Uma história de amor sem freios.
DE ZERO A CEM

Meu nome é Denise. No colégio, meu apelido era Denise Gasolina. Minha primeira relação sexual foi em 1983, no banco de trás de um Maverick.
Já naquela época, entendia muito bem de homens e de automóveis. Aliás, nunca separei as duas coisas. Cheiro de gasolina, para mim, é perfume. Ou melhor: afrodisíaco. E antes que vocês perguntem, eu já respondo: muitas vezes transei com um homem apenas porque ele tinha um belo carro.
Claro, as coisas nem sempre se passavam assim. A maioria dos meus namorados eram homens atraentes que tinham belos carros. Mas nunca namorei um homem sem carro. Que graça teria?
Quando passei a idade dos amassos no banco de trás, me empreguei numa concessionária. Era um bom emprego e eu ganhava bem, porque vendia qualquer coisa. Desde que fosse para homens, é claro. Nunca tive o menor interesse em vender carros para mulheres - seres incapazes de sentir a magia de um automóvel. Para as mulheres, o carro é apenas um veículo que as leva de um lugar a outro. Há exceções, é lógico, mas a maioria é profundamente ignorante. Não entende nada de mecânica. Só quer saber se o porta-malas tem espaço suficiente para as compras do supermercado. Eu poderia vender milhares de carros para elas, mas seria um tédio.
Meus chefes me mandavam os clientes do sexo masculino. Com eles, a coisa era diferente.

Nunca senti escrúpulos em utilizar meus encantos para vender carros. A concessionária trabalhava com importados top de linha, brinquedinhos de luxo que custavam fortunas. Qualquer sujeito, por mais rico que seja, pensa duas vezes antes de comprar um carro desses.
Minha tarefa era impedi-los de pensar.
No começo, vinha trabalhar com decotes provocantes e saias curtas. Me curvava sobre o capô para mostrar o motor. Mas logo percebi que essa tática era insuficiente.
Os homens me faziam uma série de propostas, é verdade; mas não fechavam negócio. Ficavam de pensar, voltar outra hora. E quando voltavam, traziam um acessório indesejável: a esposa. Aí já viu... Em primeiro lugar elas se aborreciam com o decote, a saia curta etc. Em segundo lugar, não se deixavam fascinar pelo carro. Em vez disso lembravam o marido de alguns detalhes chatos da vida, como a prestação da casa, o colégio dos filhos ou a plástica que pretendiam fazer no fim do ano.
Aí eu dançava.
Mudei de tática. Adotei um estilo menos óbvio de me vestir; algo assim como o você-não-imagina-o-que-há-por-trás-desse-tailleur. Esse estilo não assustava as esposas, caso elas tivessem a péssima idéia de aparecer na concessionária. Mas a idéia era que não aparecessem.
Já na primeira visita, eu recebia seus maridos com um sorriso profissional, sem provocações baratas. Minha conversa, entretanto, era pura sedução: desempenho, robustez, conforto, performance... Eles se extasiavam com minha sabedoria. Deslumbravam-se com as visões do paraíso que eu descortinava - abrindo uma porta do automóvel ou cruzando minhas pernas.
Eu nem apontava sua ignorância, para que não se sentissem humilhados:
- Esse carro vai de 0 a 100 quilômetros por hora em sete segundos. Também! O motor tem relação de compressão de 9,5:1, potência específica de 63,2 cavalos por litro e torque máximo líquido de 23,6 kgfm a 3.300 RPAM.
- Hum. Sei. E o torque máximo líquido...
- Sim?
- Não vai aumentar com esses problemas aí do Oriente Médio?
Eu sorria docemente. E eles compravam. E compravam. E compravam.
Eu era a melhor vendedora da concessionária. Ganhava todos os bônus e incentivos da montadora. Meus colegas me odiavam, mas isso nunca me preocupou. Era tudo inveja e dor-de-cotovelo. Nunca aceitei um só convite daqueles caras, cujo ideal de felicidade era comprar um novo Gol no fim do ano.
Como tantas mulheres bem-sucedidas, eu me sentia solitária. Claro que estava esperando um príncipe encantado. Toda mulher espera. Mas, além de romântica, era exigente: queria um homem que compartilhasse a minha paixão.

