bifes a contra gosto.
O sabor de um bicho morto - era a idéia que vinha com o gosto corrupto
- o sabor de um bicho morto dava-me nojo. Imaginei até facilitar
o ataque dos ratos à carne. Geladeira aberta. Esquecer na pia.
Uma desculpa para manter-me na dieta vegetal.
No entanto, seria esdrúxulo alimentar meus colegas roedores com
filés e coxas de galinha. Forcei-me a comer porçãozinhas.
Contudo, se esqueci das roupas que comprei, também esqueci das
comidas.
Abria a geladeira e, depois de anos, pela primeira vez o verde folhoso
dava lugar para o vermelho carnoso. Lingüiças, salames, pedaços
de boi e porco, pouco frango e peixe, conquistavam andar por andar, desalojando
as verduras.
Dia a dia a geladeira era tomada por cadáveres industrializados.
Olhava com asco. Estranhado. Não me lembrava de meu trajeto até
o mercado ou o açougue para adquire-las. E de come-las. As carnes
moviam, como se fossem consumidas diariamente e repostas periodicamente.
Faltava a visão de preparando-as no fogão, sentado à
mesa as consumindo. Às vezes, pegava o cheiro de fritura no ar
da cozinha, invadindo de algum lugar que não era lá porque
não fritei nada naquele dia.
Deparava com a louça suja sem ter usado e submersa na água
gordurosa, a frigideira que eu pouco manipulava, ainda com restos de carne
grudada nelas.
Amnésia.
Fazia as coisas e nada lembrava. A perda da memória começa
de trás para frente. Começa das coisinhas e termina com
sua vida inteira. Perdia-me do mundo.
Será que no episódio do inchaço cranial, danou-se
minha mente e só agora vieram os sintomas? E se não houvesse
ratos? Teria eu feito tudo, atacar os alimentos, a ratoeira, o veneno,
tal qual a carne e a roupa e arrumado álibis imaginários?
Se tudo fosse uma febre mental preparando-me para uma vida de baba e asilo?
XV
Perturbação.
Tremiam minhas mãos. Vibravam os dedos. Ouvi histórias sobre
o trato dado a loucura. Alienação. Banimento sem retorno.
Choques, lugares escuros, cheiro de mijo e cérebros fatiados. Deu
na idéia a trapalhada do raio X também ser minha confusão.
Fui confirmar. Busquei a prova do homenzinho que carreguei em minha cabeça.
Fucei onde sempre deixava as coisas importantes. Era um chato quanto a
documentos. Montes de recibos e notas, tudo organizado, tudo fácil
de encontrar e... não encontrei a chapa. Revirei e revirei. Pasta,
caixa de sapato com coisas, carta, atestado. Nada. A paciência se
foi.
Joguei as coisas para cima. Carnaval de papel carimbado. Chutei o guarda
roupa e ofendi o silêncio com um puta que pariu o cacete caraio.
Acalmei. Respirei. Nem arrumei a papelada jogada no piso preto, liquens
no charco, e sai para refrescar a cabeça na praça.
No corredor, tranquei a porta quando fui chamado.
Porta entreaberta. Cabeça de tartaruga para fora. Luana?
A vizinha do lar briguento.
Cumprimentei-a distante. Vizinho de cidade grande. Cordialidade Covarde.
Preocupado comigo, só acenei. Transe egoísta. Desperto.
Há algo chocante nela.
Luana sorria.
Achei um chifre na cabeça do cavalo. Unicórnio. Alegria
em Luana. Luana não era Luana. Aquela não era esta. Uma
parenta. A gêmea desaparecida e inversamente moral depois de tantos
anos veio passar o final de semana em casa.
A Luana conhecida dos anos de comprimentos rápidos e não
comprometedores nos corredores economizava sorriso. Mulher vinagre. Se
me perguntasse sobre a saúde de seus dentes, aquela vez na porta
com o senhorio buscando ratos não foi o bastante para qualquer
diagnóstico. Agora, sem mínimo pudor desnudava as alegrias
de seus dentes para mim.
Verificou o corredor. Ninguém. Sorrateiro e feliz, chamou-me o
dedo.
Eu?
O dedo confirmou e eu fui. Puxou-me. Fechou a porta. Meteu a boca na minha
e me sugou como se eu de fato lhe fosse vital. Maluquice. Desconcertante.
Intrigante.
