Jean Canesqui é um ateu com certa simpatia pelo Demônio. Roteirista de audiovisual e histórias em quadrinhos, ele edita a revista Kaos, pesquisa HQ para TV e está correndo atrás de um documentário sobre a pornografia 100% nacional. De vez em quando, diverte-se com alguma pequena perversão literária, como essa...

A SOMBRA

A Dor.

A Dor. A amiga Dor. Eu a conhecia bem. Desde meu primeiro entendimento como gente lá já estava ela. Martelando sempre a bigorna da minha cabeça. Cada batida tão natural e própria de mim igual ao coração entre minhas costelas.
Podemos dizer que nos tornamos inimigos íntimos. Acostumamos a viver juntos de uma maneira pacífica, presos na mesma cela por muito tempo. No meio da inimizade, a qual em campo aberto comandaria um a matar o outro, desenvolvemos um certo respeito mútuo.
Admiração odiosa e um acordo implícito. Cada um fazia sua parte. Era questão de boa fé de um dos lados para se evitar o conflito. Se eu esquecesse de tomar as pílulas que me aliviassem, a dor se propunha a ser leve, de modo a não me irritar muito no correr do tempo.
Às vezes, num ressentimento incerto, atribuía a moléstia à circundante moral que me torneou homem.
Cresci sob a sombra de uma ideologia ruim. O credo de só haver bondade se houver o castigo. Gira o mundo em torno da mordida da maçã. Quedamos sempre para a Fossa. Um movimento. A revolução em círculo. Completude do ômega sobreposto ao alfa. O regresso à plácida e estúpida imobilidade de Deus.
Era cristão e temia feito um.
Viveria nesse medo até o desterro para a necrópole, se num dia, em posse de alguns manuais de pensamentos estrangeiros aos horizontes do meu pecado original, não descobrisse sítios de aterrorizante Liberdade1 .
Sejam os livros a lenha da Fé ou seu crepúsculo se proclamará nas páginas livres.
Ao me perceber inteligente demais para acreditar em Deus, sai a negar quem sempre fui. Primeiro, porque me obrigara a bondade forçada até então, cogitei em ser mau. Contudo, não consegui ser maligno. Faltava a coragem para certas maldades mui odiosas e era trabalho sem recompensa realizar as pequenas mesquinharias. Mais ainda, por algumas ter feito, causou a mim uma indecifrável coceira na alma.
Ser bom, no limite, era mais simples e agradável.
Forjei uma lógica pessoal para justificar a bondade, cujo fim era enfrentar o mundo. Crente de fazer apenas o bem e recusar o mal porque me era da natureza, fui adiante nessa ética.
E a dorzinha que nasceu comigo também foi.
Minha carne cresceu até o limite do meu corpo. Tornei-me o homem que me destinavaa ser.
E minha dor de criança se tornou a dor de um homem.
Acreditando que ser bom bastasse para ser o melhor de mim, não fui brilhante em nenhuma profissão. Não era o protagonista das grandes empreitadas da humanidade, nem dos fatos a mexer com minha vida. Todavia, não odiei quem era.
Crendo ser o bem imã para o amor verdadeiro, esperei certamente me fazer feliz nas maratonas apaixonadas. Essa corrida eu também perdi.
Nenhuma mulher me amou como a amei.
Sempre fui preterido a aqueles cuja bondade não era a qualidade prioritária, mas sim a materialidade. Mesmo quando eu entregava o que tinha melhor de mim feito personagem de folhetim.
Umas riram. De fato, o precipício alheio sempre diverte. Outras, mais bondosas, desculpavam-se pela minha gafe. Aconselhavam tentar ser feliz noutra freguesia. Havia aquelas que simplesmente se viravam e iam em silêncio, rebolando o traseiro, as ancas quais nunca eu provaria. As carnes inalcançáveis são as mais deleitosas.
E eu não odiei nenhuma delas.
Não fiz família, não fiz fortuna, não tenho apreço e nem inveja de meus iguais. Sou só. Invisível no retângulo do meu quarto, à frente de uma tela que me ilumina o escuro com luz azul.
E não odiava.
Abandonei Deus, mas não abandonei o Homem. Fiel da humanidade eu fui, apesar dela ter me abandonado em minha cruz, sem ninguém ao meu lado para perdoar e condenar. Somente a dolorosa companheira de meus passos não me deixou a mercê do meu apartamento vazio.
Um dia, já certo de não crescer mais e de só restar encolher até virar o rebento mortuário a ser depositado no berço da Terra, percebi a dor de cabeça crescer um pouquinho. Um quase nada. Uma agulhada. Não encarei isso um ato rebelde. Normal. Com a idade a política do corpo se inclina para o lado da enfermidade. Não é porque a madeira se faz podre que a larva da broca se fará menos empreiteira de sua fome. Certamente, apenas estava doente de Tempo, deformando com os dias.

II

Porém, dada noite, eu acordei aos urros!
A Dor troara ecoando ricochete nas paredes cerebrais!
Incomodei a vizinhança a ponto de depois ser advertido noutro dia, como se eu, tão tranqüilo, fosse teimoso reincidente de noitadas barulhentas.
Ataquei as pílulas. Nunca havia tomado tantas de uma vez. A agonia parou. Deite-me na cama e antes de pousar no travesseiro, num reflexo mecânico, revistei-o para encontrar alguma coisa de peçonha, que possivelmente tivesse me picado a cabeça. Parei e me achei bobo. Esperava encontrar um escorpião aninhado onde depositava meu crânio?
A Dor voltou ao seu incômodo tolerável. Um funcionário público. Velocidade de repartição. Levei o mais prosaico dos dias e retornei para meu leito a hora de repousar.
Dormi.
Acordei!
Doía mais do que nunca doera!
Dessa vez me controlava em apreço aos vizinhos, em especial a Dona Elida, a qual, tadinha, sofria de nervoso.
De volta aos remédios. Não tive piedade. Esvaziei o vidro. Abateria a maldita de uma vez e dormiria tranqüilo e solitário para o resto dos dias. Ou morreria.
Fiquei tonto. Meu corpo fez menção se livrar do remédio. Forcei. Não vomitei. Segurei. Lágrimas nos olhos. A dor se acalmou. Respirei aliviado.
Tentei retornar a cama. Dei alguns passos, quando veio o primeiro chute. Uma compulsão inédita. A imagem me explodiu dentro das órbitas fechadas. O jogo de futebol do dia anterior na TV. A cabeça agitava. Um grande clássico qualquer. Jogava-me para frente e para trás. Vi o carrilhão quebrando o atleta. A dor era de uma agressão física. Pênalti indiscutível. Caí no chão. Gol! Tremi! A hola ergueu e abaixou em sua onda humana e eu finalmente vomitei.
Livre dos analgésicos, eu adormeci na imundice que veio dentro de mim.

III

Tempos de paz se seguiram. Talvez a experiência tenha traumatizado não só a mim, mas também a ela. A Dor. Doía-se dentro de sua mediocridade e, às vezes, tinha impressão que minha companheira faltara ao trabalho.
Receei o retorno do espasmo. Após anos de convivência e até um certo companheirismo, meu colega de cela surtou e foi além dos limites estabelecidos da boa convivência. Porém, novamente, eu dei o melhor de mim numa relação e relevei. Vai ver foi apenas um dia ruim para ambos.
Resignei-me. De volta à normalidade, para a vida ser o que sempre me foi, nem boa, nem ruim, apenas reta e sem surpresas...