Demorou, mas um belo dia o príncipe encantado apareceu.
Ele se chamava Marcus Vinícius. Assim que entrou na loja, as recepcionistas afluíram para ele como um bando de abelhas atrás de mel. Pudera: Marcus era alto, tinha olhos azuis, um belo corpo e roupas que mostravam a sua excelente situação financeira.
Estão me achando materialista, interesseira? Pois saibam que nada disso me seduziu. Quando Marcus se aproximou de mim, recebi-o com cortesia apenas profissional.
O que me encantou foi a segurança e a facilidade com que ele discutiu comigo:
- Esse modelo possui um sistema de controle de estabilidade inédito...
- Nem tão inédito, já vi em outros modelos. E sabe de uma coisa? Ele corta a potência do motor.
- E o computador de bordo...
- Pobre, pobre. Poucos recursos. Tem ABS? EBD?
- EBD, não.
- Vai me dizer que a suspensão dianteira não é four-link... Tem barra estabilizadora? Seja sincera comigo.
Seu olhar agudo me atravessava, perscrutando minha alma e meus mais íntimos segredos. Não tive coragem de mentir, nem de enrolar. Marcus Vinícius achou tantos defeitos no meu produto (o mais vistoso da concessionária), que pela primeira vez me senti humilhada diante de um comprador. Aliás, comprador uma vírgula: estava na cara que ele não ia comprar coisa nenhuma. Saiu depois de me colocar a nocaute, prometendo voltar no dia seguinte.
E não é que voltou? Continuou analisando o modelo, apontando seus defeitos e... acabou comprando! Nem pediu desconto! Só então tive certeza de que estava interessado. Além da bela comissão, ganhei um convite para sair.

O namoro engatou imediatamente - com perdão do trocadilho.
Saíamos quase todos os dias. A cada dia, Marcos vinha me buscar na loja com um dos seus três importados de luxo, estalando de novos.  Me lembro bem: eram um Jaguar XRJ, um Alfa Spider e um Daimler Super V-8. Eu ficava em êxtase. Ele sorria, misterioso, e dizia que ainda tinha outra “surpresa” para mim, em sua casa.
Marcus era um empresário bem-sucedido. Trabalhava com importação de computadores. Na juventude, fora piloto de carros, e quase chegou a profissional. Falava das pistas de Fórmula-1 e seus pilotos com familiaridade. Também visitava os grandes Salões do Automóvel do mundo.
Eu, que estava acostumada a deslumbrar os homens, desta vez fui deslumbrada. Mas ele não se apressou. Só depois de três semanas me convidou a conhecer sua casa, no Morumbi.
Era uma noite de sábado. A casa, enorme, estava vazia. “Folga dos empregados”, ele me explicou. Mostrou-me os quartos, as salas, seu escritório, o quintal onde os dobermans ficavam soltos, a piscina... Eu olhava tudo distraidamente. O ponto alto ainda estava por vir.
Marcus me levou à sala principal, com grandes janelas e uma vista maravilhosa. Me serviu um drinque. Enquanto eu bebia, em pé, olhando as luzes da cidade, ele perguntou no meu ouvido:
- Lembra da surpresa que te prometi? É uma Lamborghini Diablo SE-30... Acabou de chegar do importador...
Um arrepio sensual percorreu meu corpo:
- Quero ver – eu disse.
Ele me tomou pela mão e me levou até a garagem – um edifício à parte, separado da casa. Sempre achei que a garagem é o espaço mais nobre da casa, e  deve merecer um destaque especial.
- Olha só – disse Marcus Vinícius, simplesmente, ao abrir a porta de madeira nobre com o controle remoto.
À minha frente, estava aquela máquina poderosa, faiscando seu azul-profundo debaixo das luzes feéricas da garagem. Marcus me deu a mão, abriu a porta do carro e me fez sentar no banco da frente.  Dei a partida e suspirei, fechando os olhos. O cheiro de couro legítimo dos assentos me entontecia. O ronronar suave do motor excitava meus sentidos.
Abri os olhos de novo. Marcus Vinícius me olhava, comovido:
- Você é a mulher da minha vida – sussurrou, me puxando para si.
Fizemos amor ali mesmo. Depois ele me pediu em casamento.