Soltou-se. Não entendi. Nem Luana, alguma coisa também e
não sabia dizer. Para ela eu estava diferente, algo não
era como o do costume. Perguntou se tinha começado a fumar. Gosto
de outro. Sabor de boca diferente. OK. Importava é que eu era o
homem de sempre. Devíamos ser rápido. Consumar o adultério
antes dos chifres do marido adentrarem a casa.
Estarreci.
Acontecia.
Despiu-se.
Situação improvável de catecismo pornô. Crível
apenas para punheta. Perfume de nostalgia. Contrabandeei em minha infância
dentro de gibis sobre animais antropomórficos licenciados para
sessões solitárias no toalete.
Luana se desnudou.
Diante de mim. Como se entre nós fosse o corriqueiro de uma familiar
convivência. Estavam os olhos ébrios. O perigoso tesão
das mulheres quando apaixonadas. Confessou. Só ficava nua para
mim. Desde que começamos. Começamos? Desde que começamos,
não mais se despia quando o marido a procurava. Dava vestida no
escuro, bem católica, sob as cobertas e por obrigação
marital.
A imagem sacra de seu corpo de mulher era me reservada. Uma exclusividade
a qual nunca aproveitei. Não lembrava. Vi o corpo. E vi porque
o corno não poderia mais contempla-lo . Vi as marcas.
A carne era bela em sua imperfeição. Sobre a sensual flacidez
feminina desenhavam os rabiscos de minha esquecida violência amorosa.
Mordi e arranhei. A lascívia, os dentes e unhas a fizeram vestir
com o recato das crentes para esconder as provas da nossa putaria.
Realmente, o dano foi grande. O marido nunca encostou a mão em
sua pele para lhe ensinar o lugar, seu pai nunca a corrigiu com a vara
ou o cinto, porém, ao fodermos, eu a retalhei a vontade, fiz-lhe
minha lousa. A principio não gostou, depois viciou.
A dor vicia. Queria mais e eu fornecia. Eu, corruptor. Não. Reverberação
da velha culpa. Ela faz por que quer. Sua entrega é a sua liberdade.
Admirei a crueldade inédita. Nunca machuquei tanto assim uma coisa
viva, ainda mais uma mulher. Associei e choquei. Os retalhos me convocaram
a reminiscência. As dentadas, as cicatrizes, os estragos eram coincidentes
em forma, profundidade e distribuição com a dos ratos nas
carnes da geladeira.
XVI
Cabelos presos num
coque respeitável. Nua. Deitou no chão e, hospitaleira,
abriu -me seu corpo ao meio. Circunstancia incongruente. Pasmei e não
me movi. Suas íris vibravam discretas, focando-me. Ah! Ela sabia
o que eu queria. O que eu queria? Virou-se. Pôs-se de quatro. Escondeu
a cabeça e ergueu as ancas. Fez-se quadrúpede para montaria.
Ponte carnosa, figuravam os hieróglifos das descrições
das fornicações passadas.
O sangue correu. Preencheu-me. A genética clamou e meu pau atendeu.
Excitação e tontura. Queria toma-la, a despeito das pontas
soltas que me enovelavam a razão. Luana se manteve paciente, receptáculo
vazio a guarda do todo peniano. Sem anuncio, evadi-me dali. Escorregando
pelas portas sobre as pontas do pé, relegando minha amante rejeitada
a ingrata espera.
Ganhei o corredor.
Tranquei-me.
Fiz as contas.
Somei as partes e o resultado foi maior do que se esperava.
Abri a porta com calma. Parei. Ouvido atento. Espreitava. Fazia de conta
não ser mais minha, a minha casa. Olhei. Cauteloso. Ninguém.
Entrei. Avancei. Cômodo a cômodo. Ganhando terreno. Tomei
todo apartamento. Felizmente, pude confirmar só havia eu.
Fui ao quarto.
Meu leito estava arrumado com o mesmo cuidado que eu deixei quando sai
de manhã. Lençol esticado a ponto de uma moeda quicar se
arremessada na cama elástica. Economia militar doméstica.
Tudo estava como sempre esteve.
Olhei para o chão.
O dia anterior foi dia de faxina. Limpei os moveis, tirei as teias de
aranha, lavei a cozinha e o banheiro, vari e encerrei toda casa. Menos
meu quarto. A poeira da semana estava lá e junto com ela, a prova.
Tive o cuidado de levantar no lado contrário do qual levanto todos
os dias. Sai a passos grandes de modo a ficarem apenas três pegadas
na poeira no assoalho e me vesti na sala.