IV

Surpresa.
Antes do trabalho, na aurora, ia eu tirar os pêlos da minha masculinidade e esculpir uma apreciável cara estéril para a clientela, quando parei, dando pela novidade.
Não sei a data exata do começo. Deve ter se iniciado uns dias antes, quando a dor se tornou mais presente, mostrando um leve esforço para se sobressair em sua produção de flagelo. Com a lâmina da navalha pousada no pescoço, prestes à devastação, descobri.
Minha cabeça crescera.
Como a Dor.
Devia ser engano. Impressão. Paranóia de despertar. Fui trabalhar. Mais uma vez, na semana seguinte, à frente do espelho, a mesma percepção. Uma bobagem imensa. Ri-me, mas mordi a unha do meu polegar como se isso me curasse da preocupação.
Fui vigilante. Todo dia conferia as dimensões do meu estojo mental. Cheguei ao cúmulo de passar na loja ao lado do ponto do ônibus e adquirir uma fita de medição para alfaiates e costureiras. Passei a tomar notas num caderninho.
Dados são cruéis. Um centímetro. Toda segunda-feira a circunferência de meu crânio ganhava um centímetro.
Desesperei-me. Deu na imaginação o Homem Elefante:
Se na Índia tivesse nascido marcado com a elefantíase, o deformado seria sagrado. Seus mais singelos movimentos no sono observados como vaticínio para o futuro das nações. Se respirasse calmamente e se virasse tranqüilo no conforto do leito, a Terra seria boa; caso se agitasse, os maus tempos estariam por vir.
Entretanto, nasci aqui. Se me calhasse de ter um cabeção torto, apenas restaria viver na ostra de um asilo ou no mafuá da estrada. Nunca mais ver alguém, menos do que eu via, ou assistido por todos em um palco perfumado de algodão doce e desprezo de platéia.
Fui ao médico.
O doutor me atendeu sem aquele respeito que se tem pelos clientes particulares. O hospital não era público, mas meu convênio médico era próprio ao meu parco salário. Tinha-se a rapidez do sistema pago sem perder o desdém dos médicos cansados das jornadas ingratas dos sanatórios para o povo.
Ele era notavelmente branco, barrigudo e desprezível. Ouviu impaciente o conto da minha descoberta. O sorriso de fumante amarelo-câncer entre os bigodões fazia me sentir uma vítima da idiotia. Aconselhou deixar para lá e receitou analgésicos mais fortes.
Quase acatei. Porém, a Dor acordou. Exigi. Ele perguntou para que exames se nós sabemos assim de vista não haver nada de sério acontecendo. Invoquei o sagrado direito do consumidor. Blasfemei dentro daquele templo alvo e azulejado? Não sei. Os olhos do barrigudo me fizeram ter a certeza que se ele fosse me cortar as verrugas das costas, por um lapso qualquer terminaria eunuco.
O médico me mandou colocar fios leitores de eletricidade nervosa na cabeça, e a máquina não viu nada de importante dentro de mim. Tomei sermão pela Medicina perder tempo com desconfianças de gente que não tem nada o que fazer.
Mas a Dor crescia simetricamente ao diagnóstico do espelho. E com elas, minha coragem. Voltei ao consultório e bati forte. A barriga indolente me mandou ao raio X, tirar sangue e recolher a merda. Fui. O sangue não disse nada assim como os excrementos. Faltava a chapa do crânio.
Tirou o plástico preto do envelopão amarelo. Colocou contra a luz do teto. Ele não acreditou. Soltou um palavrão. Afixou a impressão radioativa sobre a caixa de luz branca.
Eu vi e não acreditei também.

V

Cheguei em casa ciente que deveria voltar para ser exposto outra vez à desencarnação radioativa. Não era estimulante. Podia reclamar da perda de tempo, privando-me de atividades mais agradáveis ou necessárias para desvendar meus males; todavia a questão era não haver nada mais a fazer de minha vida além disso e do meu automatismo rotineiro. O lado bom - ter algo novo digno de nota a me ocupar o tempo - no entanto, perdeu-se na inquietação.
Sentei no sofá velho e comecei a tirar migalhas do seu couro leproso esperando alguma coisa se pronunciar.
Senti as desvantagens dos homens vivos diante dos ficcionais. Nas histórias, surge sempre alguém a ligar toda a trama dando um quadro, enfim, apreciável. Os fatos produzem o tão esperado sentido. Alivio dos protagonistas, livres do temor de suas vidas serem regidas pelo caos. Isso quando os próprios heróis não são sagazes natos e fazem eles mesmos esse serviço.
Como nada falou e eu não era herói, fui ver a prova da incompetência. Peguei a chapa rejeitada e olhei à luz do teto e, mais uma vez, vi que minha mente estava grávida.
Os ossos de um homenzinho deitado à maneira fetal jaziam na minha cabeça.

VI

O médico explicou o absurdo reclamando da reutilização das chapas de raios X seguidamente e de como isso pode afetar diagnósticos e comprometer os profissionais sérios da Medicina. Certamente, sondaram com radiação os interiores de uma futura mãe e a prova de sua semente verteu para meu exame, uma prática econômica, mas causadora de vexames como esse...
Perguntei estranhado se não é danoso tirar chapas de mulheres grávidas. Se não afetaria a prenha e a cria, legando a esta a degeneração das células. Afinal, césio não faz perder os dedos, os dentes e os cabelos, sob a ascendência do câncer?
A baleia branca rosou. Coçou a cabeça. Olhou-me com desejos maléficos. Rebaixei-o ao que era. Desconversou e me mandou voltar no dia seguinte para corrigir a trapalhada. Só para troçar, pedi a prova de minha gestação cerebral.
Em casa, revendo o caso, fiz algo que há muito não fazia. Gargalhei. Ruidosamente. Sem me importar com o estrago à paz do prédio. Só havia a comédia da consulta e o palhaço do médico barrigudão. Ah! Eu era a audiência satisfeita. Lembrei da necessidade de pedir outro atestado para o dia seguinte e fui me recolher sobre o cobertor. Fechei os olhos. Outra lembrança: não sonhava não sabia desde quando.
Se me perguntassem um sonho, falaria os das noites infantis, algo da puberdade e nada da maturidade.
Era eu um homem sem sonhos?
A febre me despertou. O cobertor não bastava. O frio me fez tremer o esqueleto. Levantei e abri a morada das traças. Cobertores velhos não perdem a utilidade. Precavido, mediquei-me e novamente, por hábito, tal qual se mexe com a língua um dente dolorido, fui medir a cabeça.
Ao confirmar a métrica, gelei
Não lembrava de cair. De me machucar. Revirei a cama em busca de uma tesoura ou qualquer treco cortante. Na minha testa, já grande, riscou-se uma cicatriz.
Era reta, perfeita e vertical. Toquei-a com cuidado. Não estava dolorido. Uma cartilagem macia e úmida a cercava. Apavorado fui pegar desinfetantes e bandagens. Depois iria para a emergência e eles me costurariam. Por ora, eu me tamparia.
Joguei o desinfetante e aguardei o ardor. Ardeu. Ardeu mais do que se esperava. Memória. Eu. Menino curioso. No banheiro. Durante o banho. Fui mexer na colônia do pai e molhei minha genitália com gotas cáusticas de eucalipto e álcool.
A tontura vem depois da lembrança. Cambaleei. Respirei forte. Não sei porque, respireii forte, como se ar me faltasse, como um reflexo, uma reação natural do corpo ao momento exótico. Aspirei e soltei. Repito e repito. Cada vez mais enérgico.
Já estava na cama, quando a dor maior, a maior de todas, a grande mãe de todo o sofrimento nesse mundo de Deus veio em uma violência singular!
A cabeça expandiu. A cabeça contraía. Fechava-se em si, buscando a desintegração. A expulsão de sua substância. O avesso. O vômito. O escarro. O gozo. O pólen navegando no ar para a preservação da vida e da alergia. A fenda inchara, formando dois grossos beiços paralelos vermelhos de batom carnoso de puta ao redor do regaço; da maldita evaginação escorreu um líquido amargo que me cegou.
A Dor, então, arregaçou os limites de minhas fibras.
Era somente um homem! A natureza não me preparou para aquele martírio!
Desfaleci.

