Na inauguração da sua página, a Escrevinhadora vai publicar, durante quatro semanas, as aventuras de "Bernardo". Trata-se da história sentimental de um fotógrafo, da adolescência à maturidade. As quatro novelas da série mostram esse personagem dedicando-se, em vários momentos de sua vida, ao seu principal e mais absorvente interesse: mulheres. Mulheres de todos os tipos, idades e tamanhos. A cada semana, a Escrevinhadora oferece ao seu público uma novela da série. Começamos com "Bernardo e a porta aberta", que mostra o personagem na adolescência.
BERNARDO E A PORTA ABERTA

"Era uma vez um sultão muito rico e poderoso. Ele morava num palácio com belos jardins, suntuosos salões de baile, e um harém. O jovem sultão assumira o trono ao completar dezesseis anos. Durante toda a sua infância, seus janízaros tinham vagado pelo país, escolhendo as mais belas meninas e moças para povoarem o harém do seu futuro soberano – que Alá o guardasse!"
"Ao atingir a maioridade, o jovem sultão entrou, portanto, na posse de um grande império e do maior serralho do mundo. Como o reino era governado por seus sábios conselheiros, o sultão tinha muito tempo livre para dedicar ao harém."
"As odaliscas brigavam entre si, ansiosas para chamar a atenção de seu senhor. Aquela que o agradasse particularmente na cama real poderia tornar-se esposa do sultão, juntando-se a um seleto e privilegiado grupo que morava na ala central do palácio. Uma delas podia até – com a proteção de Alá Todo Poderoso! – tornar-se mãe do herdeiro do trono!"
"Quanto ao jovem sultão, todo o seu tempo era pouco para espremer as suas espinhas e desfrutar do seu harém."
"Numa tarde sem outros afazeres, ele chamou ao seu real quarto uma nova e suculenta gazela. A virgem - porque se tratava de uma virgem - compareceu ao quarto do soberano inteiramente coberta com um véu, que ocultava seus encantos. Suspirando ao antecipar sua beleza, o sultão aproximou-se e afastou o véu do seu rosto. E, oh! Jamais se vira formosura tão perfeita, como a dessa donzela de tez morena e olhos negros, que brilhavam como diamantes. O soberano, ansioso, removeu seu véu, e rasgou-lhe também o sutiã..."

– Bernardo!

"Rasgou-lhe também o sutiã, expondo seios brancos e perfeitos, de esplêndidos mamilos escuros, onde multidões de cabritinhos poderiam se alimentar! Oh! Louvado fosse Alá! Ofuscado por tal visão, o poderoso soberano baixou mais um pouco o véu..."

– Bernardo! ABRE A PORTA!

"Sem dar atenção a mais nada, baixou mais um pouco o véu, descobrindo uma barriga e um umbigo perfeitos! Enlouquecido, o sultão livrou a bela odalisca do que restava de suas roupas, deitando-a imediatamente em sua cama. Deslizou a mão por entre as pernas da escrava, acariciando seu inexplorado tesouro, macio, peludo e perfumado! Oh! suspirou o sultão. Obrigado, Alá, por levares Teu servo ao paraíso...."

– Bernardo! ABRE JÁ ESSA PORTA SENÃO EU VOU CHAMAR A MAMÃE!
Suspirando e xingando, o sultão levantou-se do vaso, enfiou o cetro nas calças, e foi abrir a porta para a irmã.

– Mas que saco, Bernardo! Pensa que é dono do banheiro? A tarde toda aí trancado, batendo punheta!
O ex-sultão avermelhou.
– Mentira! – disse.
– Mentira, é? – perguntou Sara – Pois sim, seu tarado! Sai daí! - e empurrou-o para o lado. Curvou-se em direção ao espelho, preocupada.
– Merda de espinha - suspirou, baixinho. Abriu uma das gavetas, embaixo da bancada, e de lá extraiu um bastão, que começou a aplicar no canto da boca. O irmão aproximou-se dela, curioso:
– Que é isso?
– Corretor.
– Corretor de quê?
– De porcaria - suspirou ela. – De tudo que é porcaria que aparece na cara da gente.

Bernardo observava-a, fascinado: nunca entendera porque as mulheres colocavam tanta coisa na cara. Também não entendia porque pintavam as unhas, tiravam cutículas, encharcavam-se de perfume ou entalavam-se em sapatos-altos. Eram uma estranha espécie, as mulheres.
– Acho que também vou passar lápis no olho - murmurou Sara, depois de besuntar a boca com batom. Extraiu outro instrumento da tal gaveta - que mal fechava, de tão cheia - e começou a traçar um generoso risco preto debaixo dos olhos.
– Combina com a sombra dourada - afirmou.
– É, está um estouro - disse o irmão, irônico. - E essa meinha brilhante, também faz parte da fantasia?
– É brilhante sim, ué. Última moda. Passa na novela todo dia, nunca viu?
– Eu não assisto novela - disse Bernardo, com um ar de desprezo.
– Mentira. Assiste sim. Finge que está lendo aqueles livros idiotas, mas eu vejo muito bem que você está olhando, Bernardo.
– Posso até olhar, mas nunca ia usar uma coisa cafona dessas no pé, só porque apareceu na televisão. Você não tem desconfiômetro...
– Some daqui, Bernardo. Vai ver se eu estou na esquina.
– Eu fico o quanto quiser, o banheiro também é meu. Escuta, porque você não aproveita e bota logo aquela fantasia de odalisca do carnaval passado? Só faltam onze meses...
– Some, seu fedelho!
– gritou Sara. Largou o lápis em cima da bancada e virou-se para o irmão, furiosa:
– Por que você não larga do meu pé, hein? Não vê que eu estou atrasada? Que meu namorado está me esperando? Vai esfolar o seu pinto em outro lugar e me deixa em paz, tá bom?
– Só queria que a mamãe te ouvisse falar desse jeito, Sara. - disse ele, gravemente, estalando as unhas.
– Pois chama ela! Vai correndo chamar, seu puxa-saco!
– Eu só não quero que você passe ridículo, andando por aí toda rebocada. Um amigo meu até reparou em você, sabia?
– E desde quando eu ligo pros seus amigos?
Nesse ponto, o interfone soou, irritado. Sara largou bruscamente o lápis. Foi até o seu quarto, pegou uma bolsa, calçou as sapatilhas douradas e saiu feito um foguete. Bernardo ainda a viu, pela janela, entrando numa Brasília reluzente, que saiu cantando os pneus.

Bernardo perambulou melancolicamente pelo apartamento. Os pais estavam fora, numa festa da Hebraica, e ele não tinha programa. Não havia nenhuma festa ou show para ir. Nada. Bela merda de domingo.
Pensou em voltar à história do sultão, mas tinha perdido o ânimo. Afundou-se no sofá, e ia começar a assistir o "Fantástico", quando a campainha tocou. Foi atender.
Verônica estava na soleira, resplandecente num vestido de noite. Parecia uma princesa oriental: linda, com seus grandes olhos negros, o vestido na altura dos joelhos, as ondas de cabelo preto e macio caindo pelos ombros. Um sorriso aberto florescia no rosto moreno, onde uma ou outra ruga mal começava a aparecer:
– Bernardo querido!
– A voz era grave, insinuante mesmo quando dizia as coisas mais banais. Beijou-o no rosto, sorriu mais ainda, e afastou-o, como para contemplá-lo em perspectiva - Mas como você cresceu!
– Boa noite, Dona Verônica. - ele respondeu, sem jeito.
– Deixa eu ver se eu adivinho: a mamãe foi à festa da Hebraica, não é?
– Foi sim, Dona Verônica.
– E não me chame de Dona, que eu me sinto uma múmia... Sabe o que aconteceu? Semana passada, quando estive aqui, esqueci a minha caixa de pó compacto. Está me fazendo uma falta! Eu ia pedir para a sua mãe levar à festa, mas esqueci. Posso dar uma olhada no quarto dela?
– Se quiser, eu mesmo vou...
– Não, não se incomode, eu sei onde está.
– Então fique à vontade.
– É um minutinho só - disse ela, e sumiu pelo corredor.
Bernardo ficou sentado no sofá. Notou, envergonhado, que a calça jeans que vestia já estava rasgada no joelho.
Mas que perfume aquela mulher usava! Dava para sentir da sala!
– Achei! – disse ela, reaparecendo. Sacudiu triunfalmente a caixinha de pó. - Bem que eu disse que devia estar aqui! Bom, deixa eu descer correndo, que o Zé Carlos está me esperando. Dê lembranças pra Sarinha, viu? – e beijou-o de novo, carimbando uma segunda marca de batom no seu rosto. Num rápido vislumbre, Bernardo pode ver os seios dela, debaixo da blusa.
Depois que Verônica tomou o elevador, ele saiu do apartamento, trancou a porta e desceu dois andares.