Três marcas do meu pé. Contei antes de ir trabalhar e recontei
no meu retorno. Perdi a conta. Havia muitas. Como se eu tivesse andando
de lá para cá me preparando para sair havia marcas de pés
feito instruções de aulas de danças.
Confirmei e enervei.
XVIII
O chaveiro era desses
empreendedores que não conheciam a folga. Não se importou
de trocar minha fechadura à noite. Ele instalou os novos trincos,
para reforçar a inviolabilidade da porta, deu-me a chave nova e
foi embora. Testei. Tranquei. Tomei 15 minutos de minha vida no corredor
analisando a porta. A fechadura nova era da mesma marca que a anterior.
O trabalho foi feito com cuidado causando o mínimo desgaste na
madeira. Aparentemente, olhando assim de fora, nada mudou, mas agora meu
lar estava guarnecido.
Trinco por trinco, passei os cinco trincos e dei duas voltas na chave.
Apaguei a luz. Sentei na poltrona e abri uma lata de cerveja. Bebi gole
a gole no escuro e esperei.
Nasceu o Sol. O raio de luz entrou pela fresta da janela. Vi a poeira
flutuando em sua haste luminosa. Deu hora de ir trabalhar. Porém,
hoje eu estava doente. Gripe de mentira. A primeira em anos. Levaria atestado
depois, ou não, que descontassem o dia perdido.
Passou meia hora de minha saída habitual e uma onda elétrica
percorreu minhas costas se enroscando nos nós de minha espinha,
cutucando uma irritação enérgica.
Olhei a porta.
No escuro os ouvidos tomam a dianteira dos olhos. Feito se viajasse pelo
astral sabia o que acontecia pelos arredores como se abandonasse a minha
carcaça limitada e observasse usando os poderes de um espírito.
Os sons teciam imagens em radionovelas indiscretas. Vi o cotidiano dos
meus vizinhos. Dona Elida chamava por Deus por um motivo mundano enquanto
tomava café. Os Alípios falavam coisas sobre si mesmo um
ao outro em tom de lamentação, entretidos na surdez pessoal.
E no corredor... Fechei os olhos.
Os passos eram familiares. Andou com calma, respirando suave, parou na
entrada do apartamento, senti a mão tirando o chaveiro do bolso,
o tilintar do metal, o roçar da pele com o tecido da calça.
Pensei em arriscar uma olhadela. Discreta. De soslaio. Ver pelo vão
da porta dois pontos pretos sustentando quem estava para entrar. Mas não
ousei abrir os olhos.
Breve silêncio de dois segundos eternos.
Finalmente, a chave entrou na fechadura.
Foi girar... Não girou.
Ele se deteve. Surpreso. Tentou o giro de novo. Novamente, o mecanismo
não respondeu a expectativa. A surpresa se solidificou. Outras
investidas. Em vão. Senti sua frustração me ameaçando
num solavanco que tremeu a porta. Certamente, ia quebrar a chave, ia derrubar
a porta, ia me encarar! Não. O tremor parou. Eu parei de respirar.
Momento sufocante.
Ouvi passos.
Ele se afastou, desintegrando-se suavemente pelo corredor. O som das pegadas
desapareceu e eu finalmente respirei.
Meus olhos quase verteram lágrimas de vitória, as quais
eu segurei com os dedos, curvando-me entre minhas pernas num alívio
prazeroso.
A casa era minha, só minha novamente!
O corpo relaxou. Depois do terror, o sono vem em nosso socorro. Entrego
- me ao sofá. Ao vencedor, os louros da inconsciência.
XIX
Meu ultimo sonho.
Não mais sonharia.
A natureza. Não. A supernatureza cumpriu sua sentença; as
carnes cresceram, abandonaram a moleza e os anéis verminosos, endureceram
numa pupa protetora e a racharam ao superar os limites do cálcio,
preenchendo os moldes da equivalência ao meu pentacruel adversário.
Ele sempre dormiu. Julguei a pensar ser seu sono uma contingência
da natureza, como vento ao final da tarde ou orvalho gorduroso dos carros
que pernoitaram no sereno. Estava tranqüilo, crente da sua ameaça
não passar de superstição, a iminência do dia
de julgar o homem o qual nunca chega, pois a natureza não julga.
Porém, certa vez, o dragão despertou.