Tentei conter o entusiasmo de Marcus. Ponderei que casamento é uma decisão séria, que não pode ser tomada apressadamente, no ambiente romântico de um importado de luxo. Tínhamos acabado de nos conhecer. Preferia rodar uma quilometragem maior, antes de me comprometer.
Mas ele não queria ouvir falar em prudência, cautela, nada disso. Queria casar imediatamente. Seu entusiasmo acabou me contagiando, e um mês depois aceitei sua proposta.
Justiça seja feita: nos primeiros anos, não tive porque me arrepender. Marcus parecia o marido perfeito.
No começo queria que eu parasse de trabalhar.  Mas eu disse que não queria virar dondoca, e ele concordou. Também não pensávamos em filhos - ele já tinha dois garotos de um casamento anterior.
Marcus achava que o emprego na concessionária estava abaixo do meu talento. Conversamos muito e ele me convenceu a montar uma importadora. Saí da concessionária, procurei uma loja num ponto comercial do Morumbi, e contratei alguns vendedores.
Nos próximos anos, trabalhei duro para construir a “Denise Autos”. Era um negócio arriscado, porque só trabalhávamos com modelos muito caros, acessíveis apenas a gente riquíssima. Todo mundo me aconselhava a “diversificar” a oferta, mas eu bati o pé e continuei insistindo nos top de linha. E a “Denise Autos” acabou se firmando.

Os negócios de Marcus iam bem, e eu também estava ganhando muito dinheiro. Junto com meu marido, viajava várias vezes por ano, fazendo turismo e visitando Salões do Automóvel de vários locais do mundo. Ele parecia mais apaixonado do que nunca.
E no entanto... Comecei a sentir certa insatisfação, uma coisa difícil de definir. A vida era só aquilo? Passar o dia numa loja, vendendo carros de luxo para gente endinheirada que não entendia o valor aquelas obras de arte?
Faltava algo na minha vida - um sentido maior, uma transcendência... Não era possível que eu tivesse vindo ao mundo para enriquecer como mercenária, vendendo o objeto da minha paixão. Precisava de outro desafio. Cheguei a pensar em me tornar projetista de carros. Mas é difícil começar algo novo, quando já se passou dos trinta anos.
Fora do trabalho, me entediava profundamente. Os amigos da nossa roda não me diziam nada. As mulheres eram as piores: fúteis, ignorantes, só falavam em roupas e plástica. Por uma questão de public relations, eu as tratava bem, oferecia jantares, etc. Mas aquelas peruas me cansavam. Eram de uma ignorância crassa. Me lembro de uma que nem sabia o que era direção hidráulica. O que fazer com uma pessoa assim?
Para piorar as coisas, entrei numa maré baixa sexual. Isso nunca tinha me acontecido antes. Sentia um profundo tédio quando meu marido me procurava na cama. Nos primeiros tempos de casados, fazíamos amor várias vezes por dia, e freqüentemente dentro dos carros. Mas com o tempo Marcus se acomodou e passou a preferir a cama.  Agora, só fazíamos amor no carro em ocasiões especiais, como aniversário de casamento, Dia dos Namorados, etc.
Mas não era apenas a questão sexual que me incomodava. Eu sentia que tínhamos problemas mais profundos. Às vezes, me perguntava se teríamos tanto assim em comum.
Os dois gostávamos de carros, é verdade. Mas talvez gostássemos de formas diferentes. O carro, para ele, era um valor material; no máximo, seu objeto favorito de lazer. Eu sentia uma conexão mais espiritual com as máquinas.
Comecei a enxergar outra face do meu marido: um burguês materialista, vazio, fútil. Sim, era bonito, mas e daí? As pessoas, assim como os carros, não são apenas a aparência. Todos nós já conhecemos um carro com design arrojado  e mecânica fraca. É ou não é?
Comecei a inventar desculpas para não fazer amor com Marcus.