– Boa noite, Dona Clotilde. O Edmundo está?
– Boa noite, meu filho. Está lá no quarto... Não quer um suquinho, antes de ir pra lá?
Bernardo hesitou. A mulher insistiu:
– Um suquinho só!
– Já que a senhora insiste... - disse o menino, sentando-se.
Dona Clotilde veio trazer o copo. Enquanto ele bebia, começou a tagarelar:
– Que bom que você veio, Bernardo. Você, sim, é uma ótima influência para o meu filho. Coitado do Edmundo! Sabe, ele não é mau menino, mas puxou o pai. Muito calado. Parece bicho-do-mato! Aliás - disse, com um ar conspiratório - você sabe se por acaso ele ainda não arranjou uma namoradinha? Pode contar pra mim. Eu finjo que não sei nada.
– Ah, hum, acho que não arranjou, Dona Clotilde. Quer dizer, não que eu saiba.
– Que pena! – disse a mulher, suspirando. - Um rapaz tão bonito como ele.... Não é por ser mãe que eu digo, Bernardo, mas se ele tratasse daquele problema da pele, ficava ótimo. Mas não, não quer, é teimoso. Já arranjei até o médico, marquei consulta, e ele não vai. E sempre tão fechado! Não me conta nada, não é mesmo, Ditinha?
– Nada - confirmou a empregada, lá da pia.
– Nem pra mim nem pra Ditinha, que ajudou a criar ele. Enfim - suspirou de novo – cada um leva a vida como quer. No meu tempo era diferente, os filhos pediam a opinião dos pais. Existia um respeito. Hoje em dia... só faltam morder, se a gente pergunta alguma coisa.
"Mas de uma coisa eu faço questão: as notas. Isso ele pode reclamar quanto quiser, mas eu sempre vou exigir. Ou ele pensa que é desse jeito que vai passar no vestibular? Veja só: dez horas de domingo, e ele lá naquela bateria. Já que não tem nada para fazer, podia estudar, não é? As notas dele ultimamente andam... Bernardo!" – ela se movia aos saltos, pulando feito um gafanhoto ao sabor de novas idéias, "você, que é tão bom aluno, podia convencer o Edmundo a estudar um pouquinho mais."
Bernardo sorriu, com o seu ar mais abstrato. Não sabia o que dizer.
– Viu que menino mais simpático, Ditinha? Se o Edmundo só andasse com gente como você... De vez em quando, sabe, Bernardo, aparecem aqui uns rapazes tão esquisitos! Uns cabeludos – detesto essa mania de cabelo comprido! E também barbudos, uma nojeira. É como minha mãe sempre dizia: o homem que não faz barba, com certeza também não toma banho! Você não acha?
– É. Deve ser verdade. - ele tossiu, embaraçado.
– A gente é mãe, a gente se preocupa. Às vezes eu fico aqui sentada aqui, de noite, depois da novela, pensando... Me vem cada pensamento horrível! Meu marido acha que eu sou exagerada. Não sei... Quem sabe um desses rapazes não está trazendo droga pro Edmundo?
Bernardo sobressaltou-se:
– Imagine, Dona Clotilde! – conseguiu responder, quase engasgado.
– Você acha que não? É, talvez você tenha razão, eu é que fico imaginando coisas... Mas é que esses rapazes são tão esquisitos! Quando começam a tocar, nossa, ficam horas lá no quarto. E fazem um barulhão, até vocês no sétimo andar devem ouvir. Não é possível, Bernardo: só gente drogada toca aquelas coisas!
– Que é isso, Dona Clotilde... Também não é assim... - protestou Bernardo.
– Vocês gostam de cada porcaria, francamente! E ele ainda diz que quer ser músico. Músico! Já imaginou? Que nem esses amigos cabeludos dele. Quando o Edmundo me veio com essa, me deu uma batedeira no coração que eu até tive que sentar. Parecia até que eu já estava vendo o meu filho na minha frente, todo descabelado, sujo, que nem esses sujeitos que a gente vê na televisão. Que horror! Vê se tira essa idéia da cabeça dele, Bernardo.
Bernardo abanou o pescoço, num gesto que não o comprometia em nada. Dona Clotilde, consolada, engoliu mais um biscoitinho:
– Não que eu tenha nada contra a música. Até gosto muito – mas música de verdade, não essas barulhadas que vocês ouvem. Eu tive uma prima que tocava piano, foi ser concertista. – Seu olhar brilhou, distante: – O Edmundo bem que podia estudar música clássica. Imagine só ele dando um recital, de casaca, tocando piano... Isso sim.
Houve um longo silêncio. O relógio da sala soou dez horas. Bernardo remexeu-se na cadeira. Dona Clotilde suspirou e voltou o olhar para ele, amável:
– E você, Bernardo? Que vestibular vai fazer, ano que vem?
– Engenharia - respondeu ele, prontamente.
– Isso sim é que é ter a cabeça no lugar! – elogiou ela, dando-lhe tapinhas no ombro. - Está vendo só, Ditinha? Não é um amor esse garoto? Como a mãe dele deve estar orgulhosa, não?
Quando Bernardo entrou no quarto do amigo, ele estava terminando um solo de bateria. Bateu no prato mais alto com toda força, produzindo um ruído concêntrico que se prolongou por alguns segundos. Quando o som se dissipou, Bernardo disse:
– Oi, cara.
Edmundo levantou a cabeça. Afastou os cabelos compridos do rosto, onde florescia uma plantação de espinhas:
– Oi.
Levantou-se do banquinho, guardou as baquetas e, sem dizer nada – não era de muita conversa – foi pegar um LP dos Stones. A agulha caiu suavemente sobre os sulcos do disco, e as batidas de "Miss You" flutuaram pelo quarto. Edmundo trancou a porta à chave, e só então virou-se para o amigo:
– E aí?
– Aí o quê? – perguntou Bernardo.
– Tem unzinho contigo?
– Ô se tenho - apressou-se o outro, enfiando a mão no bolso da jaqueta. - Mas não vai ficar cheirando mal aqui dentro?
Edmundo abriu a janela. Lá de baixo, veio o som dos carros na rua, e as buzinas da Augusta, um pouco mais longe. Bernardo tinha se sentado na escrivaninha do amigo e desfazia, concentrado, um pelotinho de erva. Levantou a cabeça só uma vez:
– Tem papel?
Com um andar quase solene, o outro foi até a pilha de cadernos escolares. Extraiu de lá um caderno de Desenho, e arrancou uma folha de seda:
– Tá na mão.
Bernardo prosseguiu o ritual. Edmundo tinha se sentado na beira da cama, com os olhos ausentes, marcando com os dedos o ritmo da música.
– Tá sem programa? – perguntou, finalmente.
– Nem me diga - concordou o ex-sultão, sem levantar os olhos do trabalho. – Que fim de semana de bosta, cara.
– Mas você disse que ia ontem na festa da Viviane...
– Eu fui.
– E aí?
Bernardo fez um gesto impaciente com as mãos:
– Um saco. Ela ficou o tempo todo servindo salgadinho, não parava quieta. E botou pra tocar aquelas músicas de discoteca. Que troço horrível! Quase vomitei. Sem contar que a festa era da irmã dela. Tava cheio de criança.
– Ah, não esquenta. O importante é que ela gosta de você.
Bernardo fez um gesto de dúvida:
– Sei não. Sabe o que é, Dinho? (todo mundo, exceto a mãe, chamava Edmundo de Dinho). A Viviane é legal, é bonita, etc... mas tem horas que ela é um saco. Quer namorar comigo como se a gente estivesse no Jardim da Infância. Sei lá, passear de mãozinha dada. Um troço ridículo.
– Ah, vai, só mãozinha dada?
– E uns beijos de vez em quando. Só. - lambeu o papel, para fechar o cigarro.
– Só beijinho?
O outro mostrou o braço:
– Tá vendo isso aqui? Com as unhas. Foi um dia que eu avancei um pouco o sinal.
Edmundo aproximou-se, olhou as marcas e soltou um assobio:
– Bravinha, ela.
– Pois é. Olha, tá pronto - e apresentou o baseado ao amigo.
Dinho acendeu o cigarro, com cuidado para não queimar tudo. Puxou a primeira tragada, respirou fundo e guardou o ar por vários minutos, depois de devolver o baseado. Quase roxo, começou a falar:
– Quem sabe se você ficasse mais tempo sozinho com ela...
– Não dá. A Viviane está sempre pendurada na irmã ou na mãe. Ou então com um bando de meninas.
Dinho expirou ruidosamente a fumaça. Olhou para o amigo:
– Bernardo, deixa eu te perguntar uma coisa. Mas você responde sinceramente.
– Manda.
– Você já... - fez um gesto significativo.
Bernardo avermelhou, e respondeu olhando para o chão:
– Bom, pra falar a verdade, não. Uma vez eu e o Reinaldinho fomos pra zona, mas quando chegou lá eu perdi a coragem. O máximo que eu fiz foi dar uns amassos com a Eleonora, aquela peituda que saiu do colégio no meio do ano. Só.
Dinho começou a rir:
– Tá rindo do quê, palhaço?
– Nada, eu achava que você já tinha trepado faz tempo. Com a bola toda que as meninas te dão...
– Ah, não, também não é assim. A maioria é só amizade.
– Mas você tem jeito pra lidar com elas.
– É - admitiu Bernardo, constrangido. - Tenho um pouquinho, pode ser. Mas no fim das contas elas não querem dar de jeito nenhum, bicho. É um desespero - Puxou mais uma tragada. Segundos depois, quando expirou a fumaça, perguntou: – E você? Já trepou?
– Eu? – Dinho apontou para si mesmo - Já, é claro. Mas só na zona - admitiu, modesto.
– Melhor que eu.
– Achei uma bosta, se você quer saber.
Bernardo balançou a cabeça. O fumo começava a fazer algum efeito, e seus pensamentos divagavam. A música havia terminado; Dinho levantou, guardou o disco e substituiu-o por outro. Stones, de novo.
– Uma amiga da minha mãe passou hoje à noite lá em casa - disse Bernardo.
Dinho olhou-o, indiferente:
– Passou? – perguntou, e começou a cantar junto com a música:

If I could stick a knife in my heart
Suicide right on the stage
Would it be enough for your teenage lust?
Would it help to ease the pain?

– Ela é muito bonita – disse Bernardo, depois de alguns segundos.
– Mesmo? – Dinho interessou-se – Quantos anos ela tem?
– Ah, sei lá... A idade da minha mãe, acho. Uns quarenta e cinco.
– Bem velha, né?

Os seios. Os seios. Vira os seios apenas de relance, e levara um susto. Ela não teria se curvado de propósito? Não. Com certeza não.
Naquela madrugada, depois da Sessão Coruja, Bernardo não conseguia dormir. Pensava nos seios de Verônica, que avistara debaixo da sua blusa dourada. Seios lindos; não muito grandes, mas perfeitos. Até os biquinhos tinha dado pra ver. Incrível, não conseguia lembrar se ela usava sutiã.
Rolou pela cama, inquieto. E a cor daqueles seios? Tão bronzeados quanto o resto do corpo. Mas não era possível. Só se ela tomasse sol sem a parte de cima do biquíni. Um arrepio percorreu Bernardo: seria verdade? Sem a parte de cima? Uma mulher casada, mãe de dois garotos da sua idade? Ficou cismando, ao som das músicas melosas que vinham do quarto de Sara.

O despertador de Bernardo era um pesadelo.
Fora a sua mãe quem lhe dera o relógio, branquinho, redondo, com um pêndulo que ia e voltava, e um mostrador luminoso: tinha comprado aquele mimo nos Estados Unidos, mostrou-o às amigas, toda orgulhosa.
Em vez de tocar às seis horas de uma vez por todas, o maldito começava antes, fazendo um barulhinho preliminar: bruuum, bruuum.... Nessa hora, Bernardo tentava se enganar de duas formas. Primeiro, imaginava que o relógio não estava realmente fazendo aquele barulho; era só impressão sua. Segundo, tentava convencer-se de que ainda dormia profundamente, quando a realidade era que já estava meio-desperto, oscilando entre o sono e a vigília. Em meio minuto, todas essas ilusões iam por água abaixo, porque o despertador começava a tocar de verdade.
E como tocava! Não era um barulho comum: lembrava um cruzamento de sirene de ambulância com apito de navio. Bem alto. Melancólico. Pavoroso. Até Sara, no quarto ao lado, costumava acordar com o despertador de Bernardo.
Naquela madrugada, no entanto, ele ficara tanto tempo perdido nos seios de Dona Verônica, que pôde escapar por alguns minutos do odioso som. Voltou a dormir. Mas Sara logo abriu a porta:
– Acorda, panaca!
– Não enche o saco - resmungou ele, enrolando-se ainda mais nas cobertas. Mas se havia algum dever que Sara levava a sério, era o de acordar o irmão mais novo. Chegara a jogar água fria em cima dele, uma vez.
Acendeu a luz, foi até a cama de Bernardo e descobriu-o sem piedade:
– Levanta logo, seu palerma. Depois o papai se atrasa por sua causa e eu perco a primeira aula. Que pijama horroroso - concluiu, olhando para o irmão com profundo desprezo.
Quando ela saiu, deixando a luz ainda acesa, Bernardo não teve outro remédio: arrastou-se para fora da cama e vestiu-se, como um sonâmbulo.
A mãe já o esperava, de roupão, com a mesa do café posta. Não precisava levantar-se àquela hora, mas fazia questão de preparar café para os dois filhos. Especialmente para Bernardo.
– Esse mingau está sem gosto nenhum - reclamou Sara, provando a papinha de aveia.
– Põe mais açúcar, ué - instruiu Dona Susana, sem olhar para a moça. Toda a sua atenção era pouca para Bernardo. Dirigiu-lhe um olhar terno: – E você, também não gostou, meu querido?
– Está ótimo - afirmou Bernardo, com a boca um pouco cheia - Mas se desse para colocar...
– O quê, meu filho?
– Um pouquinho de canela...
– Já vou buscar - disse a mãe, levantando-se, pressurosa. Sara lançou-lhe um olhar de ódio.
– Veado! – sussurrou.
Bernardo fez-lhe um gesto de "psiu", e apontou para o pai, que lia o jornal. Moshe Levinsohn não gostava de palavrões. A mãe voltou com a canela:
– Alguma novidade no jornal, meu bem?
Seu Moshe abaixou o "Estado de São Paulo", e olhou a mulher com ar grave. Parecia um profeta bíblico:
– Os palestinos. Explodiram um ônibus ontem, em Israel.
– Que horror - comentou Dona Susana, distraidamente, mexendo a canela no leite do filho.
– Um ônibus civil. Mataram quatro pessoas, uma criança inclusive. São uns animais, esses árabes.
Bernardo pensou no sultão.

Na segunda-feira de manhã, a maioria dos mortais comuns chegava ao colégio com cara de sono e/ou cabelo despenteado, e/ou remela no olho, e/ou blusa fora da saia (ou da calça). Chegavam atrasados, correndo para a porta do último lugar do mundo onde desejariam estar, com um tremendo mau-humor.
Mas não Viviane. Viviane atravessava o portão impecavelmente vestida, a calça combinando com a blusa novinha e bem-passada, um leve traço de maquiagem no rosto, o cabelo castanho esmeradamente penteado de lado. Entrava na classe, dez minutos depois do sinal, com aquele seu andar de gata – gracioso e lento como se nada no mundo valesse a pressa.
– Gostou da festa? – perguntou, já sentando ao lado de Bernardo. Sempre sentavam juntos.
– Adorei - mentiu ele, com o seu melhor sorriso.
– Mas você estava com uma cara tão esquisita...
– Depois a gente conversa, bem. O professor já está olhando pra nós.
Ela afundou-se na cadeira, com um muxoxo:
– Ih, esse cara é tão chato... - Passou os próximos cinquenta minutos alternadamente olhando as unhas e enrolando o cabelo no dedo. Não fez uma só anotação. Havia se acostumado a copiar toda a matéria de Bernardo. Aliás, copiar não: ele sempre lhe dava os xerox. Era muito mais fácil, bastava colá-los no caderno. Na véspera da prova ele ainda lhe explicava os pontos principais, e Viviane sempre conseguia notas razoáveis.
Sentou-se ao lado dele na hora do intervalo, mordiscando o sanduíche da cantina:
– Sexta-feira a Graziela vai dar uma festa de aniversário.
– Legal.
– Você vai?
– Só se você for também.
– Eu vou - disse ela. Ele tentou beijá-la na boca, mas Viviane empurrou-o: – Aqui não, Bernardo.
– Por quê não?
– Se o seu Matias pega a gente, vamos pra diretoria.
– Mas ele não está nem olhando.
– Ele aparece quando a gente menos espera. Está cheio de dedo-duros por aqui. Tem umas meninas que me odeiam, sabe?
Ia entrar de novo no seu assunto predileto: a conspiração que os "bagulhos" da escola haviam armado contra ela. Por inveja, claro. Bernardo detestava aquela lenga-lenga, embora ela contivesse alguma dose de verdade. Viviane nunca fora muito popular com as outras meninas. Antes de começar o namoro, ouvia referências frequentes a ela; a palavra mais usada era "fresca".
Mudou de assunto:
– Você leu aquele livro que eu te dei?
– Aquele do tal jornalista?
– É.
Ela terminou de mastigar o sanduíche. Comia muito pouco.
– Bom... pra falar a verdade, achei meio chato. Li só as dez primeiras páginas.
O namorado ficou olhando-a, decepcionado.
– Não gostou?
– É, não gostei.
– Por que? Não entendeu?
Veronica jogou o cabelo para trás, passando depois a mão pela massa castanha.
– Entendi perfeitamente. Quer ver? É um livro sobre os presos políticos, aqueles caras que eram contra o governo, deram sopa e foram parar na cadeia. E aí esse jornalista foi lá e escreveu esse livro, e o governo não gostou e proibiu. Mas agora liberaram.
– Isso.
– E aí ele conta a vida dos caras na prisão, não é? e fala desses partidos deles. Um monte de partidos diferentes, um acha que o comunismo é assim e o outro acha que é assado. Eles ficam brigando lá na cadeia. Agora, querem que soltem esses caras. É a tal da anistia. Fica tudo zerado, eles saem da cadeia, e vão brigar em casa. Não é?
Bernardo estava abismado com a quantidade de coisas que ela absorvera, lendo apenas dez páginas.
– Isso mesmo. – Entendi, mas achei muito chato.
Bernardo, perplexo, não achou o que responder.