Tão imenso, não o vi. Apenas uma sombra de eclipse, plúmbea
nuvem, zepelim escurecendo as multidões antes de botar os ovos
do fogo, da separação e da orfandade. Agiu diretamente contra
mim. Não me esmagou ou me devorou pois era muito pequeno para ser
visto, perdido na penumbra de sua massa, expulsou-me da cratera, meu lar,
com seus movimentos terremotos, rolando-me feito tatu bola e fechou o
caminho de volta com barreiras implacáveis.
Fui fraco, porém não era mais. Dividimos a mesma potência
para a morte.
Poderia arrebentar seu portão, demolir seu umbral e apedrejá-lo
com os restos, mas há outros meios. Além das fibras, dos
músculos e ossos, cresci em inteligência. Se éramos
iguais, iguais também eram as chances de um ceifar o outro. A decisão
se daria por sortilégios de terreno, pressão do ar e até
nossos alimentos anteriores. Fazia-se necessário o destino ser
domando por minha mão.
Nos arredores da cratera há cortinas cor do fim do dia acobertando
um caminho pelas galerias periféricas, atravessando os bastidores
até o palco principal. Antes deles também se fazem aparecer
outras cortinas crepusculares. Eu me pus diante delas. Estas assombram
mais que as primeiras. Mãos envolviam meu pescoço, na iminência
de um estrangulamento que nunca acontecia; calafrio de besouros mecânicos
feitos por relojoeiros pervertidos escalando as costas atendendo a programação
paternal para depositar larvas afiadas em minha nuca.
Era terrível.
Entretanto, me preparei.
As galerias também eram catacumbas. Nas catacumbas descansam os
mortos em suas gavetas, nas catacumbas também havia ladrões
que desfaleceram no caminho, vítimas de maldições
mortuárias e bactérias hibernantes. Ladrões sempre
levam armas. Passei recolhendo das mãos e bolsos dos defuntos malandros.
A maioria carcomida, mas por fim, com balas de um ali e a arma de outro
aqui, armei-me de um revolver carregado.
Não mediríamos forças, não me feriria, trapacearia,
assassinato na traição, covardia e enfim, liberdade.
Ouvia burburinho.
Meu inimigo não estava só. Arranjou companhia? Abri um pouquinho
a cortina e, com um olho apenas, vi as reformas feitas na minha ausência.
Ele erguera um teatro. Uma bela casa rubra. Lotada. O público.
Ilustres convidados: Gente da televisão.
A chateação elétrica aumentou. Brotava nas fileiras,
feito vértice de maribondos. Pensei ser o meu monstro o irradiador,
mas demorei a ver o que havia lá. Desisti, pois o espetáculo
se iniciou; na ribalta surgiu meu alvo.
Vestiu-se galante. Estava bonito. Era um astro? Eu não sabia. Será
que aparecia em revistas especializadas dando opiniões irrelevantes?
Familiaridade. Notei algo familiar. Toquei meu rosto. Éramos semelhantes,
parecidos. Ao torna-me grande para minha força competir com a sua,
tomei também seus traços...
Ele cumprimentou. Palmas ressoaram. Ele agradeceu. Hora da canção.
Antes da primeira nota, atirei. Sua cabeça deixou de ser gêmea
a mim, pois ganhou um outro orifício.
Não havia ninguém para amparar sua queda. Ele tombou levando
o microfone antigo. Ligeira de terror, a multidão escoa pelas saídas.
Pensei que abatendo meu inimigo a eletricidade nervosa desapareceria.
Não. Sua causa, ainda estava nas cadeiras. Ela se levantou. Olhou
para trás. Para a cortina. Para mim.
Pareceria ser o irmão de minha vítima. Idêntico a
ele, idêntico... a mim?
Outra fera. Não dividirei meu território com outro invasor.
Puxei os panos. Ele exalava cheiro de sangue e animais abertos. Encaramos
o espanto e a aversão de um contra o outro. Aponto a arma, mas
a abaixei, deixando-a cair.
Ele me mostrou os dentes e rugi. Eu respondi nos mesmos termos e avancei.
Seus dentes eram regulares, planos, retos; dentes de gado, aptos para,
raízes, folhas e talos suculentos, próprios dos herbívoros.
Os meus, não.
Salto. Queda. Meu peso o venceu, derrubando-o na cadeira. Ele mugiu um
som triste de despedida. Matadouro: num golpe fatal, eu mordi seu pescoço
e enchi minha boca de vermelho quente e gostoso, cuja sensação,
sensação última, derreteu - me da existência,
fez-me líquido e tragou -me pelas tubulações do amanhã;
escorri, dejeto de mim, para a cloaca do novo dia.