VII

Pela primeira vez em anos, sonhei. Ou lembrei de um sonho.
Dizem que sem sonhos só há loucura; pois quando renegados eles escapam pelo ladrão e grudam nos alicerces do mundo como fungos famintos de fantasias científicas da Guerra Fria, comprometendo-os e afundando o nosso chão.
Estava nas cadeiras de um teatro de cortinas vermelhas esperando um espetáculo. A platéia era de gente a mim familiar, contudo, naquela hora, desconhecia as identidades. Nada acontecia. Entretive-me a observar os detalhes da arquitetura onírica. Uma bela casa. O foro rubro crepusculava. Olhei o público. Notei em meus colegas que tanto a pele, os pêlos, o humor vítreo, os dentes e os tecidos que os cobriam na forma de trajes galantes eram todos da mesma textura: Quadros televisivos iludindo o olho a 30 vezes por segundo em riscos horizontais de cobalto.
Apenas eu era de carne no meio da multidão de luz de televisão. Sentia-me preto na USP. Meus colegas me ignoravam como se fosse da mesma qualidade deles ou como se estivesse ausente. Não me abalei.
O incômodo de fato era a emanação elétrica vinda pelo corredor entre as cadeiras, de trás da cortina que separava o teatro do mundo exterior. Erguia me o pêlo feito um gato acuado.
Havia alguém lá.
Começou o espetáculo. No palco, entrei eu.
Eu estava lá. A mercê de todos. Roupa preta de gala. Ao mesmo tempo em que estava cá. Sentado na arquibancada, admirando-me. Cumprimentei. Palmas. Aplaudi e cumprimentei. Fui iniciar a canção.
Antes da primeira nota, uma arma atirou, acertou a cabeça, não havia Jaqueline K. para me amparar e eu caí no palco me agarrando ao microfone antigo. Levanto na platéia. Correria. Olhei para trás em direção à cortina da saída. Ela se abriu. Emanou a luz fabricante de cegos. Vi um vulto de nanquim de polvo em seu centro, cheirei o perfume de vísceras de matadouro e acordei.

VIII

Movia-me com dificuldade.
Os lençóis e cobertores grudavam na minha pele, puxando os pêlos atados ao emplasto, cujos componentes do adesivo, depois atestei, eram do engenho do meu corpo.
Haviam secado e fizeram uma casca de ferida sobre mim e a cama. Um casulo coagulado de um grande inseto.
Movi-me com dificuldade e me desintegrei da carapaça do vômito seco. De novo, passara mal e me livrara do que havia dentro.
Cri.
Entretanto, dessa vez botei para fora sangue e pedaços de mim. Lembrei da chapa radioativa e lembrei do câncer. Estaria desfazendo-me por dentro, vítima das degenerações do meu humor? Precisava ver o médico. Urgente!
Escapei da cama e vi o estrago. Odor abortivo. A náusea reinava. As moscas, seguidas pelas formiguinhas, estas em filas e aquelas em bandos, já tinham vindo conferir o evangelho da carne. A boa nova era que mais nenhum artrópode carniceiro passaria fome, pois Deus é bom. Fizera o maná sair de mim e tornou meu quarto a Canaã da porcaria.
O chuveiro haveria de me limpar. Caminhei a principio fraco para o banheiro; depois de passos, no entanto, as juntas despertaram. Dei por mim. Estava em pé triunfante! Dei por mim e era um homem ereto, uma ereção inédita em minhas memórias. Sem nenhum motivo, a não ser minha redenção física, sorri bobo.
Mas no meio da festiva saúde, veio a sensação. A ausência. Faltava alguma coisa. Bateram minha carteira. Verifiquei o bolso ausente do pijama. Nada. Esquecera de levar algo comigo, que sem qual, sentia-me despido. O que era, o que era o que eu tinha perdido?
A Dor.
A cabeça não doía!
Sentia a vida sem dor, pensava sem dor, respirava sem dor. De repente tiraram a quenga do cavalo, após anos de arado. Não ousei me conter. Pulei. Um tolo bêbado. Saltei! Dei viva à vida! Risos, lágrimas e glórias. Sem duvida, fui um abençoado idiota nessa hora!
Ao espelho. Vi-me. Limpei-me. Medi-me. Comparei as notas do caderno. Perfeito! A cabeça desinchara. Não voltou ao original, porém diminuiu bastante. Eu não seria mais o homem-elefante. E a cicatriz... Não havia cicatriz. Somente um risquinho raso.
E a alegria.
E no meio da alegria, parei. Olhei o espelho. Olhos arregalados. Boca aberta.
O abandono. O abandono subiu pela minha espinha ao ritmo de uma lagarta urticante. Mil agulhas nos nódulos. Acupuntura do medo. Excluído? Deserdado? Excomungado? A palavra certa é excomunhão. Algum deus me baniu de sua presença.
O inferno é o horror da ausência2 .
Perdi alguma coisa e tive medo...

IX

O doutor olhou a nova chapa.
Uma chapa debutante. Nada mais de enroscos com impressões anteriores. O vaticínio veio sem gentilezas. O açougueiro medicinal atestou meu bem estar e minha implicância em fazê-lo trabalhar por um pagamento injusto. Não importei com a aspereza do gordo. Estava ainda encantado pela alforria do sofrimento.
A cabeça recuara ao seu tamanho normal e, nas patas do porco, via só um crânio vulgar. Minha simples cachola. Se a vida terminasse naquela hora, naquele consultório, seria esse um final feliz para mim, mesmo sem princesa e acompanhado pelo ogro da má vontade.
Mas ainda não me acabei.
Voltei para casa. Sem doer, a vida era maior. Ampla, arejada e aberta às grandes possibilidades. Tecia planos de ressurreição dentro do ônibus. Cada ponto de poluição de informação, cartazes, anúncios, homens sanduíches em busca do ouro e dizeres comerciais das avenidas me intoxicavam de inspiração pessoal. Excitavam. Eram meu pôr-do-sol comercial. Redesenhava as linhas do destino em minha mão. Poderia tudo, faria tudo e seria único. Amém.
Limpei o lar dos meus expurgos. Os lençóis ensangüentados foram para o lixo, junto com o irrecuperável colchão. Esfreguei o chão cantando e vez ou outra bailei com a vassoura. Quis a casa perfumada de cloro e esterilidade. Um novo homem nasceu. Viva eu!
Parei cansado, quando a euforia se foi e restou a dor dos músculos sedentários. Admirei o trabalho feito e apreciei essa dor, sabendo ser passageira e que voltaria logo ao paraíso do não sofrer.
Sorrir para mim mesmo, por mim mesmo, tornou-se um vício novo e recorrente. No entanto, recolhi meus dentes ao perceber a mácula da limpeza. Uma trilha da gosma persistia no chão, próximo ao rodapé da parede. Teria me esquecido? Fazer o quê, e fui limpar.
O caminho ainda fresco e pastoso enganaria como os rastros de algum grande molusco saído debaixo da pedra. Curioso como só lá havia frescura, enquanto no resto tudo secou em casca e coagulo.
Sem o sofrimento para me ocupar, o tédio me impulsionava a inventar tarefas nas horas de folga. Propus-me a ler uma quantidade de boa literatura por dia, a fazer um belo esforço em exercícios e a limpar a casa. Mente, corpo, cama e mesa, tudo são.
Confesso, porém. As preguiças mentais e físicas me demoveram das primeiras tarefas, No entanto, o asco de panelas sujas e minha alergia a poeira me capacitaram a ser excelente dono do lar. E, investigando como inspetor da higiene, descobri não estar mais sozinho em casa.
Havia ratos.
Não era de se espantar, se meu fluído atraiu insetos, porque não serviria para os roedores? O primeiro sinal tinha sido a trilha pegajosa. Certamente, vieram pastar em meu regurgito e se sujaram. Ao retornar para seus refúgios marcaram os caminhos. O segundo foi a invasão à despensa.
As coisas estavam reviradas. Sacos roídos, contêineres rompidos, alimentos corrompidos pela baba dos bichos. Joguei muita coisa fora. De certa forma me admirei do gosto das coisinhas nojentas. Saquearam os biscoitos, a goiabada, os pêssegos em calda, as salsichas e sardinhas enlatadas, as frutas, o açúcar e o leite. Tanto o arroz como o feijão foram poupados. A farinha de trigo também. Nada cru foi tocado. Nada que precisasse de cozimento ou outro tratamento para nós homens comermos.
Limpei a despensa. Procurei os buracos por onde os saqueadores entraram. Nada. Reabasteci os alimentos e os suspendi em prateleiras para dificultar o saque. Acreditei estar tudo certo.
Não estava.