Na quarta-feira, depois da aula de Inglês, chegou em casa às sete horas. Sua mãe corria de um lado para outro, aflita.
– Ah, meu querido, até que enfim você chegou. Vem ajudar a mamãe. Vem estender essa toalha. Elas vão estar aqui em uma hora.
– Ah, mãe, estou com dor de cabeça...
Dona Susana olhou para o seu caçula, compadecida:
– Tadinho! Não pode estudar demais, meu amor. Vai descansar um pouco no seu quarto...
– Ele está com frescura, mãe - atalhou Sara, que colocava tigelas de salgadinho em cima do bufê. - Toda vez que as suas amigas vêm jogar buraco, esse idiota finge que está morrendo, pra não ajudar.
– Sara! – repreendeu a mãe, fuzilando-a com o olhar.
Bernardo ergueu a mão:
– Deixa, mamãe. - disse ele, com um ar nobre. – Eu vou arrumar a mesa pra senhora. A Sara tem razão, eu só estou com um pouquinho de dor de cabeça.
– Dói muito? – precipitou-se a mãe. - Aonde? Não será na nuca? Oh, meu Deus...
– Mãe, faz quatro anos que a epidemia de meningite acabou! - gemeu Sara. - E esse imbecil não pega nem resfriado.
– Sara, isso é jeito de falar do seu irmão?
– Deixa, mãe - disse Bernardo, compreensivo. - Ela está chateada porque o namorado hoje deu o cano. Deixou ela esperando na porta do colégio.
– Eu já não disse pra você vir pra casa de ônibus, menina? – repreendeu a mãe, distraída - Fica aí andando no carro desse rapaz, sozinhos, de baixo pra cima...
E saiu da sala, apressada. Bernardo aproveitou sua ausência para filar um punhado de salgadinhos de cima do bufê. Depois olhou para a irmã e comentou, com uma risadinha de boca cheia:
– Maria Gasolina...
– Você é um escroto, sabia, Bernardo? Um escroto - murmurou ela, entredentes.

Dona Verônica foi a última a chegar, quando as outras senhoras já estavam se remexendo nas cadeiras, impacientes.
– Gente, desculpa! Tive um dia horrível - ela arfou, deixando a bolsa em cima do sofá. Usava um conjunto de calça e casaquinho de veludo marrom, com uma camisa branca por baixo.
– Muita correria, Vivi? – perguntou Dona Susana, já pegando as cartas.
– Um horror! Fui buscar umas roupas que o Zé Carlos encomendou pra viagem, chequei a reserva dele no avião, apanhei o passaporte... Tudo sozinha, né, porque o coitado não tem tempo pra nada. Passa o dia todo enfiado no escritório. E você, Bernardo, como está? – disse, interrompendo-se bruscamente.
Encafifado, o menino se aproximou da mesa. Será que ela ia limitar-se a um aperto de mão? Ou ia beijá-lo, como da outra vez? Não seria má idéia.
Mas Verônica não fez nenhuma das duas coisas: limitou-se a um tapinha no rosto, e depois voltou a atenção para as cartas. Bernardo ficou aspirando o seu perfume, um pouco humilhado. Foi até a cozinha, bebeu água, e voltou à sala. Normalmente, gostava de ficar ouvindo a conversa das amigas da mãe. Gostava de ouvir mulheres tagarelando; achava o som reconfortante. Mas naquela noite não estava tão entusiasmado. Pediu licença e retirou-se para o seu quarto. Foi dormir.
Deixou a porta aberta. O quarto estava um forno.

Acordou meia hora, depois de um desses sonos que, embora curtos, dão a impressão de terem durado séculos. Estava tonto, com a cabeça pesada.
O som que o despertou foi o de uma porta se abrindo. Bernardo levantou-se, piscando muito, e espiou pelo corredor meio escuro. Ainda teve tempo de perceber Verônica, deslizando para fora do quarto de Dona Susana.

– Você está atrasado. Puxa vida, você está meia hora atrasado. O papai já está esperando na sala.
Quando Viviane emburrava, tinha um jeito todo especial de fazer beicinho. E estava bonita, assim emburrada. Usava uma camisa de cetim azul-escuro com saia branca. Parecia uma mulher feita e crescida.
– Nossa, como você está linda! – ele murmurou, num tom de sincera admiração.
– Não muda de assunto, Bernardo. Meu pai está lá na sala, com a maior cara de saco cheio. É capaz de nem levar a gente. Desde o começo da semana que eu estou te falando: sexta-feira, às nove em ponto. Vai me dizer que esqueceu?
– Não esqueci, benzinho - explicou ele, com um ar brando. - É que deu um problema lá em casa, minha mãe estava superpreocupada.
– Que problema?
– Ah, sei lá, sumiu um anel dela. Ela revirou a casa inteirinha, eu tive que ajudar a procurar também, minha irmã ajudou, meu pai... Ninguém achou. Parece que o anel evaporou.
– Vai ver foi a empregada - disse Viviane, já mais calma, se penteando no espelho.
– A gente não tem empregada. Nossa, minha mãe quase deixou a gente louco com esse anel.
– Como é que ele é? – Viviane, curiosa, desviou o olhar do espelho.
– Não sei explicar direito... É de brilhante. Um desses anéis que tem uma pedra só.
– Um solitário. E é grande?
– Mais ou menos desse tamanho - disse Bernardo, incerto, mostrando com o dedo indicador enrolado.
– Puxa! – exclamou Viviane, com os olhos brilhando. - Sua mãe tem muitas jóias assim?

A festa de Graziela tinha gente até na calçada. Sandra, a melhor amiga de Viviane, estava esperando-os ali.
– Tem muita gente lá dentro? - perguntou Bernardo
– Um monte! - e Sandra fez o gesto com os dedos. - Viviane, vem cá, preciso te contar uma coisa...
As duas se retiraram para um canto e lá ficaram, entre cochichos e risadinhas. Bernardo ultrapassou o portão. O gramado em frente à casa também estava lotado. Aborrecido, ele constatou que não havia nenhum local escuro e tranquilo, onde pudesse levar Viviane.
Pelo menos, graças a Deus, a festa tinha rock.
Um homem careca, de meia-idade, saiu da casa. Olhou à direita e à esquerda. O seu vulto alto e magro parecia deslocado, no meio daquela multidão de adolescentes. Seus olhos encontraram os de Bernardo.
– Boa noite.
– Boa noite - respondeu o garoto, intimidado.
– Eu sou o pai da Graziela - anunciou o homem, solenemente. - Duílio.
Bernardo apertou-lhe a mão.
– Muito prazer, seu Duílio.
– E você, como se chama? – perguntou o homem. A conversa se processava aos gritos, por causa do rock que saía da casa, no volume máximo.
– Bernardo.
– Bernardo do quê? – berrou o homem. Tinha um ar autoritário. Parecia acostumado a interrogar.
– Bernardo Levinsohn.
– Ah - fez ele, levantando as sobrancelhas. - Levinsohn, hum. Você é colega da Graziela?
– Não exatamente. Quer dizer, ela está no primeiro colegial, eu estou no segundo... - Nesse momento, uma mulher de cabelo amarelo veio juntar-se à conversa.
– Duílio, os vizinhos vão reclamar do barulho. E "eles" já quebraram vários copos, eu vi. Inclusive um do jogo de cristal. Também estão jogando papel e até pedaço de comida no gramado - disse, no tom de quem contabiliza os estragos de uma praga de gafanhotos.
– O que você quer que eu faça? – suspirou o homem, resignado. - Olha, Marta, esse é um coleguinha da Graziela. O Bernardo. Bernardo Levinstein.
– Levinsohn - corrigiu Bernardo.
– Muito prazer - disse a mulher de cabelo amarelo, automaticamente. Continuava a olhar em torno, preocupada.
Bernardo sorriu para ela:
– Muito bonita a sua casa - disse. - Foi a senhora mesmo que plantou essas roseiras?
Atingira o alvo certo; a mulher voltou a cabeça.
– Fui eu sim. Estão bonitinhas, né?
– Eu nem sabia que existiam rosas dessa cor! - disse ele, apontando para uma flor amarelada.
– Ah, não se acha mesmo uma dessas todo dia. São difíceis de cuidar... – e a mulher disparou a falar, encorajada pelo sorriso atento de Bernardo. Durante os próximos cinco minutos, ele ouviu, com ar atento e maravilhado, a aula de jardinagem da dona da casa.
Quando finalmente se afastou do casal, a mulher suspirou:
– Que menino mais bem-educado. Um desses é que a Graziela devia namorar. E você viu? Vai fazer Engenharia, Duílio.
O marido grunhiu.
Viviane agarrou o namorado pelo braço:
– O que você estava conversando com os pais da Graziela?
– Nada de importante.
– O pai dela é um chato.
– Mas a mãe é simpática.
– Pode ser - disse ela, com ar de tédio. - Vamos entrar?
Abriram caminho entre a multidão. Bernardo segurava-a pela cintura. Uma massa de corpos suados enchia a sala de estar, cujos móveis pesadões tinham sido removidos para os lados. O rock tocava a todo volume, e a única iluminação era a luz negra piscante, que ressaltava dentes, copos de papel, vestidos brancos... As superfícies alvas assumiam um estranho brilho arroxeado.
Bernardo demorou a acostumar os olhos, e só então pôde ver algumas cenas da festa, aos flashes: as garotas tentando se comunicar aos berros, alguns rapazes dançando desajeitadamente e, finalmente, um ex-colega de natação aos beijos com uma menina loira, a mão já se arriscando pelo decote.
Viviane puxou-o pela manga:
– Vamos sair daqui? Não aguento esse barulho.
Ele seguiu-a, um pouco tonto. Os dois copos de cuba-libre que havia tomado já estavam fazendo efeito. Foram até a parte de trás da casa, onde alguns casais namoravam em silêncio. Viviane sentou-se num banquinho de alvenaria:
– Que droga de música! – reclamou.
– Não está tão ruim assim - protestou Bernardo. Sentado ao seu lado, tentava abraçá-la pela cintura. Beijá-la no pescoço.
– É horrível - replicou Viviane. Mas já estava com os olhos semifechados. - O irmão da Graziela resolveu cuidar do som... Faz meia hora que ela está tentando tirar ele de lá.
– É? – perguntou Bernardo, inteiramente inconsciente do que ela dizia.
Beijos. Beijos. A saliva doce dela se misturando à sua. Beijou-a do jeito que ela gostava: acariciando a pontinha da língua, suavemente, bem devagar. Beijou-a até ficar sem fôlego.
– Nossa - disse Viviane, quando ele parou por um minuto. Afastou-se um pouco dele. Seus olhos estavam molhados, a boca parecia ainda mais linda, toda amassada. Bernardo voltou a apertá-la: queria desesperadamente esfregar-se contra ela. A garota emitiu um vago gemido de protesto, mas ele beijou-a de novo, tirando-lhe a capacidade de falar.
Sua mão, cautelosamente, começou a viajar em direção ao seio esquerdo de Viviane. Com a adrenalina no máximo, Bernardo ofegava. Oh meu Deus, tomara que dessa vez ela deixe. Só dessa vez. Que é uma esfregadinha só? Uminha. Só uma, meu Deus, por favor. Finalmente chegou onde queria, e começou, com a mais extrema cautela: carinho, massagem. Isso. É só uma massagem, Viviane, não está vendo? Não tem maldade nenhuma. Mas ela não estava protestando. Numa manobra ousada, Bernardo então passou a beijá-la no pescoço. Ela fechou os olhos e deixou-se ir...
Pela primeira vez, Bernardo conseguiu pegar aqueles seios, avaliá-los, sentir sua forma com toda precisão. Sim, eram redondinhos, exatamente como apareciam debaixo daquele suéter que ela usava nas manhãs frias. Aquele de malha cinza. Chegou a sentir os biquinhos eretos debaixo do sutiã, Deus seja louvado, Viviane usava um sutiã muito leve. E se tentasse tirá-lo? Não, isso ia assustá-la. Num esforço sobre-humano, conseguiu tirar a mão dos peitos de Viviane. Mas a mão, como por vontade própria, foi cair nos joelhos dela. A menina suspirou fundo. Então Bernardo, subitamente enlouquecido, enfiou a mão debaixo da saia. Encontrou um tecido suave, já meio úmido, entre as pernas...
– Bernardo! – gritou ela. Deu um salto e ficou de pé olhando-o, furiosa.
Pronto. Estragara tudo. Droga. Droga droga droga.
– Você está pensando que eu sou o quê?
– Não estou pensando nada, amor. Juro.
– Eu não sou esse tipo de menina, viu?
– Eu sei. Eu sei.
– Então por quê fica tentando essas coisas comigo?
– Mas você estava gostando!
A resposta saiu da sua boca antes que pudesse pensar. Mesmo com a fraca iluminação do quintal, pôde ver a namorada avermelhar.
– Nunca mais fale comigo, ouviu? Nunca mais.
Virou-se, rodando a ampla saia, e voltou para dentro da casa. Bernardo ficou sentado no banco de alvenaria, sozinho e infeliz. O verão estava no fim; já se podia perceber um ventinho frio no ar da noite.
Quem podia entender as mulheres? Ela não tinha se deixado acariciar? Porque ficar tão furiosa, quando ele tentara avançar mais um pouquinho? As garotas são esquisitas - pensou. Não sabem o que querem. E eu vou morrer virgem - concluiu, finalmente.
Será que ela ficaria brava por muito tempo?
Alguém atravessou o gramado e veio sentar-se ao seu lado. Era o Dinho.
– Tudo bem, Bernardo?
– Tudo legal. - Impulsivamente, acrescentou: – Tem unzinho aí?
– Só.
– Então vamos fumar.
– Falou.
– Mas vamos mais longe daqui. Senão a gente estraga as rosas da Dona Marta.
– Quem é a Dona Marta?