As coisas estavam nesse ponto quando, um belo dia, minha mãe me ligou. Seu Corsa tinha pifado.
Na minha família, sempre fui responsável pela manutenção de todos os automóveis. Mamãe vivia me amolando com aquele maldito Corsa, cheio de problemas. Já tentara lhe dar outro carro, mas ela adorava  aquela lata velha.
Mamãe queria que providenciasse o conserto. Telefonei para o meu mecânico – um sujeito ótimo, o único a quem confiava meus carros. Leonardo estava doente. E agora?
Eu sabia que o defeito do Corsa era simples. Qualquer mecânico de esquina resolveria em minutos. Só dessa vez, poderia recorrer a outra pessoa. Olhei nas páginas amarelas e anotei o endereço da primeira oficina que vi: “Velmax Mecânica e Auto-Elétrico”. Ficava no caminho do meu trabalho.
Na manhã seguinte, deixei o BMW em casa e fiz o Corsa pegar no tranco. Não deixava de ser divertido andar pelas ruas chacoalhando aquele carrinho ordinário, que nem precisava de seguro, de tão vagabundo.
A oficina “Velmax” ficava numa rua de bairro tranqüila. Era pequena e modesta. Parecia deserta. Na calçada, havia apenas um macaco abandonado, coberto de graxa. Entrei, insegura, no seu interior mal-iluminado. Olhei em todas as direções, me esforçando para enxergar naquela escuridão. Não havia ninguém à vista.
- Bom-dia – disse eu, em voz alta. – Tem alguém aqui?
Nada. Nenhum som.
- Por favor, alguém poderia me atender? – perguntei,  já me sentindo meio idiota.
Silêncio completo. Já me preparava para sair e procurar outra oficina quando de repente ouvi um som rascante.
O corpo musculoso de um homem estava a meus pés.

Ele saíra debaixo de um Santana, bem perto de mim. Usava um macacão sujo de graxa, sem camiseta por baixo, mostrando os músculos esculpidos  com precisão. Não tinha uma grama de gordura no corpo. Seus cabelos pretos e revoltos chegavam aos ombros. Usava barba cerrada. Os olhos azuis eram severos, implacáveis.
- O que a senhora quer? – perguntou, com voz irritada.
- Eu... bem... Aqui é a Oficina Mecânica Velmax?
- Isso mesmo. Aqui é oficina mecânica, e eu sou o Velmax.
Pensei que não tivesse ouvido direito:
- Desculpe, como o senhor se chama?
- Velmax. – Explicou com o ar de tédio de quem recita um texto decorado: - Foi meu pai quem inventou. Há trinta anos, ele vinha dirigindo pela estrada, e leu na traseira de um caminhão: “Vel. Max. 80 km/h”. Achou bonito e me deu esse nome.
- Ah, sim, claro, entendo – disse eu, apressadamente. Não conseguia tirar os olhos dele. O corpo maravilhoso, a chave inglesa na mão, as manchas de graxa: aquele homem me perturbava.
- O que a senhora deseja?
- Estou com um probleminha no meu Corsa. O motor demora para dar a partida. Acho que é problema de bateria. Não é falta de carga, mas talvez os cabos estejam corroídos....
Sem querer, já estava tentando impressioná-lo.
Andando com um passo elástico, ele foi até a porta. Suspirei quando passou por mim. Velmax cheirava a gasolina.
- Onde está seu carro? – perguntou.
- É esse aqui – e apontei para o Corsa, estacionado no meio-fio. Ele me olhou, incrédulo, como se achasse que o carro não combinava comigo. – É da minha mãe – expliquei.
- Estacione aqui dentro – disse ele, com voz autoritária.
Obedeci imediatamente. Sentia arrepios, estava ofegante e meu coração batia à toda, como se tivesse corrido quilômetros.
Velmax se inclinou sob o capô do Corsa. Não demorou um minuto para dizer:
- Os cabos da bateria estão um pouco velhos, sim. Mas o problema não é  esse. As ligações dos contatos da bateria e do motor de arranque estão frouxas. Vou apertar para você.
Notei que ele tinha abandonado o “senhora”. Enquanto Velmax se atarefava no motor, de costas para mim, meu olhar ávido passeava pelo seu corpo. Que ombros! Que músculos, nas costas! E que...
- Algum problema? – perguntou ele, subitamente, virando-se para mim.
Corei até a raiz dos cabelos e murmurei alguma coisa, muito sem jeito. Fui até a porta da oficina e acendi um cigarro.
Um velhinho careca lustrava cuidadosamente um venerável Corcel, com a ajuda de um pote de graxa.
Fiquei observando-o. O Corcel era uma lata velha; e no entanto, com que carinho aquele senhor cuidava dele! Aquilo me comoveu.
- Trouxe o carro para o Velmax, moça? – perguntou o velhinho.
Meio sem jeito, respondi que sim.
- Pois seu problema está resolvido. Esse rapaz é um gênio. Parece que conversa com os carros, é impressionante. Melhor mecânico que eu já vi. Podia estar ganhando uma fortuna.
Olhei para a oficina modesta.
- A senhora sabe porque ele não ganha dinheiro?
- Não.
- Porque é cheio das manias. Não gosta de resolver coisas simples, sabe? como sujeira no motor, problema de bateria. Esses ele manda embora. Só atende  aqueles problemas complicados que nenhum mecânico resolve.
- Não me diga – disse eu, intrigada. Velmax se dispusera a resolver um problema banal para mim.
- Esse Corcel aqui, por exemplo – exemplificou o velhinho. – Só anda porque o Velmax cuida dele. Por amizade. Ele parece um brucutu, mas no fundo tem bom coração.
Ouvi um ronco de motor lá dentro. Segundos depois, Velmax estava na porta, limpando as mãos num pano.
- Pode levar, moça. Está prontinho – Olhou para o velho, que continuava aplicando-se em lustrar seu Corcel – Tudo nos conformes?
- Na mais santa paz.
- Quanto foi? – perguntei, já mexendo na bolsa.
- Essa bobagem? Ora, não é nada.
- Mas eu insisto...
- Para você, faço de graça – replicou ele, jogando o pano de volta para mim. Corei até a raiz dos cabelos. Era uma velha anágua da minha mãe.