X

Sonhar já não era mais novidade.
Caminhava eu por um túnel úmido, cavado na terra para uma fuga de onde? Na hora, era -me incógnito. Não. Não caminhava. O buraco era pequeno. Rastejava. Fazia tão bem como se os cotovelos me fossem o motor mais natural.
Certo momento, o mundo aumentou. Num esforço de colosso, pois das articulações ainda não era o dono, ergui o pescoço e me encontrei numa galeria com espaço bastante para andar sobre a sola do pé. No entanto, podia apenas me arrastar. Continuei. Minha pele era resistente ao atrito com o chão e frágil ao toque da luz vinda da boca da cratera.
Estava numa cratera. Sabia lá se feita pela queda dos astros ou pelo espirro da terra; mas acima, com certeza, estava o céu, o dia e a minha vida. Lá fora havia água e comida. Pus-me a escalar os paredões e me decepcionei com a fraqueza de minhas carnes moles. Sonhava, de certo, ser um homem, mas carregava a moleza e os anéis das larvas. O verme escorregou impotente até o chão.
Teria desistido se não fosse a fome nascida do perfume de iguaria vindo de cima. Ele me ergueu. Anzol enfiado no nariz. Estava de pé, feito Adão da lama ou Tarzan dos macacos. Garra a garra, vitória a vitória, o cheiro da sobrevivência forçou meu corpo, naquela hora forte, a trepar na muralha...
Acordei intrigado.
Sonhos não têm cheiro.
Pode-se ver num sonho, pode-se ouvir num sonho. Porém, o nariz descansa. Sentado na cama, remoía o fato. Teria inaugurado nova variação de sonhar? Sonhos cheirosos, fedidos ou perfumados. Técnica minha exclusiva. Ia patentear e comercializar. Aprenda por tanto e torne suas noites mais divertidas e eu rico.
Suei. Corpo cheio de gotas. Todas as noites. Teria uma nova companhia? No lugar da cabeça recalcitrante, um corpo febril. Sede. Fui até a cozinha. Um copo de água gelada. Talvez depois uma chuveirada. Relaxar. Sem acender luz, sem machucar meus olhos, segui pelo caminho familiar. Bati os joelhos nos moveis. Cinzel no escuro. Ai. Calma. Preguiça em caçar o interruptor. A luz fria da geladeira bastaria para guardar o trajeto e voltar à cama sem pancadas.
Entretanto, o recinto já tinha seu farol. Hum! Pisei em liquido gélido e depois em geléia de coisa amassada.
Rápido. Acendi a luz da cozinha. A porta da geladeira estava aberta. O gelo derreteu. A água fria inundou o chão. Mais. A maquina fora saqueada. Comida caída no assoalho, espalhada, espezinhada. Dentro, o que sobrara estava roído. A carne, especialmente a carne. Rastros claros dos dentes.
Impressionante. Ratos audazes.
Não se tratava de simples convivência ou parasitismo. Lutava-se pelo espaço vital. Sem problemas. Se expurguei a dor de minha cabeça, faria o mesmo com os ratos de minha cozinha.
Mas tinha dó. Um dos meus pecados cometidos contra mim era a clemência. Quem dera possuir a impiedade e a satisfação cruel dos legítimos ateus. Era um descrente que não praticava. Tinha pena dos ratos. Disse ao vendedor da loja de animais quando me mostrou as ratoeiras e os venenos. O homem riu. Ter compaixão pelos gatos e pelos cachorros era comum, mas dos roedores... Esquisito. Entretanto, há de se fazer alguma coisa?
Pedi o método de efeito mais rápido e menos doloroso. Apresentou uma ratoeira com espinhos de ferro cravados no lugar onde o pescoço seria pressionado pela haste da mola. Justificou. Uma ratoeira lisa faria o bichinho agonizar aos gritos e espasmos por momentos sem fim, se este tivesse o azar de apenas estrangular ao invés de quebrar o pescoço. Na outra, espinhosa, a morte seria ligeira, pois além do golpe e da asfixia, ainda se perfurava a vítima.
Comprei e espalhei pelos cantinhos escuros da casa com um queijo de isca. Como nos desenhos da TV. Queijo bom. Meio caro até. A última refeição do condenado deve ser digna e primar pelo capricho. No fundo, mesmo exterminador, ainda era anjo bom. Esperei, feliz comigo mesmo.
Na cama, olhei para o teto. Já estava acostumado à ausência do sofrimento e procurava suprir seu espaço com pequenos afazeres de prazer. Masturbava-me homenageando amores passados e mulheres de silicone e celulose. Ou esfregava as pernas debaixo das cobertas para sentir a maciez reconfortante dos lençóis. Hábito de infância. Foram horas. O sono veio lento. Batia leve o torpor. Apaguei...
Acordei. De súbito. Tremi. Um alerta. Algo a acontecer, o qual não podia nomear. Culpa pelo massacre dos ratos? Me envergonhei. Mesmo para a bondade há limite, depois rolamos para a vala da bobagem. Cobri o rosto num pânico vexado. A bexiga reclamou. Apertado. Fui aliviar e, ao pisar fora do conforto da cama, gritei.

XI

Um animal!
Certeza!
Um animal pequeno e dono de uma brutal força na boca. Os Ratos. A peste se levantou contra o exterminador. Atentei contra eles e agora cobram meus dedos. Desesperado. Busquei arrancar a criatura de mim. No entanto, quanto mais puxava, minha carne mais se rasgava. E se não fosse um rato? A mãe falava do nosso pequeno cágado. Nunca deixar o réptil me morder, pois de sua mordedura não há soltura, salvo a decapitação do bicho ou a mutilação do meu membro. Era, ao mesmo tempo, medo por mim e, novamente, dó da besta. Todavia, não tinha cágados. Somente ratos e era impossível um rato morder assim, concluí sei lá porquê. Havia de ser outro bicho? Lembrei das histórias e sensações vis sobre os monstros a fazerem sob as camas seu covil e o ardil para meninos mijões. Há muito não era chamado de menino e nem mijava no colchão. Além disso não existem provas cientificas desses pavorosos hóspedes.
Somente dentro dos corações e mentes, como veria adiante.
Por fim, me acalmei. O agressor não se mexia. Seria meu sangue venenoso à sua espécie, de modo a matá-lo na primeira mordida? Morreu me abocanhando feito a cabeça da cobra de um programa de curiosidades inacreditáveis que ainda morde depois decapitada, lorota na qual nunca acreditei até aquela hora que escapou das minhas memórias e veio me pegar o pé.
A mão ensangüentada examinou a coisa. Era fria feito metal. Abri sua mandíbula de mola e verifiquei com os dedos existir na parte inferior dentes finos. Na parte de cima era banguela e fina.
Estiquei a mão e acendi a luz deixando uma digital vermelha no interruptor. Confirmei a expectativa. Caí na própria armadilha.
Segurava uma ratoeira.
Espanto. Armei todas longe do quarto e da minha passagem. Em lugares seguros. Procurei, sem saber o motivo prático, onde estaria a isca de queijo. Não estava em seu descanso no aparelho. Olhei no chão. Devia tê-la derrubado em meus pontapés. Procurei-a. Não. De forma alguma achei o queijo. Entretanto, maior foi a descoberta.
No caminho, da cama à porta do quarto, havia, à espreita dos meus pés, uma trilha de ratoeiras. Todas sem queijo e prontas para disparar seus mecanismos de morte.

XII

Estava certo.
Eu era apenas um único personagem no meu espetáculo onírico.
Em todos os sonhos, havia um peregrino a correr por um mundo nebuloso e solitário, ora labirinto arquitetado, ora galeria cavernosa, permeada de edificações gigantes erguidas por entes antediluvianos e insondáveis.
Desses um sobreviveu. Sabia. Dormitava nalgum lugar. Persistia, pairando no ar, ozônio hostil, a inimizade das duas espécies entre nós concorrendo pelo direito do mundo.
Vez o via.
Ora uma extraordinária baleia cachalote hibernando sob o mar, ora um titã adormecido, petrificado em montanha no sono imortal, ora uma coisa sombria de respiração pausada e tranqüila.
Óbvio. Seu despertar era meu fim.
Pânico e rancor. Teci contra o nemêsis mil atentados. Rudimentares. Inúteis. Inócua a sua força. Na ficção noturna, percebia-me pequeno e estúpido; no entanto, aconselhava a voz intestinal, se permanecesse vivo bastante, se a grande fera sonhasse o suficiente, poderia escalar alguma evolução pessoal e me equiparar ao seu poder de deus.
E, até, superá-lo.
E destruí-lo.
E, desperto, desistia de organizar minha vida.