A professora de Inglês é alta, morena, de cabelos bem pretos. Tem um corpo fantástico: quando ela se senta, Bernardo arrisca um olhar às suas pernas, longas e esguias. A professora de Inglês também é muito nervosa. Não suporta os alunos turbulentos, e às vezes tem ataques de raiva. Quando a classe está agitada demais, ela sai batendo a porta.
Um modelo de comportamento nas outras aulas, Bernardo se pega fazendo bagunça na aula de Inglês. Ele conversa, atira papeizinhos, abandona sua carteira. No fundo, espera que 'ela' interrompa a aula, lance um olhar furioso, e grite na sua voz rouca: "Bernardo!" Nessas ocasiões, o garoto sente um esquisito arrepio de prazer percorrer seu corpo. Mas tenta não exagerar a dose, para não ser expulso da classe.
Um dia, Bernardo consegue enfurecer de verdade a professora. Como castigo, ele deve ficar retido depois da aula. Bernardo aguarda, exultante, que o sinal toque. Os outros alunos saem, e ele fica sozinho com a professora.
Ela então vai até a porta, tranca-a e volta para a escrivaninha. Senta-se em cima do móvel, com movimentos ágeis de bailarina.
– Muito bem - diz, na sua voz rouca e musical – Dessa vez você ultrapassou todos os limites. Prepare-se, Bernardo, porque você vai ser castigado.
Bernardo, ouve-a, arrepiado. A professora, então, tira da sua bolsa um estranho objeto metálico. O aluno mal pode acreditar em seus olhos: é um par de algemas!
– Esse – continua a mestra – é o melhor jeito de lidar com gente com você. Gente que não pára quieta.
Num gesto rápido, ela prende os dois pulsos do aluno à cadeira, antes que ele possa reagir. Volta a sentar-se em cima da escrivaninha, e diz, satisfeita:
– Agora, Bernardo, você fica quietinho aí... bem quietinho. Não faça um movimento, senão vai ser pior para você.
E então, frente aos olhos arregalados do aluno, a professora começa a se despir. Primeiro se livra dos sapatos de salto alto; depois, com gestos lentos e capciosos, da meia-calça. A saia e a blusa vão logo em seguida, e agora Bernardo tem à sua frente uma professora de Inglês em trajes menores.
Oh, my God!
– Veja isso – susssura ela. E, no momento seguinte, já se livrou do seu sutiã... preto, é claro. Extasiado, Bernardo contempla um par de seios grandes, duros e perfeitos. Ele faz movimentos convulsivos para se livrar das algemas.
– Hã-hã! – faz a professora. – Nem pense em fazer um movimento, Bernardo. Nem unzinho, seu verme! – Aproxima-se da cadeira, curva-se para o aluno e balança os seios a centímetros do rosto dele. – Bem que você gostaria de pegar neles, hein, seu cretino? Gostaria?
O infrator responde com um gemido de sofrimento.
– Mas não vai pegar! – diz ela, em tom triunfante. Afasta-se dele e livra-se, com movimentos sensuais, da calcinha preta. Dá uma volta, para que ele possa apreciar a sua fantástica bunda. - Que tal, Bernardo?
– Me solte, por favor! – diz ele, num sussurro rouco.
– Nem pensar!
– Me solte, professora! Prometo que vou ser o seu melhor aluno! Faço tudo que a senhora quiser! Fico mudo e paralítico na aula! Juro!
– Hum - diz ela, em tom de dúvida. – Será que você vai cumprir suas promessas?
– Vou sim! Quero cair mortinho aqui, professora.
– Muito bem - diz ela, já num tom diferente – Talvez você esteja falando a verdade... Vamos fazer um teste.
E, aproximando-se da cadeira, começa a soltar uma das mãos de Bernardo. Só uma. Sua enorme cabeleira preta roça no peito do aluno, que está prestes a se transformar num raríssimo caso de infarto adolescente.
– Pronto, Bernardo, soltei uma de suas patinhas. Está contente?
– Muito, professora - ofega ele, olhando para os peitos que balançam à sua frente. – Muito.
– Tem alguma coisa que você queira pegar, seu delinquente?
– Tem – responde ele, quase babando.
– E o que seria, Bernardo? Um silêncio de quase insuportável expectativa segue essa pergunta. Finalmente, o aluno, desvairado, responde:
– Isso! E, ato contínuo, abocanha um dos seios da professora.


– Bernardo! Bernardo!

– Que foi, mãe? – berrou o masoquista, de dentro do seu quarto.
– A festa do Rodriguinho, meu filho! Você já começou a se vestir?
– Ah, mãe! Eu tenho mesmo que ir?
Houve um silêncio magoado do outro lado da porta. – Tá bom, tá bom, eu vou. - Saltou da cama, com um suspiro. Do lado de fora do quarto, os passos da mãe se afastaram. Bernardo começou a procurar sua roupa de festa: o terno, a maldita gravata, e por último, aquele kippah1 ridículo, que o deixava com cara de bobo.
Como se não bastasse o seu próprio bar mitzvah2 , há três anos, ele ainda estava condenado a assistir o dos primos. Primos-irmãos e primos-segundos, a família era muito unida e numerosíssima, com diversas ramificações. Alguns primos a cujo bar mitzvah comparecera quando criança já estavam com filhos grandes, que logo fariam o seu próprio bar mitzvah. Sem falar nos amigos da família. Aquilo não ia acabar nunca!
Mas não tinha coragem de decepcionar a mãe, que andava tão chateada ultimamente. A avó, lá no Rio, doente; Sara cada vez mais rebelde e malcriada; e, para cúmulo dos males, o solitário, a sua jóia favorita, sumira! Era muito azar mesmo.
Chegaram atrasados; o salão de festas já estava cheio. Bernardo foi envolvido numa verdadeira nuvem de tias e primas, todas vestidas a caráter: sedas, cetins, muito laquê, e quilômetros de pérolas. "Mas como o Bernardinho cresceu!", grasnavam, extasiadas, uma depois da outra. Crianças corriam de um lado para outro, chocando-se contra as pernas do garoto, que começou a se enervar.
– Bernardo, olha só quem está aqui! – exclamou a mãe, de repente. Ele virou-se, esperando encontrar mais uma tia-avó de cabelo azul, ou uma prima irreconhecível com o nariz operado.
Num canto do salão, lindíssima, toda em amarelo, estava Verônica.
– Mas o que você está fazendo aqui? – perguntou D. Susana à amiga, surpresa.
– Ué, não te contei que conheço a Paula, mãe do Rodriguinho, desde o ginásio?
– É mesmo, tinha esquecido. Que mundo pequeno... No fim, todos se conhecem. (O "mundo" eram os seus parentes, amigos e um seleto círculo de frequentadores da Hebraica. Não era de admirar que se conhecessem todos).
– Susana, você está ótima. Que penteado bonito! A propósito: achou o seu anel?
– Não... - disse a mãe de Bernardo, desanimada. - Devo ter perdido ele sem perceber. Vai ver escorregou do dedo. Emagreci tanto, ultimamente....
– Você está bonita sem anel mesmo - consolou Verônica. Voltou-se para o rapaz: - Nossa! Mas o seu filho está um homem! – E lançou-lhe um olhar cintilante. Bernardo sentiu que avermelhava. Como alguém podia ter olhos tão profundamente negros, tão brilhantes? E aqueles cílios enormes?
– E os seus meninos, Verônica? – perguntou a mãe, olhando em torno.
– Não quiseram vir. Acham que é festinha de criança... Não se interessam.
– Pois o Bernardo veio - disse D. Susana, olhando amorosamente o filho.
– Sorte sua... Acabei vindo sozinha, porque o Zé Carlos já viajou.
– Demora pra voltar?
– Três meses - respondeu Verônica, prontamente.
Não parecia aborrecida com a viagem - decidiu Bernardo. Como seria a vida de Verônica com o marido? Só o vira algumas vezes: era um homem careca, sempre bem vestido, já começando a engordar. Costumava dominar as conversas, falando alto, com sua voz sonora, da Bolsa de Valores, do mercado de ações, da taxa de câmbio... Um chato.
– Eles são muito ricos - sua mãe comentara uma vez.
Verônica fizera um curso de Decoração, mas o marido nunca permitira que trabalhasse. Era mãe e dona-de-casa. Mas Bernardo sentia que ela era diferente da sua mãe, ou das outras mulheres da mesma idade. A criação dos filhos, o cuidado com a casa, não pareciam absorvê-la por inteiro. Era como se, por trás daquele exterior risonho, houvesse sempre uma ponta de mistério.
Dali a pouco, Dona Susana foi falar com uma conhecida do outro lado da sala.
– Quer que eu pegue uma bebida para a senhora? – Bernardo perguntou para Verônica.
Ela riu. Seria impressão sua ou agora o riso estava mais rouco, a voz mais quente?
– Senhora, não, Bernardo, pelo amor de Deus, não faça mais isso comigo... Nem os meus filhos me chamam de senhora.
– Quer que eu pegue uma bebida para você? – corrigiu ele, embaraçado.
– Duas - disse ela. – A gente bebe juntos.
– E o que você quer? – perguntou ele. Sentia-se adulto, quase ousado.
– Um uísque. Duplo, por favor, com bastante gelo.
– Já vou buscar - e Bernardo disparou para o bar. O barman levantou as sobrancelhas ao ouvir o pedido, mas não fez nenhum comentário, e Bernardo atravessou a sala com os dois copos cheio. Se a mãe o visse, teria de dizer que ambos eram para Verônica. Coitada, acabaria com fama de bêbada.
Quando chegou do outro lado, entretanto, ela tinha sumido. Decepcionado, Bernardo ficou olhando para a cadeira onde ela estivera sentada. Teria feito alguma coisa errada?
De qualquer forma, não iria procurá-la - decidiu. Sentou-se e bebeu o uísque, chateado, pensando em outras coisas. Viviane estava há uma semana sem falar com ele. Chegara ao cúmulo de ir sentar-se do outro lado da classe, como se Bernardo tivesse alguma doença contagiosa. Ela que se lixasse - pensou, terminando o uísque. Não iria mais atrás dela; não era palhaço de ninguém.
E se tomasse o segundo copo de uísque? Olhou em volta: ninguém estava prestando atenção. Com um movimento rápido, escondeu o copo vazio atrás da poltrona, e começou a beber o outro.
Quando o líquido dourado esgotou-se, a festa estava no auge. Já haviam tocado "Hava Naguila". Os pares mais velhos estavam rodopiando ao som de músicas de duas décadas atrás. As crianças ainda estavam com a corda toda, e Bernardo... Bernardo precisava ir ao banheiro.
Levantou e sentiu o mundo vacilar. Não estava acostumado com tanta bebida. Tomara que a mãe não o visse, enquanto ele cambaleava em direção às toaletes! Mas ela estava muito ocupada do outro lado do salão, conversando e rindo com um grupo de mulheres, enquanto o pai de Bernardo cochilava gravemente. Onde ficava a toalete... ah, sim, devia ser ali, ao lado do palco. Que calor, meu Deus do céu. Bernardo entrou no banheiro vazio, e se trancou num dos compartimentos.
Estava abotoando a braguilha quando, para o seu mais absoluto horror, ouviu duas pessoas conversando do outro lado da porta:
– ... e então ele disse: "mas nós não convidamos ninguém fora de São Paulo!"
– Que cara-de-pau! É mentira, eu vi muito bem os primos dele do interior, pegando maionese no bufê. Esse sujeito é um cínico. Deixa estar que a Rebecca vai ficar sabendo disso. Eu vou telefonar pra Campinas amanhã mesmo.
Eram vozes femininas. Bernardo começou a suar frio.
– Ele sempre esnobou a nossa família. Menina, esses brincos estão me matando!
– Estou vendo... Também, você atarrachou com força demais. Tire um pouco, senão é capaz de inflamar.
– Já estou tirando.
– São de brilhante, né, Marina? Que bonitos.
– É, gosto muito deles.
Por quê fora beber tanto uísque? Nem olhara para a porta, e ali estava o resultado: encurralado no banheiro feminino! Que diriam aquelas mulheres, se o vissem ali? Que explicação daria? Impossível. Esperou que elas entrassem no compartimento.
– Meu Deus do Céu! Raquel, minha meia está rasgada até a calcinha.
– Tá brincando.
– Juro.
A costa estava limpa, elas iam demorar para sair. Bernardo abriu uma fresta da porta, apenas para ver Verônica entrando no toalete, silenciosamente.
Fechou a porta, assustado. Entre Verônica e aquelas outras duas, era provável que passasse o resto da noite ali, trancado. Que constrangedor, se ela o encontrasse! Por outro lado... quem sabe? talvez ela também estivesse com uma meia rasgada, e resolvesse trocá-la bem em frente ao espelho. Sem pensar mais nem um segundo, Bernardo foi abrindo cautelosamente a porta.
Mas o que Bernardo viu pela fresta não foram as pernas de Verônica, nem qualquer outra parte mais excitante da sua privilegiada anatomia. Não. O que ele viu foi Dona Verônica, a amiga íntima da sua mãe, mãe dedicada de dois adolescentes, esposa fiel de um executivo do mercado de valores, avançando em direção a um determinado par de brincos, deixado em cima da pia. Bernardo poderia ter caído duro ali, naquele exato instante.
Pelo espelho à sua frente, ele ainda viu o sorriso da ladra, contemplando-se no espelho, depois de escorregar os dois brincos para dentro do sutiã (de tão perturbado, ele nem sequer arriscou um olhar ao seu conteúdo). Depois, ela deslizou para fora do toalete.