XX
Despertei com o gosto
amargo de chocolate dançando na minha boca. Lembrança de
uma trufa comida certa vez, com certeza. Fiquei com dó de mim.
Nesse dia, não escovaria os dentes para manter o peculiar sabor
reverberando na língua. Capricho porco! Em nome da dentição
é melhor reconsiderar. Se houver uma trufa na geladeira eu a comerei
em compensação e depois escovarei.
Segui despido até a cozinha. Olhei a geladeira. Sem trufas. A minha
dentadura estava condenada a podridão. A fome reclamante roçou
as unhas.
Comi: Um bife. Um pedaço de carne vermelha. Crua, úmida,
sangrenta. Suguei-a puxando, mordiscando, deleitando com a proteína
e o sangue frio, ignorando a ameaça das verminoses cristalizadas,
até a consumação total do petisco.
O sabor da carne deveria ter comprometido o gosto anterior e me movido
até a escova, já que não tinha mais obrigações
com a memória do paladar, porém, ao invés de corromper
ou mitigar, reforçou a lembrança ainda mais. Pobres dentes...
A memória ainda era minha ocupação. Sabia ter um
compromisso e o perdi em alguma gaveta da cabeça. Fecho os olhos
e vasculho... Achei! Esquecimento imperdoável. Ainda bem que a
outra parte nunca saberá.
Sem pressa, o relógio afirma minha folga, dou toque ao projeto.
Fui até o guarda-roupa. A camisa era vermelha. A calça,
preta. O Sapato também. O perfume ia ser mesmo o cheiro suado de
minhas partes. Para o espelho, eu estava adequado, olhei a circunferência
dos ponteiros e sai para o corredor. Esperei.
Do apartamento dos Alípios saiu o marido. Ia ao trabalho. Não
se despediu da mulher na porta com um beijo como nos filminhos enlatados.
O homem estúpido passou por mim e me cumprimentou conforme a urbanidade.
Desejei-lhe um dia bom em seu trabalho; uma resposta, sem dúvida,
também urbana. Peguei-me procurando coisas em sua cabeça
com os olhos. Percebi e Ri. De mim, pelo ato falho, e do outro, por não
sentir nenhuma compaixão.
Coitado do carrasco, se este sente pelo outro.
O outro sumiu na escada.
Bati. A porta se abriu. Luana já sábia que eu estava lá.
Seus olhos inquiriam magoados. Queria falar, tal qual se fosse sujeito,
se tivesse o direito ser ouvida, se eu a procurasse para ouvi-la. Péssimo.
Os amantes dependem do silêncio seco e dos ruídos molhados.
Por isso, antes de qualquer som, cravei minhas unhas em sua pele e colei
as bocas. Fiz o que eu quis e o que ela queria, entrega e liberdade: a
converti em objeto. Levei-a para dentro, fechei a porta e a consumi.
Sem nenhuma dor moral.
1
> O pleonasmo é vicioso, pois a Liberdade é somente um
estado de conhecimento e de Terror.
2
> Se Deus é a Perfeição, há de ser também
o Equilíbrio. Se Deus, porém, é o bem supremo, pois
é perfeito, o mal é a sua ausência. Se for certo existir
o bem e o mal, preenchimento e ausência, feliz é metaforizar
o universo como um queijo cheio de buracos. Mas se Deus também
é completude máxima por ser perfeito, ele, além de
preenchimento, é ausência, pois sem ambos não há
completude e, logo, não há universo. Então, Deus
ausente também é Deus presente e, portanto o Deus, que é
o Bem, também é o Mal.
O
PAPO DO JEAN
Sabe
do que eu gosto no Jean? Sempre que você liga pra ele, o cara tá
escrevendo alguma coisa. Ele tem um senso de humor malvado e uma imaginação
impressionante, de fazer qualquer escritor morrer de inveja. Vou dar um exemplo: um dia eu, o Jean e outras pessoas estávamos
conversando sobre nossos amigos imaginários na infância. Todo
mundo tinha tido um, que era assim ou assado, se chamava Fulano ou Beltrano.
E o Jean? "Bom, quando eu era pequeno, meu amigo imaginário
era um camaleão fosforescente que brilhava no escuro". Fechou, né? Todo mundo ficou morrendo de inveja. E essa história
diz tudo sobre o Jean... |