XIII

Perdia a batalha para os ratos.
As coisas reviravam em casa. Camundongos poltergeists. Espíritos sujos. Irritantes. O saque de alimentos, fato constante. As mesmas características contínuas. Apenas a comida já cozida ou que pudesse comer sem cozer. E carne. Ah! Fui premiado com ratos exclusivistas, com cardápio caro e requintado. Seria a compensação pelas roupas e papeis intactos, apenas remexidos como se por intrometidos investigando o que dizia respeito só a mim?
Os venenos e as ratoeiras se mostraram ineficazes. As traquitanas em meu quarto foram os primeiros de uma série de exotismos a ocorrer.
Noutra vez preparei um tanto de comida temperada de veneno ao lado dos mantimentos, estando estes erguidos na prateleira e aquela no chão. Cri ser mais fácil para um roedor atacar o veneno a ter de escalar a parede. Os ratos, não. Eles foram direto à parte suspensa, sem ferir a outra.
Cabeça quente. Hum. Resolvi comer também. Pus a sopa de lentilhas no prato sobre a mesa e fui buscar o pão que eu deixara da sala. Ao voltar, sentei-me, piquei o pão e antes de colocar a primeira colher na boca vi três pontinhos cinzas perto do prato. Três grãos de veneno de rato que eu não havia deixado.
Vasculhei a sopa em busca de formas parecidas. Impossível distinguir entre a lentilha. Joguei a sopa na pia e comi o pão seco.
Irritado.
Fui ter com o senhorio. Considero-me um inquilino exemplar. Tolerante. Servil. Hum! Nunca atrasei nada. Nunca incomodei ninguém. Mesmo quando me incomodavam com as festas e com as contendas domésticas. Satisfeito comigo mesmo, levava minha vida em casa. Um discreto misantropo. Tanto que o senhorio vivia esquecendo meu nome.
Reclamei dos ratos.
Disse-me surpreso. Que em muito tempo eu era o primeiro a reclamar disso e que ninguém mais o fizera. Seria só eu o felizardo? Vejamos os vizinhos do corredor.
À esquerda, Dona Elida. Fraquinha. Transparente. Pele arenosa. Uma velhinha de cristal. Ela segurava a vida pela linha do crochê que tecia. Agradeceu a Deus por não ter em casa esses transmissores de moléstias. Além de contaminá-la iam fazer aumentar seu nervoso. Via-se que seu nervoso era capaz de desmontá-la músculo a músculo. Então, rolaria em bolinhas coloridas pelo corredor, dissipando-se para sempre.
Falou-me também - menos uma reclamação, mais um pedido de desculpas por uma falha minha - não conseguir dormir pelo barulho de toda noite de meu lado, arranhando o chão, e, mesmo sabendo como é difícil conter o fogo jovem, solicitou um pouco de piedade silenciosa. Não havia como não sentir culpa pela decrepitude da senhora, mesmo sendo eu inocente de sua decadência. Culpei os ratos do barulho e os dois me olharam acusadores de que eu mentia.
À direita, os Alípios. O casal brigador das sextas-feiras. Não quebravam os pratos. Menos. Carlo e Luana começavam uma discussão em voz alta por qualquer motivo. O motivo sempre é pequeno diante da paixão pelos esportes de pugilismo moral. Às vezes nem sequer havia. Progrediam em som e fúria até a voz do marido, denunciadora de sua força, suplantar a mulher, a qual se recolhia em silêncio. Nalgumas noites carentes de sossego, chateado, torcia para um matar o outro em nome da civilidade e do descanso público. Ai ficava culposo, torcendo novamente, para meus pensamentos não terem o poder de prover a tragédia.
Luana abriu a porta e vi ainda estar viva.
Olhou para nossos rostos e depois encarou nossos pés. Foi bonita. Tinha o ferruginoso viço das criaturas da inércia. Via-se bem. Seus seios não murcharam, suas ancas ainda convidavam à perpetuação de nossa raça. Podia-se derruba-la no chão em busca de alivio. No entanto, não há tesão que supere a pena.
Ela já deve ter sorrido. Deve ter sido outra pessoa em algum dia, em outra vida. Matriz da inveja nas mulheres em sua órbita. Cedeu lugar para a desastrosa empresa da piedade. Naquela, hora, ela olhava para o chão, pedindo esquecimento.
Inquirimos sobre os ratos. O tom de voz era mono e não havia ratos. Só uns barulhos. Achei que ela ia reclamar dos supostos arranhões em meu apartamento. Contudo, por sua vida matrimonial não ser um exemplo em silêncio, não me incriminou.
Agradecemos, nos desculpamos e fomos pelo corredor. O senhorio me perguntou se realmente eram ratos e se não podia ser impressão. Não. Falei das provas físicas. Os ataques à geladeira e à despensa. Admirou-se. Nunca ouviu falar de ratos furtando geladeiras.
De soslaio, vi Luana nos observando com o rosto encostado no batente. Mais preciso: observando-me. Um sorriso reviveu aquela outra pessoa quem um dia ela fora.
Movi a cabeça para trás. Ela recolheu os dentes e depois a si mesma para dentro do apartamento. Era mais jovem do que eu. Se não fosse calejado da recusa recorrente, da dor amorosa, do desprezo, eu comia.
O senhorio não achou ser caso de se preocupar com infestações no prédio, porém concordou, melhor prevenção do que remédios. Ia alugar apartamentos. Não convinha, ao apresentar o lugar, os novos inquilinos toparem com hóspedes imprevistos. Chamou um aniquilador profissional, de macacão, furgão e método.
Revistou o edifício. Nada. Era bem feita a estrutura. Não havia entradas de esgoto, esconderijos e lixo que servissem de comida. Sem abrigo e alimento, só um santo rato para sobreviver em meio a tanto ascetismo.
Quis garantir. Inspecionou meu apartamento. Mostrei-lhe os pontos onde os ratos atacaram. O homem de barba grisalha admirou a precisão dos bichos. Atacaram a comida e nada mais. Fios de cobre e outros materiais brilhantes estavam intactos.
Observou as paredes. Nenhum buraco. Nenhuma rachadura. Encanamento perfeito. Não havia tranqueira bastante para os ratos se aninharem. Elogiou minha limpeza e senti a piada sobre a minha masculinidade. A hombridade é relativa à sujeira e não havia nenhuma para a morada dos meus atormentadores. Não havia fezes também, nem mijo. Enfim, perguntou-me se eu já vira esses ratos.
A negativa foi respondida com um sorriso que eu desgostei.
Todavia, seu tempo fora pago. Assobiando músicas vulgares, semeou os grãos da morte. Enquanto depositava os venenos, eu acompanhava seu trabalho. Volta e meia, palestrava sobre os cuidados e os males dos ratos. Fingia prestar atenção, quando vi.
Um rato?
Alguma coisa no canto escuro. Próximo ao armário. Sentiu-se flagrada. Rápido. Sumiu na sombra. Chamei o exterminador. Nos movemos o armário e esperamos sair a criatura. Não saiu. Impressão. Para garantir, deixou um veneno no lugar.
Quando ele terminou e se foi, reduzi meu universo a mim mesmo. Sentei na cadeira e concluí não estar aproveitando a ausência da dor e, sim, gastando a liberdade com ratos. Me irritei. Um problema mesquinho atrás do outro me emperrando. Nem grandes dilemas, nem perigosos desafios. Continuava coadjuvante.
Ia deprimir. Não podia deixar. Era-me pesado demais para fraquejar. Se me permitisse ruir, a ruína seria total. Precisava de outras coisas a pensar. A cabeça era oficina. Precisava de matéria-prima nova para talhar esperança. Fechei os olhos. Desanuviei. Tudo estava leve.
Olhei para armário. Me esforçando enquadrava o veneno no meu olhar. Esperei ter a sorte de ver o rato retornar e comer seu fim.
Voltei-me ao vulto. Engano. Não. Vi o rato. Separei a imagem da memória. Decupei. Defini o rato. Se era grande... Era grande. Uma ratazana. Grande. Demais para uma ratazana. Não. Existem ratazanas do tamanho de gatos. Mas mesmo se fosse uma ratazana do tamanho de um gato ela não andaria como homem. O bicho estava apoiado no armário, sustentado pelas pernas traseiras como fazem normalmente.
Jurei ser um rato grande como um gato erguido nas pernas de trás que saltou quando avistado, sem menos, sem mais, e uma voz minha me questionou. Pois jurava também, ao invés de ser um imenso roedor, lembrava mais um pequeno homem que desapareceu nas trevas.
Solitário e acuado, quase senti falta dos conselhos da Dor.