No momento seguinte, coberto de um suor frio, Bernardo também saiu correndo de onde estava. Se aquelas duas mulheres o descobrissem ali, seria acusado do roubo dos brincos, sem dúvida alguma.
Lá fora, espiou em todas as direções. Graças a Deus, ninguém o tinha visto. Verônica sumira. Saiu andando tropegamente pelo salão, perturbado, até trombar com a mesa dos pais.
– Bernardo, onde você estava? – perguntou Dona Susana.
– Por aí... - respondeu ele, vagamente. Fez uma tentativa desajeitada para sentar-se, mas errou a pontaria e quase derrubou a cadeira.
– Preste mais atenção, filhinho, senão você se machuca!
Seu Moshe tinha despertado, subitamente:
– Susana, esse menino andou bebendo - denunciou, na sua voz de baixo profundo.
– O quê? – fez a mãe, incrédula - O Bernardo?
– Só tomei um uisquinho. - defendeu-se ele.
– E você pensa o quê, que uísque é guaraná? – repreendeu o pai. - Comece desse jeito, meu filho, que você tem um belo futuro pela frente! Tem a quem puxar!
– Moshe! – fuzilou a mãe, furiosa. - O menino não fez nada de errado! Ele não está acostumado a beber, só isso! E outra coisa: mais uma indireta sobre o meu irmão, e eu saio daqui agora mesmo!
– Ora, Susana, não negue a realidade. Seu irmão é um bêbado.
– Ele é DOENTE, ouviu? – os olhos de Dona Susana já tinham se enchido de lágrimas. - Doente. Não tem culpa do que faz. Meu irmão está em tratamento.
– Ótimo. Quando acabar o tratamento, espero que ele se lembre de pagar o dinheiro que me deve.
– O dinheiro que ele te deve você pode abater daquilo que emprestou do meu pai pra começar o seu negócio! Ouviu, seu grosso?
– É, mas eu paguei!
Até a discussão acabar, Bernardo teve tempo de ficar perfeitamente sóbrio. Pena que suas pernas não parassem de tremer.

Na volta, D. Susana chegou a perguntar se ele estava se sentindo mal.
– Você está tão quietinho, meu amor. Comeu alguma coisa que fez mal pra barriga?
– Não se preocupe, mamãe: quando o Bernardo for pro banheiro, eu olho o cocô dele - ironizou a irmã.
Bernardo não respondeu. Preso a uma idéia fixa, ele olhava as luzes da cidade passarem pela janela do carro. Quando o pai parou num sinal dos Jardins, ele abriu a porta do seu lado:
– Eu fico aqui.
– Que história é essa? – grunhiu o pai.
– Ficou maluco, Bernardo? – perguntou a mãe.
– Me lembrei que preciso pegar uns cadernos na casa dum amigo.
– Mas a essa hora?
– Não precisa me esperar pra dormir - e ele bateu a porta com força. Saiu andando depressa, antes que a mãe viesse atrás.
Já estivera naquele endereço antes, sabia onde era. Claro, o prédio era muito mais luxuoso que o seu. O saguão reluzia, cheio de mármores e espelhos polidos. Mas não se deixou intimidar pela má-vontade do zelador:
– Dona Verônica já deve ter ido dormir.
– É urgente, pode chamar - respondeu Bernardo, impávido.
O zelador ergueu o interfone e apertou os botões, sem deixar de encarar o garoto. Ouviu a resposta do outro lado, resmungou alguma coisa, e colocou o fone no lugar:
– Ela disse que você pode subir - rosnou, obviamente desaprovando a decisão de Verônica. – O elevador é aí do lado.
Doze andares, e em cada andar o seu coração parecia bater mais forte. Estava terrivelmente assustado, com medo... e excitado. Aquilo ia ser muito perigoso. E divertido.
Verônica já estava esperando-o, com a porta aberta:
– Bernardo? Que foi? Aconteceu alguma coisa com a sua mãe?
– Nada, Verônica, nada. Ela está ótima - tinha finalmente conseguido omitir o "dona". Sentia-se forte e poderoso. - Eu precisava falar com você.
Ela já tinha tirado o vestido amarelo. Estava usando um pegnoir brilhante, que contrastava com o tom bronzeado da sua pele. Olhou-o com ar incerto, depois esboçou um sorriso. Fez um gesto indicando a sala, atrás de si:
– Entre.
Na sala, ele se sentou no sofá à sua frente (os joelhos ainda tremiam). Houve um momento de silêncio; e então, justamente quando os olhos de Verônica começavam a mostrar uma leve impaciência, ele disparou a falar, numa súbita inspiração, como se alguém lhe ditasse as palavras. Pelo resto da sua vida, Bernardo iria apelar para aquela voz interior, sempre que precisasse ganhar uma mulher.
– Sabe, Verônica, é que hoje me aconteceu uma coisa estranha, lá na festa do Rodriguinho.
– Ah, é? O quê?
– Eu precisei ir ao banheiro e, sem querer, entrei na toalete das senhoras.
Verônica ergueu os olhos para ele, alerta:
– Que chato.
– Isso mesmo. Chato. Quando eu estava lá dentro, entraram duas moças. Para não assustar elas, fiquei lá quietinho, esperando pra sair. Uma delas estava com a orelha muito machucada, por causa dos brincos...
– É - disse ela, perfeitamente calma. - Às vezes isso acontece. E as primas da Paula têm mania de andar carregadas de jóias... Uma cafonice. Aquilo não é brinco para se usar numa festa de família.
– Se não estou enganado - disse Bernardo, pigarreando - uma delas disse que o brinco era de brilhantes.
Houve um longo silêncio. Finalmente, Verônica ergueu-se da cadeira e foi se servir de um uísque.
– É, pode até ser. Vou pedir uma avaliação para o meu joalheiro.
Colocou algumas pedras de gelo no copo:
– Agora a gente pode tomar aquele uísque, se você quiser. Aliás, desculpa ter saído aquela hora. Encontrei uma amiga chatíssima, que eu não via há anos. Queria me apresentar o marido.
– Não tem importância. Eu bebi os dois copos.
– Os dois? – ela começou a rir, como se nada estivesse acontecendo. Ameaçou-o com o dedinho. - Bernardo, Bernardo... Melhor não beber mais. Se você passar mal, sua mãe vai ficar furiosa comigo.
Ele aproximou-se do bar:
– Ela vai ficar ainda mais furiosa quando descobrir que você roubou o solitário dela.
Apoiou-se nos cotovelos, com uma certa dificuldade, e ficou olhando-a. Meu Deus, que mulher linda! Verônica encheu outro copo, que passou para ele:
– Estou em suas mãos, Bernardo.
Ele sentiu um arrepio percorrer seu corpo. O que ela quisera dizer com isso? Era uma insinuação? O sorriso meio irônico não abandonara seus lábios. Em torno dos olhos, que brilhavam como estrelas, havia uma constelação de pequenas sardas. Avançou a mão, e, timidamente, pegou uma mecha dos seus cabelos. Acariciou-a.
– Você vendeu o solitário?
– Vender? – fez ela, com uma expressão indignada. - Você acha que eu vou vender um anel tão lindo? Aquele solitário não tem preço, Bernardo. Nem se faz mais esse tipo de armação.
Saiu de trás do bar, puxou-o pelo braço:
– Venha ver onde ele está. Abriu a porta que dava para a parte íntima da casa. O apartamento era enorme, luxuosamente decorado. Bernardo olhou, preocupado, as portas dos outros quartos. Verônica sorriu:
– Eles estão numa festa. Só voltam de madrugada.
Abriu a porta do seu próprio quarto, também enorme. Bernardo notou que a luz do abajur estava acesa, a cama já desfeita. "Ela estava se preparando para dormir", pensou.
O quarto todo recendia ao seu perfume. Com um movimento ágil, Verônica subiu na cama. Ficou de pé:
– Vem cá.
Perturbado, o garoto não conseguia se mexer.
– Vem! – insistiu ela, impaciente. - Tira o sapato e sobe aqui. - Desajeitadamente, ele fez o que lhe pediam, e pulou para cima da cama.
– Olhe aqui - e ela removeu um quadro da parede. Atrás, havia um cofrezinho - Só eu sei a combinação. O Zé Carlos até esqueceu desse cofre.
Girou a fechadura em movimentos rápidos. O cofrezinho se abriu. A primeira coisa que Bernardo notou, empilhada em cima de muitas outras jóias, foi o anel da sua mãe. Conhecia-o desde criança.
– Como você pode ver, não vendi - concluiu Verônica, fechando o cofre. Sentou-se na cama, e ele, sem saber o que fazia, sentou-se ao lado. - Está perfeitamente seguro comigo. Já você... nem tanto.
– Nem tanto o quê? – perguntou Bernardo, completamente zonzo.
– Seguro. - Ela olhou de novo o rapaz. De repente, curvou-se, e, delicadamente, começou a beijá-lo.
Cinco minutos depois, estavam na cama, nus.

Finalmente, Bernardo pôde matar a sua curiosidade:
– Você toma banho de sol sem... hã.... sem a parte de cima do biquíni? – foi a primeira coisa que perguntou, assim que a viu sem roupa.
Verônica começou a rir:
– Sempre que eu posso - murmurou. Curvou-se sobre ele e mordeu-lhe a orelha - Você nunca fez isso antes, fez?
Bem que Bernardo tentou mentir. Sempre fora um mentiroso razoável. Nos anos à sua frente, mentiria incontáveis vezes para as mulheres. Naquele momento, entretanto, só conseguiu dizer a verdade:
– Não.
Ela curvou-se mais um pouco sobre o rapaz. Os seios redondos, pequenos, de bicos muito definidos, roçaram seus mamilos, produzindo uma excitação quase dolorosa.
– Nem com a sua namoradinha? – perguntou - Aquela que estava outro dia na sua casa?
– N-n-não - gaguejou ele.
Ela deitou-se sobre ele. Mas Bernardo virou-se rapidamente, revertendo a situação. Numa verdadeira fúria, começou a beijar-lhe os seios.
– Por quê? - perguntou Verônica.
– Por que o quê?
– Por que você não foi pra cama com ela?
Confuso e excitado, ele respondeu:
– Ela não quer.
– Hummm - reagiu Verônica, entre uma risada e um suspiro - Que boba, essa menina.
E, sem mais palavras, colocou a mão dele entre as suas pernas. Bernardo pensou que fosse desmaiar.

Naquela segunda-feira de manhã, Viviane e Sandra estavam sentadas num canto do pátio. O sinal da primeira aula já tinha tocado, mas nenhuma das duas se apressou em entrar na classe. "Vou dizer pra professora que fiquei menstruada", dissera Viviane, com uma risadinha. "Se bem que já é a terceira vez em quinze dias...".
– Você e o Bernardo ainda estão namorando? – perguntou Sandra
– Acho que sim... – começou Viviane, um pouco hesitante. – O problema com o Bernardo é que às vezes ele... Ele avança o sinal, entende? Me dá um ódio!
Sandra acenou gravemente com a cabeça.
– Não pode deixar – sentenciou.
– Não pode deixar de jeito nenhum! – confirmou Viviane. – Senão, o cara pensa que você é fácil.
– É verdade.
– E eles contam um pro outro. Passam a ficha.
– É. Mas também, se eles não fazem com a gente, vão fazer com as outras – filosofou Sandra.
Viviane olhou para a amiga, com ar especulativo. "Que outras?", perguntou.
– As que deixam.
Uma espécie de inveja pairou no ar. No final, Viviane suspirou e disse:
– Também, esses cretinos só pensam nisso.

A aula de Matemática já tinha começado há meia hora, e Bernardo não tinha a mais remota idéia do que estava acontecendo.
Flutuava numa terra desconhecida, a milhares de quilômetros dali. A voz da professora lhe chegava de muito longe, vaga e remota. Bernardo só voltou a si quando começou a olhar as fileiras a seu redor, dirigindo-se mentalmente a cada um dos seus colegas:
"Eduardo, seu babaca! Você, que se acha o máximo porque o teu pai te deu um carro: já trepou? Não? Pois eu já! Tico, e você, hein, cara? Nada com a Patrícia, né? Nadinha.... Pois é, meu amigo, eu já consegui! E você, Ronaldo? Ah, você vai pra zona, né? Grande porcaria! Eu transei com uma mulher linda de morrer! De graça! Porque ela queria dar pra mim, entende? Ontem à noite, enquanto vocês estavam babando no travesseiro, eu estava com ela, viu?" E voltou a mergulhar no seu devaneio.
Depois do amor, os dois ainda tinham ficado muito tempo deitados, conversando.
– Mas por que você rouba essas jóias? – perguntou ele.
Verônica enrolou uma mecha de cabelo no dedo.
– Ah, sei lá. Roubo, pronto.
– Mas por quê? – insistiu o garoto. – Você não precisa delas. Seu marido pode comprar quantas você quiser.
– Isso é verdade – concordou ela, acenando com a cabeça. – Mas nem tudo na vida a gente faz por necessidade, Bernardo.
Rolou de bruços.
– Faz anos que eu roubo, sabia? E é muito divertido. Principalmente quando as pessoas descobrem o roubo, e você fica do lado, com a jóia na bolsa, bancando a inocente. Até finjo que estou preocupada.
Bernardo não conseguia acreditar nos seus ouvidos.
– Que nem você fez hoje com a minha mãe, lá na festa?
– É. Mas não precisa ficar bravo, Bernardo. Eu gosto muito da sua mãe.
– Então devolve o solitário dela – disse ele, bruscamente.
Ela balançou a cabeça.
– Devolve, Verônica. Eu boto de volta nas coisas da minha mãe. Ela nunca vai saber o que aconteceu.
– Não vou devolver aquele solitário, Bernardo. Nem pensar. Gostei muito dele. Aliás, só roubo as coisas que gosto.
– Mas você não pode nem usar essas jóias!
– Eu uso quando viajo. O Zé Carlos é distraído, não percebe.
– E as suas amigas? Quer dizer, as pessoas que você rouba? Nunca desconfiaram?
– Nem de longe! Você acha que eu sou boba? Olha, eu nunca roubo duas vezes no mesmo ambiente. Lá na festa, por exemplo, eu estava razoavelmente segura: quase ninguém me conhecia.
Fez festa no queixo de Bernardo:
– O que eu não esperava é que você, seu malandrinho, fosse se esconder dentro do toalete de senhoras... Mas não sou burra, Bernardo. Planejo as coisas com antecedência. Por exemplo, lembra um domingo à noite, quando eu passei na sua casa pra pegar o pó compacto?
Bernardo fez um sinal afirmativo.
– Pois é. Naquela noite, eu já sabia que a sua mãe ia estar fora. Fui ver onde ela guardava o solitário. Eu já estava de olho nele há muito tempo. Foi aí que eu descobri que a sua mãe deixa as jóias numa gaveta do banheiro. Muito descuidada. – completou, balançando a cabeça com ar repreensivo.
– E por que você não levou o anel naquele dia mesmo?
– Porque, se sua mãe desconfiasse de um roubo, ia logo pensar em mim. Eu era a única pessoa estranha que tinha estado lá naquela noite. Preferi roubar na noite do jogo de buraco, quando havia um monte de gente trançando pelo apartamento. Se bem que a sua mãe não pensou em roubo. Achou que tinha perdido o anel.
Bernardo estava horrorizado. Uma ladra! Bonita, rica, considerada – e ladra! Quando se pensava bem, era inacreditável. Talvez a sua carreira de crimes não se limitasse ao roubo. Ora, uma vez que uma pessoa começava por roubar, o que a impediria de matar? Com um calafrio, lembrou que estava ao seu lado, nu e indefeso, num apartamento vazio. Talvez ela tivesse uma pistola debaixo do travesseiro, como aquelas loiras do James Bond... Talvez o matasse para silenciá-lo, e mais tarde o jogasse na lixeira do prédio.
Bem, pelo menos ele não morreria virgem.
– Na noite do jogo de buraco, eu vi você saindo do quarto da minha mãe – anunciou.
– Viu? – disse ela, imperturbável – Bernardo, Bernardo! Você precisa parar de espionar atrás das portas, sabia? Coisa muito feia. Vou te apelidar de Bernardo Porta Aberta – e começou a rir.
– Verônica, devolve o solitário da minha mãe. Por favor.
O olhar dela ficou sonhador:
– Que gracinha... Acho tão bonito o jeito que você fala da sua mãe... Queria que os meus filhos fossem assim.
– Por favor, vai. Devolve o solitário – e Bernardo lhe deu o seu melhor sorriso. Aquele infalível, que não negava fogo com garota nenhuma.
Mas Verônica tinha quarenta anos, e já tivera a sua cota de sorrisos infalíveis.
– Não vou devolver, Bernardo, pronto. Não insista.
– E se eu contar pra minha mãe o que você fez? Aliás, e se eu contar também para aquelas mulheres lá da festa?
– Você não vai fazer isso – afirmou Verônica.
– Por que não?
– Porque se você fizer – e o sorriso se acentuou – nunca mais vai dormir comigo. E eu ainda tenho um monte de coisas pra te ensinar.
O ruído da carteira ao lado despertou Bernardo. Era Viviane – atrasada, para variar.
Em vez de ignorá-lo, como vinha fazendo nas últimas semanas, ela lhe deu um sorriso hesitante. "Sabia que essa raiva não ia durar", pensou Bernardo.

– Mãe, você me odeia, né? Aqui nessa casa eu não sou nada. É tudo só pro Bernardo, tudo. Detesto vocês! Um dia vou embora daqui e nunca mais volto!
Nessa altura do drama familiar, Sara saiu da mesa do almoço, em prantos. Terminou a cena batendo com toda a força a porta do seu quarto. Na mesa, ficaram um pai indignado, uma mãe chorosa, e um irmão tão abstraído, que nem se abalara com a menção do seu próprio nome.
O estrondo da porta fez com que ele recobrasse parcialmente a consciência.
– Que foi que aconteceu? – perguntou, com ar ausente.
– Você não viu? – respondeu Dona Susana, consternada. – Sua irmã quer acampar com o namorado! Sozinhos, os dois!
– Ué, não vejo porque não pode. Ela já é bem grandinha, não é? – disse Bernardo. E, empurrando o prato que mal tocara, foi para dentro. Os pais, perplexos, olharam um para o outro.
– Que bicho mordeu ele? – perguntou Moshe Levinsohn.
– E eu é que sei? – interrogou-se a mãe. – Esse aí também anda muito esquisito, Moshe. Faz um mês que não consigo falar com ele.
– Não será algum problema com a namorada?
– Não, semana passada ela esteve aqui, os dois pareciam bem...
A conversa foi interrompida pela volta de Bernardo à sala de jantar – vestido para sair, e cheirando à colônia do pai.
– Aonde você vai? – perguntou Dona Susana.
– Estudar com o Ronaldo. Só volto de noite, viu? – e saiu, batendo a porta.
– Ele não pára mais em casa – suspirou a mãe. – E mal ouve o que a gente diz. Parece que está no mundo da lua. Não sei o que deu no Bernardinho, francamente.

– É aqui – disse Verônica, começando a manobra para estacionar o carro.
O edifício ficava a poucas quadras do apartamento dela. Mas era menos luxuoso: os apartamentos deviam ser bem menores.
– É seu? - perguntou Bernardo.
– Herança da minha mãe.... Esse o Zé Carlos não pega - disse ela, com um leve tom de desprezo na voz.
Bernardo ficou olhando-a, curioso. Vinham se encontrando há um mês, fazendo amor diariamente, e ele não sabia quase nada daquela mulher. Fazia perguntas. Como era o seu casamento? Verônica mudava de assunto. Já tinha ido para a cama com outros homens? "Não é da sua conta", ela respondia, rindo. E os roubos? Por que ela roubava, afinal?
Lera em algum lugar sobre uma doença que levava as pessoas a roubar. Compulsivamente.
– Será que você não é.... como se diz? Cleptomaníaca? – perguntou, uma noite.
Ela lhe deu um tapinha na bunda:
– E é só eu procurar um bom psiquiatra que ele me cura, eu devolvo as jóias e fico feliz pra sempre, não é? Bernardo, Bernardo... O bom da sua idade é que a gente acredita que as coisas são assim, preto e branco, não tem cinza... Eu pareço uma pessoa doente?
– Não.
– Então, pára de bancar o médico, sim?
– Tá bom. Mas devolve o solitário da minha mãe.
– Nem pensar. – A conversa sempre terminava do mesmo jeito.
Os mergulhos no seu corpo compensavam todas as perplexidades de Bernardo. Percebeu que a agradava. "Você aprende rápido", suspirara Verônica, uma vez. E ela sempre tinha muita coisa para ensinar.
Oh, se ele soubesse antes que era tão bom, tão bom! E era real – a pele dela, o perfume dos seus cabelos, as palavras que murmurava durante o ato, era tudo real. Bernardo parou de sonhar com o harém do sultão, ou com a professora de Inglês. Nunca estivera tão feliz.
Mas Verônica se preocupava com a precariedade daqueles encontros. Ele ia vê-la logo depois do almoço, quando os seus filhos estavam na aula de Inglês. Ou à noite, quando saíam. Era tudo muito perigoso, podiam ser surpreendidos a qualquer instante.
– Vou te levar a um lugar tranquilo, que ninguém conhece – anunciou uma noite. E ali estavam.
Verônica entrou no saguão do prédio. O porteiro cumprimentou-a, sorridente.
– Esse aqui é meu sobrinho, seu Honório - anunciou ela, passando os dedos pelo seu ombro, como a perfeita tia orgulhosa. Seu Honório estendeu o sorriso para Bernardo, que sentiu-se avermelhar. Como aquela mulher mentia bem! Era uma verdadeira artista.
Entraram no elevador.
– E a sua namoradinha? – perguntou Verônica, de repente.
– Vai bem.
– Vocês continuam namorando?
Ele levou um tempo para responder.
– É, a gente continua – respondeu.
– Você não parece muito entusiasmado... – observou ela.
Bernardo olhou para ela. Estaria com ciúmes? nem que fosse um pouquinho só? Uma espécie de dor esquisita, aflitiva e ao mesmo tempo agradável, espalhou-se pelo seu corpo. De repente, ele estendeu a mão e apertou um botão no painel. O elevador parou com um tranco.
– Bernardo, você ficou maluco? – gritou Verônica.
Ele não respondeu. Aproximou-se dela e encostou-a contra a parede. Ela fechou os olhos, já excitada. Bernardo tocou a sua barriga, suas coxas. De repente, afastou-se. Ela abriu os olhos.
– Que foi?
– Nada – ele respondeu. Apertou de novo o botão, e o elevador voltou a subir. Verônica ficou olhando-o, surpresa.