XIV

Aprende-se de tudo.
Aprendi a conviver com os ratos. O veneno do profissional se mostrou ineficaz. Meu apartamento continuava o único alvo, logo não tive coragem para cobrar mais providências do senhorio.
Sosseguei.
Neurótico. Estava alarmado com a possibilidade de contrair peste bubônica ou raiva, porém, quase decepcionado, nunca estive tão saudável.
Sem a Dor me carcomendo, adquiri uma inédita disposição. Produzia como nunca. Selecionava problemas departamentais perpetuados por anos pela preguiça trabalhista. O chefe gostou, meus colegas não. Fui promovido e odiado na seção.
Amparado por esse novo poderzinho de escritório, não mais irresoluto e, sim, certo de mim, convidei a moça da portaria do trabalho, cujo nome continuamente me escapava, menina simpática, gordinha, um bundão, a sair para a noite e comê-la.
Ah! Depois de uma vida de castidade forçada, aliviei-me líquido entre suas pernas.
Ela se apaixonou. Eu não. Azar o nosso. Virou sombra. Encheu. Chupa-se a laranja e se joga fora o bagaço. Caprichoso. Puxei as cordas certas. Joguei a gorda na rua.
Claro, o remorso se apresentou. De um modo menor, mais fraco, a ponto de se desfazer para sempre noutro dia.
Não mais me preocupavam os ratos. Para estes tinha a velha disposição de se conviver bem. Duas reservas de alimentos. Uma para mim, outra para eles. Sabia de sua fúria faminta e a chance desta ser uma jogada inútil. Poderiam ignorar meu arranjo e atacarem tudo. Mas deu certo. Comiam o que era deles e eu comia o que era meu. Alimentava os animais como se fossem de estimação.
Devo apontar que durante os meses que se seguiram desse escambo, comida por sossego, nunca vi nenhum desses capetas. Ratos discretos.
Esqueci os sonhos. Lembrava pouco. Imagens rápidas. Novamente sentia-me deixar de existir durante o sono. Desaparecer quando trevava o mundo e renascer de manhã para o trabalho.
Não sofri. A carreira engrenou. Escalava a humanidade, montava em algumas mulheres frágeis o bastante para se entregar a qualquer um e tudo ia bem. Cheguei ao topo. Satisfeito e pequeno.
Porém, a vida não se completa sem eclipses.
O esquecimento do sono contaminou o dia desperto. Esquecia-me das coisas. Não nomes, não números. Perdia os feitos.
Abria o guarda roupa e encontrava trajes dos quais não lembrava. Não eram os antigos, os comprados anos atrás e deixados para trás pois a rotação da moda ou a preguiça de cavar fundo relegava os trapos a poeira.
Roupas novas! Roupas novas quais eu não recordava de ter ido às lojas, prová-las e adquiri-las. Temia ser enganado pelos vendedores, por isso guardava sempre as notas, mas destas não as encontrei. Também não lembrava de ganhar nenhuma delas de minhas infelizes amantes, mais presentes tentando me prender em suas vidas.
Minha predileção é o bege. O cinza. O caqui. Qualquer camuflagem que me desse couro invisível aos outros. Achei calças pretas. Mais largas, algumas folgadas até. Camisas vermelhas e amarelas. Cabiam em meu corpo, mas nunca antes as havia provado.
Um temor supersticioso me tomou. Do medo vem o respeito. Deixei-as quietas nos cabides. E a esperança. Uma hora lembraria.
Sem mais lembranças. Mais esquecimento. Na maioria das vezes era vegetariano. Obriguei-me a ficar longe da carne por conhecer a falha das assepsias em nossos matadouros em matérias de semanários. Gostei dos vegetais, afeiçoei-me às folhas, aos tubérculos e as sementes. Todavia, a necessidade de proteína era uma saudade interior e fazia-me atacar alguns bifes a contra gosto.
O sabor de um bicho morto - era a idéia que vinha com o gosto corrupto - o sabor de um bicho morto dava-me nojo. Imaginei até facilitar o ataque dos ratos à carne. Geladeira aberta. Esquecer na pia. Uma desculpa para manter-me na dieta vegetal.
No entanto, seria esdrúxulo alimentar meus colegas roedores com filés e coxas de galinha. Forcei-me a comer porçãozinhas. Contudo, se esqueci das roupas que comprei, também esqueci das comidas.
Abria a geladeira e, depois de anos, pela primeira vez o verde folhoso dava lugar para o vermelho carnoso. Lingüiças, salames, pedaços de boi e porco, pouco frango e peixe, conquistavam andar por andar, desalojando as verduras.
Dia a dia a geladeira era tomada por cadáveres industrializados. Olhava com asco. Estranhado. Não me lembrava de meu trajeto até o mercado ou o açougue para adquire-las. E de come-las. As carnes moviam, como se fossem consumidas diariamente e repostas periodicamente. Faltava a visão de preparando-as no fogão, sentado à mesa as consumindo. Às vezes, pegava o cheiro de fritura no ar da cozinha, invadindo de algum lugar que não era lá porque não fritei nada naquele dia.
Deparava com a louça suja sem ter usado e submersa na água gordurosa, a frigideira que eu pouco manipulava, ainda com restos de carne grudada nelas.
Amnésia.
Fazia as coisas e nada lembrava. A perda da memória começa de trás para frente. Começa das coisinhas e termina com sua vida inteira. Perdia-me do mundo.
Será que no episódio do inchaço cranial, danou-se minha mente e só agora vieram os sintomas? E se não houvesse ratos? Teria eu feito tudo, atacar os alimentos, a ratoeira, o veneno, tal qual a carne e a roupa e arrumado álibis imaginários? Se tudo fosse uma febre mental preparando-me para uma vida de baba e asilo?

XV

Perturbação. Tremiam minhas mãos. Vibravam os dedos. Ouvi histórias sobre o trato dado a loucura. Alienação. Banimento sem retorno. Choques, lugares escuros, cheiro de mijo e cérebros fatiados. Deu na idéia a trapalhada do raio X também ser minha confusão. Fui confirmar. Busquei a prova do homenzinho que carreguei em minha cabeça.
Fucei onde sempre deixava as coisas importantes. Era um chato quanto a documentos. Montes de recibos e notas, tudo organizado, tudo fácil de encontrar e... não encontrei a chapa. Revirei e revirei. Pasta, caixa de sapato com coisas, carta, atestado. Nada. A paciência se foi.
Joguei as coisas para cima. Carnaval de papel carimbado. Chutei o guarda roupa e ofendi o silêncio com um puta que pariu o cacete caraio. Acalmei. Respirei. Nem arrumei a papelada jogada no piso preto, liquens no charco, e sai para refrescar a cabeça na praça.
No corredor, tranquei a porta quando fui chamado.
Porta entreaberta. Cabeça de tartaruga para fora. Luana?
A vizinha do lar briguento.
Cumprimentei-a distante. Vizinho de cidade grande. Cordialidade Covarde. Preocupado comigo, só acenei. Transe egoísta. Desperto. Há algo chocante nela.
Luana sorria.
Achei um chifre na cabeça do cavalo. Unicórnio. Alegria em Luana. Luana não era Luana. Aquela não era esta. Uma parenta. A gêmea desaparecida e inversamente moral depois de tantos anos veio passar o final de semana em casa.
A Luana conhecida dos anos de comprimentos rápidos e não comprometedores nos corredores economizava sorriso. Mulher vinagre. Se me perguntasse sobre a saúde de seus dentes, aquela vez na porta com o senhorio buscando ratos não foi o bastante para qualquer diagnóstico. Agora, sem mínimo pudor desnudava as alegrias de seus dentes para mim.
Verificou o corredor. Ninguém. Sorrateiro e feliz, chamou-me o dedo.
Eu?
O dedo confirmou e eu fui. Puxou-me. Fechou a porta. Meteu a boca na minha e me sugou como se eu de fato lhe fosse vital. Maluquice. Desconcertante. Intrigante.
Soltou-se. Não entendi. Nem Luana, alguma coisa também e não sabia dizer. Para ela eu estava diferente, algo não era como o do costume. Perguntou se tinha começado a fumar. Gosto de outro. Sabor de boca diferente. OK. Importava é que eu era o homem de sempre. Devíamos ser rápido. Consumar o adultério antes dos chifres do marido adentrarem a casa.
Estarreci.
Acontecia.
Despiu-se.
Situação improvável de catecismo pornô. Crível apenas para punheta. Perfume de nostalgia. Contrabandeei em minha infância dentro de gibis sobre animais antropomórficos licenciados para sessões solitárias no toalete.
Luana se desnudou.
Diante de mim. Como se entre nós fosse o corriqueiro de uma familiar convivência. Estavam os olhos ébrios. O perigoso tesão das mulheres quando apaixonadas. Confessou. Só ficava nua para mim. Desde que começamos. Começamos? Desde que começamos, não mais se despia quando o marido a procurava. Dava vestida no escuro, bem católica, sob as cobertas e por obrigação marital.
A imagem sacra de seu corpo de mulher era me reservada. Uma exclusividade a qual nunca aproveitei. Não lembrava. Vi o corpo. E vi porque o corno não poderia mais contempla-lo . Vi as marcas.
A carne era bela em sua imperfeição. Sobre a sensual flacidez feminina desenhavam os rabiscos de minha esquecida violência amorosa. Mordi e arranhei. A lascívia, os dentes e unhas a fizeram vestir com o recato das crentes para esconder as provas da nossa putaria.
Realmente, o dano foi grande. O marido nunca encostou a mão em sua pele para lhe ensinar o lugar, seu pai nunca a corrigiu com a vara ou o cinto, porém, ao fodermos, eu a retalhei a vontade, fiz-lhe minha lousa. A principio não gostou, depois viciou.
A dor vicia. Queria mais e eu fornecia. Eu, corruptor. Não. Reverberação da velha culpa. Ela faz por que quer. Sua entrega é a sua liberdade.
Admirei a crueldade inédita. Nunca machuquei tanto assim uma coisa viva, ainda mais uma mulher. Associei e choquei. Os retalhos me convocaram a reminiscência. As dentadas, as cicatrizes, os estragos eram coincidentes em forma, profundidade e distribuição com a dos ratos nas carnes da geladeira.