O apartamento era pequeno, mas já estava "mobiliado". Tinha uma mesinha com quatro cadeiras, e uma cama de casal no quarto.
– Quem mora aqui? – perguntou Bernardo.
– Ninguém – disse ela, abrindo a janela. – Eu é que venho às vezes, para ficar sozinha. Guardei também algumas jóias aqui – completou, com um risinho maroto. – Quer ver?
Foi lá dentro e voltou com um punhado de objetos brilhantes, que espalhou pela mesa:
– Olha só... Esse anel é de rubi, roubei da minha sogra.
– Da sua sogra?
– Também ela deu muita folga, Bernardo. Imagine só, deixou o anel no porta-luvas do carro. Essa aqui é a pulseira de uma argentina, que frequentava a piscina lá do clube...
Bernardo aproximou-se dela por trás, começou a acariciar-lhe os seios. Ela fechou os olhos:
– Você está ficando, Bernardo... Está ficando...
– Ficando o quê?
– Ficando muito entusiasmado – ela tentou rir, mas não conseguiu. A paixão, os momentos de desejo que os dois dividiam, tinham um acento grave, que não combinava com as risadas. Aos poucos, Bernardo estava dominando aquela linguagem.
– Vamos lá dentro – sussurrou Verônica. No quarto, ela o despiu, e começou a percorrer com a boca o seu corpo. – Você é tão macio – suspirou – Tão... Tão doce, tão tenrinho, Bernardo. E essa pele....
– Você gosta do seu marido? – ele perguntou, subitamente.
– De quem? Do quê? – suspirou ela, tonta. – Ah, do Zé Carlos. Não sei. Gosto. Sei lá. Bernardo...
– Gosta ou não gosta?
– Agora não é o momento de discutir isso, meu querido. Ah, Bernardo... É tão bonito.
– O que é bonito?
– Isso – disse ela, tocando a parte em questão. – É lindo. Me deixa emocionada. Tem umas linhas tão.... nítidas. Eu tinha esquecido como era um homem circuncisado. Azar meu: quem mandou casar com um goyim3? Bem que a mamãe me avisou.
Brincava, mas seus olhos estavam em fogo. Bernardo disse, quase sufocado:
– Eu gosto tanto de você, Verônica. Tanto.
Verônica sumiu debaixo do lençol.

– Bernardo, hoje é dia da prova de Química!
– Cacete! – gemeu ele, consternado. Esquecera completamente.
– Bernardo! – fez Viviane, escandalizada.
– Desculpe. Saiu sem querer.
– Aonde você estava ontem à tarde? Te telefonei umas vinte vezes, pra você me ajudar a estudar, e nada! Nem sua mãe sabia onde você estava!
– Eu fui... ahn... fui na piscina.
– Na piscina? Com esse frio?

– Bernardo, você pode me explicar o que aconteceu?
Não. Bernardo, decididamente, não podia explicar a Moshe Levinsohn o que acontecera.
– Você nunca tirou notas como essas. Nunca! – e o pai atirou o boletim para cima da mesa, com solenidade. Do outro lado da mesa, Dona Susana olhava o seu rebento, aflita.
– Moshe, com certeza o Bernardo pode explicar... – começou ela.
– Mas é isso que eu estou pedindo: que ele explique! Cinco em Matemática! Quatro em Biologia! Em Física – esse menino nunca tirou menos que nove em Física, Susana! – quatro, também! O que significa isso, meu filho?
– Você está com algum problema, Bernardinho? – perguntou Dona Susana. Virou-se para o marido – Moshe! Pergunta primeiro se ele está com algum problema!
– Bernardo, você está com algum problema? – perguntaram os dois, em uníssono.

– O que é isso, Bernardo?
– Meu boletim.
– Posso ver? – Ela folheou as páginas do boletim. – Bernardo! Mas o que aconteceu com as suas notas?
– Deram uma piorada, né? - disse ele, constrangido.
– Mas sua mãe sempre disse que você era um ótimo aluno! – e Verônica olhou para ele, perplexa.
– E eu era.
– Por que piorou, então? Ah, já sei: não tem tido tempo para estudar, não é, coitadinho? Passa o tempo todo comigo, trancado nesse apartamento...
– Verônica, por favor, não começa – implorou ele. – Já chega a bronca que eu levei dos meus pais.
– Mas eles têm razão, Bernardo! Não, olha, seriamente: isso tem que parar. A gente pode começar a se ver menos. No máximo umas duas vezes por semana...
Mas Bernardo já a interrompera. Quando ela conseguiu se desvencilhar, recomeçou, com menos convicção:
– Eu não quero te prejudicar....
– Você quer me ver menos? – ele perguntou. E começou a beijá-la no pescoço, no colo. - Mas eu quero tanto ficar com você... Depois eu estudo.
– Depois quando? – ela gemeu.
– Sei lá. Depois.

Naquela segunda-feira, pela primeira vez, Viviane entrou na classe antes da aula começar. Jogou os livros em cima da carteira com estrondo e perguntou a Bernardo:
– Posso saber o que aconteceu com você sábado à noite?
Bernardo olhou em volta, embaraçado.
– Tive que ficar com a minha mãe. Ela estava com gripe.
– Mentira, Bernardo! Eu telefonei pra sua casa e você não estava!
– Viviane, fala mais baixo. Assim todo mundo vai ouvir.
– Fiquei uma hora na porta do clube te esperando. Uma hora! – pronto, ela ia chorar.
– Calma, meu bem. Calma. Vamos lá fora tomar uma Coca-Cola... - e ele começou a guiá-la em direção à lanchonete, com muito jeito. No caminho, vários olhos curiosos os observavam.
– Me senti uma boba, Bernardo. Uma idiota completa... - e ela começou a choramingar. Sentaram-se numa das mesinhas de madeira, em frente à lanchonete. Viviane começou enxugou os olhos com um guardanapo de papel.
Ela era tão bonitinha. Coitada.
– Não fica assim...
Viviane se assoou:
– Está todo mundo me olhando, que vergonha...
– Não liga, meu bem.
– Meu bem uma ova! – gritou ela.
– Que é isso, Viviane!
– Bernardo, sábado à noite você estava com outra menina.
– Eu??!!
– Você mesmo. E quer saber? Já faz tempo que você está com ela.
– Mas que absurdo, Vi!
– Está sim! Você não liga pra mim, quando fica comigo parece que é por obrigação, me dá o cano, nunca está em casa... Mudou completamente. Nem estudar estuda.
Ele caiu num silêncio envergonhado.
– Confessa, Bernardo. Você arranjou outra.

Meia hora depois, Viviane tinha voltado aos guardanapos de papel. Mas, em vez de Bernardo, era Sandra quem estava à sua frente, segurando-lhe a mão.
– Sabe aquela história que a gente conversou, Sandra? Das meninas que eles procuram quando a gente não quer (soluçou)... não quer dar pra eles?
– Sei.
– Tenho certeza que o Bernardo encontrou uma dessas. Certeza!

– Mas que droga de congestionamento! – e Verônica tamborilou os dedos na direção, impaciente.
– Não precisa me levar - protestou Bernardo. - Eu fico aqui mesmo, pego um ônibus.
– Imagina, lindinho. Eu te levo até a esquina de casa. Só não te levo na porta porque tenho medo que tua mãe me veja. Você precisa estar descansado pra tal excursão. É amanhã, não é?
– É - gemeu Bernardo - Um saco. Quatro dias vendo as tais cidades históricas. - Não fale assim. Como eu gostaria de ter tido essa oportunidade, quando era menina.... – Tamborilou de novo na direção - Quer que eu ponha um pouco de música?
– Pode ser.
Ficaram em silêncio por alguns momentos, no crepúsculo da cidade. As luzes começavam a acender. O som macio do jazz se espalhou pelo carro.
– Gosta disso? – perguntou Verônica.
– Pra falar a verdade, não. É muito devagar.
– Do que você gosta?
– Rock. Pink Floyd. Led Zeppelin. O que eu mais gosto são os Stones.
– Puxa - suspirou Verônica. - Me sinto com uns cem anos.
Ele abraçou-a, encostou a cabeça no seu ombro. O seio direito dela subia e descia, ao ritmo da sua respiração: ele podia vê-lo, por baixo da fazenda fina da blusa.
– E a sua namoradinha? – perguntou ela. - Do que ela gosta?
De olhos fechados, ele respondeu:
– Daquelas baboseiras que tocam nas discotecas. Aquelas músicas enjoadas, que nem no filme do John Travolta, sabe?
– Ouvi falar.
– Só que a gente não está mais namorando.
– Não?
– Não.
O sinal abriu, e ela recomeçou a andar. Bernardo encostou-se de novo à janela do Opala, e ficou estudando o rosto de Verônica. Ela gostara da notícia - decidiu. Tentava não mostrar, mas tinha gostado.
– Verônica.
– Hum.
– Tenho que te perguntar uma coisa.
– Ih, já sei o que é. Eu não vou devolver o solitário da sua mãe, tá?
– Não, não é isso.
– Então o que é?
– Você me ama?
Ela registrou um leve choque: piscou mais forte, o sorriso desapareceu. Olhou fixamente para frente:
– Eu gosto muito de você, Bernardo.
– Mas me ama?
– Puxa, que pergunta difícil - suspirou ela.

Depois de muitas buzinadas, xingamentos, e até ameaça de multa de um guarda, o Opala cinza consentiu em sair da fila dupla, em frente a um edifício dos Jardins. O casal que se beijava infindavelmente lá dentro desgrudou, e o rapaz de calça jeans, carregando uma batelada de livros debaixo do braço, entrou no prédio, lépido como uma pluma.

Viviane não participou da excursão. Bernardo achou os quatro dias intermináveis, um verdadeiro saco: anjinhos bochechudos, igrejas imponentes, o professor de História atacado de um caso grave de verborragia. E aqueles moleques insuportáveis, fazendo bagunça o tempo todo, atirando aviõezinhos dentro do ônibus, mexendo com as meninas, enquanto ele só conseguia pensar em Verônica, Verônica...
"Aqueles moleques insuportáveis" eram seus melhores amigos, até dois meses atrás.

– Gostou da excursão, filhinho? – perguntou Dona Susana, no almoço de quarta-feira. Bernardo tinha acabado de acordar e tomar banho. Chegara a São Paulo de madrugada, e dormira a manhã inteira.
– Gostei.
– Agora vamos ver se as suas notas melhoram - resmungou o soturno Moshe Levinsohn, lá no outro canto da mesa.
– Moshe, quer deixar o menino em paz? Você sabe que ele nunca foi mal em História!
– Como se isso adiantasse no vestibular de Engenharia... – Pode não adiantar, mas dá cultura. É muito bonito uma pessoa saber História - teimou Dona Susana. - E agora chega dessa discussão, porque eu já estou nervosa o suficiente. Bernardo, coma o frango ensopado. Fiz especialmente pra você.
Voltou-se para o marido, retomando a conversa interrompida:
– Juro por Deus, quando a Léa me contou, não sei como não desmaiei, ali no cabeleireiro. Foi o maior susto da minha vida.
– Ela nunca me enganou - resmungou Moshe.
– Conversa, Moshe! Você vivia elogiando ela!
– Elogiando, propriamente, não. Eu só tentava ser amável.
– Amável até demais... Mas eu também jurava que ela era a pessoa mais séria do mundo. Ninguém estava sabendo de nada. Caiu todo mundo do cavalo.
– E o marido dela?
– Sei lá, coitado, está viajando. Você já imaginou? Voltar do exterior, e encontrar uma bomba dessas? E aqueles meninos, pobrezinhos? Diz que ela largou eles na casa da avó...
Bernardo, que até ali vinha seguindo a conversa distraídamente, ergueu a cabeça:
– Quem largou quem na casa da avó?
Pai e mãe se entreolharam, hesitantes. Dona Susana murmurou:
– Nem sei se isso é assunto pra criança...
– Coitado do Bernardinho. - caçoou Sara - Tão inocente... Ainda pensa que a cegonha traz os bebês...
– Enfim - concluiu a mãe de Bernardo –, de qualquer jeito ele acaba sabendo; um dos meninos estuda no seu colégio... É o seguinte, Bernardo. Nem comente isso na escola, mas a Dona Verônica, mãe do Marinho, fugiu.
Se houvessem lhe dado uma pancada no peito, a sensação não teria sido pior. Bernardo parou com o garfo em pleno ar, e gaguejou:
– Como assim? Fugiu?
– Pois é, sumiu! Estão dizendo por aí que ela foi pro Rio de Janeiro (baixou a voz) com um homem. Um arquiteto, que ela conheceu há dois anos, quando fez a reforma do apartamento dela. Ninguém sabia de nada! Só descobriram porque alguém viu os dois juntos na Ponte Aérea. - Hesitou um pouco, mas a tentação da fofoca terminou por vencê-la. - Aos beijos e abraços, parece.
– Uma pouca vergonha - esbravejou Moshe.
– É um horror! – suspirou Dona Susana - A gente não sabe mais em quem confiar! Esse mundo está virado de cabeça pra baixo....
O resto da conversa, Bernardo só conseguiu escutar como um murmúrio indistinto. A sala de jantar rodava. De repente, saiu correndo da mesa e trancou-se no banheiro.
– Bernardo! – gritou Dona Susana, assustada. - Meu Deus, o que esse menino tem?
– Acho que o seu frango fez mal pra ele, mãe - informou Sara, gravemente.