XVI

Cabelos presos num coque respeitável. Nua. Deitou no chão e, hospitaleira, abriu -me seu corpo ao meio. Circunstancia incongruente. Pasmei e não me movi. Suas íris vibravam discretas, focando-me. Ah! Ela sabia o que eu queria. O que eu queria? Virou-se. Pôs-se de quatro. Escondeu a cabeça e ergueu as ancas. Fez-se quadrúpede para montaria. Ponte carnosa, figuravam os hieróglifos das descrições das fornicações passadas.
O sangue correu. Preencheu-me. A genética clamou e meu pau atendeu. Excitação e tontura. Queria toma-la, a despeito das pontas soltas que me enovelavam a razão. Luana se manteve paciente, receptáculo vazio a guarda do todo peniano. Sem anuncio, evadi-me dali. Escorregando pelas portas sobre as pontas do pé, relegando minha amante rejeitada a ingrata espera.
Ganhei o corredor.
Tranquei-me.
Fiz as contas.
Somei as partes e o resultado foi maior do que se esperava.
Abri a porta com calma. Parei. Ouvido atento. Espreitava. Fazia de conta não ser mais minha, a minha casa. Olhei. Cauteloso. Ninguém. Entrei. Avancei. Cômodo a cômodo. Ganhando terreno. Tomei todo apartamento. Felizmente, pude confirmar só havia eu.
Fui ao quarto.
Meu leito estava arrumado com o mesmo cuidado que eu deixei quando sai de manhã. Lençol esticado a ponto de uma moeda quicar se arremessada na cama elástica. Economia militar doméstica.
Tudo estava como sempre esteve.
Olhei para o chão.
O dia anterior foi dia de faxina. Limpei os moveis, tirei as teias de aranha, lavei a cozinha e o banheiro, vari e encerrei toda casa. Menos meu quarto. A poeira da semana estava lá e junto com ela, a prova.
Tive o cuidado de levantar no lado contrário do qual levanto todos os dias. Sai a passos grandes de modo a ficarem apenas três pegadas na poeira no assoalho e me vesti na sala.
Três marcas do meu pé. Contei antes de ir trabalhar e recontei no meu retorno. Perdi a conta. Havia muitas. Como se eu tivesse andando de lá para cá me preparando para sair havia marcas de pés feito instruções de aulas de danças.
Confirmei e enervei.

XVIII

O chaveiro era desses empreendedores que não conheciam a folga. Não se importou de trocar minha fechadura à noite. Ele instalou os novos trincos, para reforçar a inviolabilidade da porta, deu-me a chave nova e foi embora. Testei. Tranquei. Tomei 15 minutos de minha vida no corredor analisando a porta. A fechadura nova era da mesma marca que a anterior. O trabalho foi feito com cuidado causando o mínimo desgaste na madeira. Aparentemente, olhando assim de fora, nada mudou, mas agora meu lar estava guarnecido.
Trinco por trinco, passei os cinco trincos e dei duas voltas na chave. Apaguei a luz. Sentei na poltrona e abri uma lata de cerveja. Bebi gole a gole no escuro e esperei.
Nasceu o Sol. O raio de luz entrou pela fresta da janela. Vi a poeira flutuando em sua haste luminosa. Deu hora de ir trabalhar. Porém, hoje eu estava doente. Gripe de mentira. A primeira em anos. Levaria atestado depois, ou não, que descontassem o dia perdido.
Passou meia hora de minha saída habitual e uma onda elétrica percorreu minhas costas se enroscando nos nós de minha espinha, cutucando uma irritação enérgica.
Olhei a porta.
No escuro os ouvidos tomam a dianteira dos olhos. Feito se viajasse pelo astral sabia o que acontecia pelos arredores como se abandonasse a minha carcaça limitada e observasse usando os poderes de um espírito. Os sons teciam imagens em radionovelas indiscretas. Vi o cotidiano dos meus vizinhos. Dona Elida chamava por Deus por um motivo mundano enquanto tomava café. Os Alípios falavam coisas sobre si mesmo um ao outro em tom de lamentação, entretidos na surdez pessoal. E no corredor... Fechei os olhos.
Os passos eram familiares. Andou com calma, respirando suave, parou na entrada do apartamento, senti a mão tirando o chaveiro do bolso, o tilintar do metal, o roçar da pele com o tecido da calça.
Pensei em arriscar uma olhadela. Discreta. De soslaio. Ver pelo vão da porta dois pontos pretos sustentando quem estava para entrar. Mas não ousei abrir os olhos.
Breve silêncio de dois segundos eternos.
Finalmente, a chave entrou na fechadura.
Foi girar... Não girou.
Ele se deteve. Surpreso. Tentou o giro de novo. Novamente, o mecanismo não respondeu a expectativa. A surpresa se solidificou. Outras investidas. Em vão. Senti sua frustração me ameaçando num solavanco que tremeu a porta. Certamente, ia quebrar a chave, ia derrubar a porta, ia me encarar! Não. O tremor parou. Eu parei de respirar.
Momento sufocante.
Ouvi passos.
Ele se afastou, desintegrando-se suavemente pelo corredor. O som das pegadas desapareceu e eu finalmente respirei.
Meus olhos quase verteram lágrimas de vitória, as quais eu segurei com os dedos, curvando-me entre minhas pernas num alívio prazeroso.
A casa era minha, só minha novamente!
O corpo relaxou. Depois do terror, o sono vem em nosso socorro. Entrego - me ao sofá. Ao vencedor, os louros da inconsciência.