Verdade seja dita, Bernardo vomitou todo o frango, e não comeu durante dois dias. Ficou com febre. O médico foi chamado, e diagnosticou uma infecção adquirida nos caminhos de Minas. "Comida que a gente não sabe de onde vem, sem higiene, em restaurantes imundos...", lamentou, balançando a cabeça. "É assim mesmo, Dona Susana. Fora de São Paulo, não há salvação".
Dona Susana estava decidida a processar o colégio. Seu Moshe era distraído demais para notar o momento psicológico em que a "doença" tinha começado. Mas Sara não se deixou enganar. Na segunda tarde, quando o irmão, já sem febre, estava sozinho no quarto, ela entrou de mansinho no seu quarto.
– Oi, Bernardo - disse, sem animosidade aparente.
Ele respondeu com um breve aceno de cabeça. Estava apático, olhando o teto. Sara sentou-se na cama.
– Já está melhor?
– Estou - resmungou ele.
– Engraçado, né - disse ela, fingindo esfiapar o cobertor do irmão - Sabe uma coisa que eu percebi na sua doença? Você começou a passar mal bem quando a mamãe falou da Dona Verônica. Aquela que fugiu.
Bernardo não replicou.
– Você estava transando com ela, não? Eu vi vocês juntos uma vez, de carro, na Rua Augusta.
Em outra ocasião, Bernardo diria que a irmã estava louca. Mas, naquele exato momento, toda a sua energia não chegava para cinco minutos de discussão com Sara. Não respondeu.
– Estava! - afirmou a irmã, triunfante. - Bem que eu imaginei! – Uma nova expressão de respeito surgiu nos seus olhos: – Você, hein? Quem diria! Com essa cara de palerma...
Ele continuou calado, pensando numa fieira de palavrões que poderia lhe dizer. Em vez disso, contentou-se em perguntar, debilmente:
– Você vai contar pra mamãe?
– Não vou não. Pode ficar tranquilo, Bernardo.
Esfiapou mais um pouco o cobertor:
– Pra falar a verdade - admitiu - estou morrendo de pena. Nem você merecia isso.

– Quanto tempo, Bernardo! Você sumiu, não veio mais visitar a gente!
– Andei meio doente, Dona Clotilde.
– É, sua mãe me contou. Coitado! É como eu sempre digo, fora de casa a gente deve ter muito cuidado com o que come. Mas agora está melhorzinho, não?
– É...
– Sente que eu sirvo um chazinho de boldo pra você, enquanto o Edmundo não chega.
– Não precisa, não.
– Mas lógico que precisa! Ora essa, sente aí e vamos bater um papo! Ou será que você não gosta de conversar com gente velha? Hein?
– Imagine, Dona Clotilde.. – e, mais uma vez, o rapaz não teve remédio senão sentar à frente da mesa da cozinha, muito desenxabido.
– Faz um café pra gente, Ditinha - comandou a mulher. Ainda bem que a cozinha era grande, pensou Bernardo: caso contrário, ela e a empregada viveriam se trombando, gordas do jeito que eram.
– O Edmundo já volta, foi na farmácia - explicou Dona Clotilde. - Graças a Deus, agora ele anda mais caseiro. Também andou doente, essas últimas semanas.
– O que foi que ele teve? – indagou Bernardo.
Perguntava por educação. A verdade é que nem sabia o que estava fazendo ali. Não suportava mais ficar em casa, aguentando a solicitude da mãe, que o achava muito desanimado.
De vez em quando, Dona Susana ainda tagarelava sobre Verônica, mas cada vez menos. O escândalo já estava gasto. Bernardo, entretanto, sentia um prazer masoquista em ouvir falar do assunto. Ao que parecia, a fujona já entrara em contato com o marido. Tinham concordado com uma separação amigável; os filhos iam ficar com o pai.
Bernardo chegara a pensar em fugir também, ir para o Rio, procurá-la... Agora mesmo a idéia lhe voltava, mas como uma vaga fantasia, bem distante da realidade. Continuou a prestar atenção em Dona Clotilde:
– E agora ele está bem, até voltou para a escola, mas não pára de tossir, Bernardo: não pára! E você sabe que esse menino teve muita bronquite quando era pequeno...
Um ruído na porta: era o suspeito de tuberculose que chegava, carregado de pacotes.
– Oi, cara. Tudo bem?
– Tudo jóia.
– Comprou tudo isso de xarope, meu filho? – perguntou Dona Clotilde, examinando o conteúdo dos pacotes.
– A senhora é quem escolhe - respondeu Dinho, olhando para a mãe com um ar muito sério. - Prefere que eu continue tossindo a noite inteira, é?
– Não, meu filho, Deus me livre. Se o xarope te faz bem... Deixa eu guardar lá dentro.
– Não - opôs-se o rapaz. - Deixa comigo que eu guardo. - Voltou-se para o amigo: – Vamos lá pro quarto.
Dentro do quarto, Bernardo deixou-se cair no sofá e ficou olhando as paredes. Seu ânimo contrastava com a do amigo, que foi desembrulhando alegremente os pacotes e enfileirando no armário do banheiro, ao lado, uma fileira de vidrinhos contendo um líquido cor de groselha.
– Cara, você não sabe. Você não vai acreditar.
– No que eu não vou acreditar?
– No que eu descobri - disse Dinho, triunfante.
Acabou a arrumação dos vidrinhos, foi até a vitrola e colocou o eterno disco dos Rolling Stones.
– Uns caras lá no colégio já tinham me contado essa história, mas eu achei que eles eram xaropes... sem trocadilho - disse, com uma risadinha.
"Por que ela fez isso comigo?", pensou Bernardo, ligando outra vez a máquina de remoer pensamentos. "Dois meses me fazendo de trouxa. Dois meses! Aquela galinha. Vaca. Sabe lá quantos mais ela tinha, além do tal arquiteto. E eu sem desconfiar de nada, achando que ela gostava de mim."
– Aí, eu peguei esse resfriado, e o médico receitou um xarope. Quando a mãe veio me dar, olhei o rótulo e vi que era o que o pessoal tomava.
"É lógico, era tudo enganação. Ficou comigo só para eu não contar a história das jóias. Ladra, mentirosa, interesseira... Eu podia ferrar com ela agora mesmo. Podia ir na polícia. Ela bem que merece."
– Falei: porra, estou aqui na cama, sem fazer nada. Vou experimentar esse troço, ver se é bom como dizem.
"Mas será que era tudo mentira mesmo? Será que ela fingia tudo? Até na cama? Não é possível, ninguém finge tão bem assim."
– Cada vez eu me arranjava para tomar uma dose maior. Cara... É melhor que qualquer coisa que eu tomei, até bolinha. Melhor do que fumo. Você fica flutuando.
"Será que era tudo mentira mesmo? Vou ficar maluco se não descobrir."
– E é uma tranquilidade. Finjo que tusso a noite inteira, e depois compro um monte de xaropes, na cara dos velhos. Eles nem se tocam. É a maior limpeza. Ei, Bernardo, você tá prestando atenção?
– Claro - respondeu ele, muito ausente, levantando os olhos para o amigo. O aparelho de som tocava "Miss You":

I've been holding out so long
I've been sleeping all alone
Lord I miss you.
I've been hanging on the phone
I've been sleeping all alone
I want to kiss you.


Seus olhos se encheram de lágrimas, e ele se levantou precipitadamente.
– Já vou indo, Dinho.
– Que foi, cara? Ficou chateado?
– Não, não é nada, só estou meio de bode. Fico bom logo.
– Não quer um pouquinho do xarope? – ofereceu o outro, solícito. De repente, sua cara se iluminou: – Ah, já sei. Você está na fossa por causa da Viviane. Bobagem, Bernardo. Mulher é que nem ônibus: você perde uma, logo vem outra. Toma um xarope aí que passa.
Mas Bernardo já estava no corredor.

Nua e morena, Verônica estava deitada num lençol muito branco. Em volta dela, reluziam anéis, colares, pulseiras, gargantilhas preciosas. A Rainha das Jóias. A Preferida do Sultão. A Professora do Prazer. Uma gralha, que roubava coisas brilhantes pelo simples desejo de guardá-las.
– Vem, Bernardo - sussurrou. - Vem cá.


Dois meses depois, o ônibus que levava Bernardo para casa subia preguiçosamente a Avenida Rebouças.
Era uma manhã de sábado, fria mas ensolarada. Tudo parecia perfeito: o trânsito corria macio, o tempo estava bonito, e Bernardo, de volta do último dia de aula, estreava as férias de julho. O boletim na sua pasta ainda não estava nenhuma maravilha, mas já dava para acalmar o pai.
Naquela noite, a família desceria para o Guarujá. E ele sabia que Graziela também ia para o Guarujá. Nossa, como era bonita, a Graziela! E estava lhe dando a maior bola, era indisfarçável. Os seus olhares (tinha olhos verde-água, um assombro!) eram um bálsamo para o orgulho ferido do rapaz. Pena aquele pai chato – mas, enfim, ninguém é perfeito.
Olhou para a janela e reparou que perto do apartamento onde se encontrava com Verônica. "Vou parar aqui", decidiu, de repente, e puxou a campainha do ônibus. Desceu de cabeça baixa, e se enfiou nas ruas sombreadas dos Jardins.
Não sabia bem o que queria - talvez apenas olhar, da calçada. Ver a janela onde às vezes ficava encostado, abraçado a ela, depois do amor. Verônica... Sua mãe nunca mais falara dela. Era como se ela não tivesse existido. Nem Sara tinha tocado mais no assunto. Aliás, Sara andava bem mais amigável. Conversava bastante com Bernardo. Chegara até a pedir sua opinião sobre um dos seus projetos: ir morar num kibbutz4 em Israel ("Besteira", ele dissera, taxativo).
Não, ninguém mais falava em Verônica. Ele mesmo começava a esquecê-la; às vezes passava dias inteiros sem pensar nela. Tinha dificuldade até em lembrar do seu rosto. O corpo, não: esse estava gravado para sempre, na memória, nas pontas dos seus dedos...
Era impressão sua, ou havia alguém na janela do quinto andar? Com a adrenalina acelerada, Bernardo atravessou a calçada, mas se decepcionou logo: tinha sido apenas um reflexo da luz. O porteiro estava na frente, lavando a calçada com uma mangueira. Chamou-o:
– Ei, garoto!
Bernardo aproximou-se.
– Bom dia - disse, muito sem graça.
– Bom dia - respondeu o porteiro. - E aí, sua tia mudou pro Rio, não? O apartamento está pra alugar...
– Pois é - confirmou Bernardo, muito sem-graça.
– Você veio buscar o pacotinho, não é? – perguntou o homem.
– Pacotinho? Que pacotinho?
– Ué, o pacotinho que ela deixou pra você antes de viajar. Ela me disse que um dia você ia aparecer por aqui. Deixa eu buscar.
Entrou no edifício, e voltou com um minúsculo embrulhinho. Colocou-o na mão de Bernardo.
– Vai ver que é alguma surpresa - ponderou, sorrindo.
– É. Vai ver - respondeu o garoto, devolvendo o sorriso. Despediu-se do porteiro, mas só foi abrir o pacotinho na esquina.
Era o solitário de Dona Susana.
Bernardo ficou olhando a jóia durante vários minutos, examinando-a de todos os ângulos, brincando com o seu brilho. Depois, enfiou o anel no bolso e saiu, assobiando na manhã de sábado.

FIM


1 Abrigo para a cabeça, em forma de calota, que os judeus usam em cerimônias religiosas
2 Cerimônia que marca a passagem da maioridade dos adolescentes do sexo masculino, na religião judaica
3 Não-judeu
4 Comunidade agrícola em Israel, de caráter socializante


Voltar Subir