XIX

Meu ultimo sonho.
Não mais sonharia.
A natureza. Não. A supernatureza cumpriu sua sentença; as carnes cresceram, abandonaram a moleza e os anéis verminosos, endureceram numa pupa protetora e a racharam ao superar os limites do cálcio, preenchendo os moldes da equivalência ao meu pentacruel adversário.
Ele sempre dormiu. Julguei a pensar ser seu sono uma contingência da natureza, como vento ao final da tarde ou orvalho gorduroso dos carros que pernoitaram no sereno. Estava tranqüilo, crente da sua ameaça não passar de superstição, a iminência do dia de julgar o homem o qual nunca chega, pois a natureza não julga.
Porém, certa vez, o dragão despertou.
Tão imenso, não o vi. Apenas uma sombra de eclipse, plúmbea nuvem, zepelim escurecendo as multidões antes de botar os ovos do fogo, da separação e da orfandade. Agiu diretamente contra mim. Não me esmagou ou me devorou pois era muito pequeno para ser visto, perdido na penumbra de sua massa, expulsou-me da cratera, meu lar, com seus movimentos terremotos, rolando-me feito tatu bola e fechou o caminho de volta com barreiras implacáveis.
Fui fraco, porém não era mais. Dividimos a mesma potência para a morte.
Poderia arrebentar seu portão, demolir seu umbral e apedrejá-lo com os restos, mas há outros meios. Além das fibras, dos músculos e ossos, cresci em inteligência. Se éramos iguais, iguais também eram as chances de um ceifar o outro. A decisão se daria por sortilégios de terreno, pressão do ar e até nossos alimentos anteriores. Fazia-se necessário o destino ser domando por minha mão.
Nos arredores da cratera há cortinas cor do fim do dia acobertando um caminho pelas galerias periféricas, atravessando os bastidores até o palco principal. Antes deles também se fazem aparecer outras cortinas crepusculares. Eu me pus diante delas. Estas assombram mais que as primeiras. Mãos envolviam meu pescoço, na iminência de um estrangulamento que nunca acontecia; calafrio de besouros mecânicos feitos por relojoeiros pervertidos escalando as costas atendendo a programação paternal para depositar larvas afiadas em minha nuca.
Era terrível.
Entretanto, me preparei.
As galerias também eram catacumbas. Nas catacumbas descansam os mortos em suas gavetas, nas catacumbas também havia ladrões que desfaleceram no caminho, vítimas de maldições mortuárias e bactérias hibernantes. Ladrões sempre levam armas. Passei recolhendo das mãos e bolsos dos defuntos malandros. A maioria carcomida, mas por fim, com balas de um ali e a arma de outro aqui, armei-me de um revolver carregado.
Não mediríamos forças, não me feriria, trapacearia, assassinato na traição, covardia e enfim, liberdade.
Ouvia burburinho.
Meu inimigo não estava só. Arranjou companhia? Abri um pouquinho a cortina e, com um olho apenas, vi as reformas feitas na minha ausência.
Ele erguera um teatro. Uma bela casa rubra. Lotada. O público. Ilustres convidados: Gente da televisão.
A chateação elétrica aumentou. Brotava nas fileiras, feito vértice de maribondos. Pensei ser o meu monstro o irradiador, mas demorei a ver o que havia lá. Desisti, pois o espetáculo se iniciou; na ribalta surgiu meu alvo.
Vestiu-se galante. Estava bonito. Era um astro? Eu não sabia. Será que aparecia em revistas especializadas dando opiniões irrelevantes?
Familiaridade. Notei algo familiar. Toquei meu rosto. Éramos semelhantes, parecidos. Ao torna-me grande para minha força competir com a sua, tomei também seus traços...
Ele cumprimentou. Palmas ressoaram. Ele agradeceu. Hora da canção. Antes da primeira nota, atirei. Sua cabeça deixou de ser gêmea a mim, pois ganhou um outro orifício.
Não havia ninguém para amparar sua queda. Ele tombou levando o microfone antigo. Ligeira de terror, a multidão escoa pelas saídas. Pensei que abatendo meu inimigo a eletricidade nervosa desapareceria. Não. Sua causa, ainda estava nas cadeiras. Ela se levantou. Olhou para trás. Para a cortina. Para mim.
Pareceria ser o irmão de minha vítima. Idêntico a ele, idêntico... a mim?
Outra fera. Não dividirei meu território com outro invasor. Puxei os panos. Ele exalava cheiro de sangue e animais abertos. Encaramos o espanto e a aversão de um contra o outro. Aponto a arma, mas a abaixei, deixando-a cair.
Ele me mostrou os dentes e rugi. Eu respondi nos mesmos termos e avancei.
Seus dentes eram regulares, planos, retos; dentes de gado, aptos para, raízes, folhas e talos suculentos, próprios dos herbívoros.
Os meus, não.
Salto. Queda. Meu peso o venceu, derrubando-o na cadeira. Ele mugiu um som triste de despedida. Matadouro: num golpe fatal, eu mordi seu pescoço e enchi minha boca de vermelho quente e gostoso, cuja sensação, sensação última, derreteu - me da existência, fez-me líquido e tragou -me pelas tubulações do amanhã; escorri, dejeto de mim, para a cloaca do novo dia.

XX

Despertei com o gosto amargo de chocolate dançando na minha boca. Lembrança de uma trufa comida certa vez, com certeza. Fiquei com dó de mim. Nesse dia, não escovaria os dentes para manter o peculiar sabor reverberando na língua. Capricho porco! Em nome da dentição é melhor reconsiderar. Se houver uma trufa na geladeira eu a comerei em compensação e depois escovarei.
Segui despido até a cozinha. Olhei a geladeira. Sem trufas. A minha dentadura estava condenada a podridão. A fome reclamante roçou as unhas.
Comi: Um bife. Um pedaço de carne vermelha. Crua, úmida, sangrenta. Suguei-a puxando, mordiscando, deleitando com a proteína e o sangue frio, ignorando a ameaça das verminoses cristalizadas, até a consumação total do petisco.
O sabor da carne deveria ter comprometido o gosto anterior e me movido até a escova, já que não tinha mais obrigações com a memória do paladar, porém, ao invés de corromper ou mitigar, reforçou a lembrança ainda mais. Pobres dentes...
A memória ainda era minha ocupação. Sabia ter um compromisso e o perdi em alguma gaveta da cabeça. Fecho os olhos e vasculho... Achei! Esquecimento imperdoável. Ainda bem que a outra parte nunca saberá.
Sem pressa, o relógio afirma minha folga, dou toque ao projeto.
Fui até o guarda-roupa. A camisa era vermelha. A calça, preta. O Sapato também. O perfume ia ser mesmo o cheiro suado de minhas partes. Para o espelho, eu estava adequado, olhei a circunferência dos ponteiros e sai para o corredor. Esperei.
Do apartamento dos Alípios saiu o marido. Ia ao trabalho. Não se despediu da mulher na porta com um beijo como nos filminhos enlatados.
O homem estúpido passou por mim e me cumprimentou conforme a urbanidade. Desejei-lhe um dia bom em seu trabalho; uma resposta, sem dúvida, também urbana. Peguei-me procurando coisas em sua cabeça com os olhos. Percebi e Ri. De mim, pelo ato falho, e do outro, por não sentir nenhuma compaixão.
Coitado do carrasco, se este sente pelo outro.
O outro sumiu na escada.
Bati. A porta se abriu. Luana já sábia que eu estava lá. Seus olhos inquiriam magoados. Queria falar, tal qual se fosse sujeito, se tivesse o direito ser ouvida, se eu a procurasse para ouvi-la. Péssimo. Os amantes dependem do silêncio seco e dos ruídos molhados. Por isso, antes de qualquer som, cravei minhas unhas em sua pele e colei as bocas. Fiz o que eu quis e o que ela queria, entrega e liberdade: a converti em objeto. Levei-a para dentro, fechei a porta e a consumi.
Sem nenhuma dor moral.


1 > O pleonasmo é vicioso, pois a Liberdade é somente um estado de conhecimento e de Terror.

2 > Se Deus é a Perfeição, há de ser também o Equilíbrio. Se Deus, porém, é o bem supremo, pois é perfeito, o mal é a sua ausência. Se for certo existir o bem e o mal, preenchimento e ausência, feliz é metaforizar o universo como um queijo cheio de buracos. Mas se Deus também é completude máxima por ser perfeito, ele, além de preenchimento, é ausência, pois sem ambos não há completude e, logo, não há universo. Então, Deus ausente também é Deus presente e, portanto o Deus, que é o Bem, também é o Mal.


O PAPO DO JEAN

Sabe do que eu gosto no Jean? Sempre que você liga pra ele, o cara tá escrevendo alguma coisa. Ele tem um senso de humor malvado e uma imaginação impressionante, de fazer qualquer escritor morrer de inveja. Vou dar um exemplo: um dia eu, o Jean e outras pessoas estávamos conversando sobre nossos amigos imaginários na infância. Todo mundo tinha tido um, que era assim ou assado, se chamava Fulano ou Beltrano. E o Jean? "Bom, quando eu era pequeno, meu amigo imaginário era um camaleão fosforescente que brilhava no escuro". Fechou, né? Todo mundo ficou morrendo de inveja. E essa história diz tudo sobre o Jean...
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