Nos dias seguintes, não parei de pensar em Velmax.
Eu estava na concessionária, atendendo um burguês careca e barrigudo, e me pegava lembrando dos seus músculos perfeitos. Meu marido falava sobre o próximo Salão do Automóvel em Genebra, e eu imaginava a vida daquele obscuro mecânico, metido em sua oficina que mais parecia uma caverna. Sentia um nó na garganta. Sonhava lhe comprar uma oficina nova em folha e levá-lo a todos os Salões do Automóvel do mundo.
Eu tinha certeza de que Velmax era superior a todos os homens que eu conhecia.
Durante semanas, guardei preciosamente a anágua suja de graxa da minha mãe. Bem que ela telefonou perguntando:
- Denise,  você não achou uma anágua minha no Corsa?
- Não – menti. – Aliás, como ficou o carro?
- Ficou ótimo, querida, obrigada. O Leonardo resolveu o problema.
- Não foi o Leonardo – disse eu, com voz sufocada. – Foi outro mecânico. Ele se chama Velmax...
Como todo apaixonado, eu sentia uma necessidade obsessiva de falar do objeto amado. Mas minha mãe estava tão distraída que nem reparou na esquisitice do nome.
- Ah, que bom. Depois você me dá o endereço dele. Até loguinho! Preciso fazer feira.
E desligou.
Finalmente, me rendi: precisava ver aquele homem, nem que fosse com uma desculpa esfarrapada. Resolvi forjar um defeito num dos meus carros, para voltar à oficina de Velmax.
Não queria que fosse um problema simples demais; ele podia recusar o serviço. Por outro lado, é difícil forjar um defeito “complicado”. O ideal – pensei – era um problema simples de falsificar, mas que ele seria obrigado a atender por considerações éticas.
Na sexta-feira de manhã, peguei meu modelo mais simplezinho – o Audi – e fui à oficina de Velmax.

Tudo estava igual à minha visita anterior. A oficina parecia às moscas. O macaco continuava na calçada. Mas o velhinho do Corcel felizmente não estava à vista. Eu precisava da rua deserta para levar meu plano adiante.
Parei o carro, abri o capô e, sempre olhando para os lados para evitar que alguém me visse, extraí uma pequena bomba da minha bolsa. Com a bombinha, drenei o reservatório de líquido dos freios – não todo, apenas metade. Era o suficiente. Joguei fora o líquido, guardei a bomba na bolsa, fechei o capô e fui andando até a oficina.
Dessa vez, ele estava sentado à frente de uma escrivaninha, fazendo contas numa velha calculadora, sozinho (mais tarde, soube que já contratara vários auxiliares, mas sempre os despedia por incompetência). Usava o mesmo velho macacão da outra vez, sem camisa por baixo. A visão dos seus ombros fortes era estonteante.
Ao ouvir meus passos, Velmax levantou a cabeça. Fuzilou-me com o olhar. Estaria aborrecido com a interrupção? Pigarreei, no auge do nervosismo:
- Bom dia. Não sei se o senhor lembra de mim...
- Lembro, sim.
- Estive aqui há três semanas. Agora estou com problema no meu outro carro...
- Ah, você tem vários – disse ele, erguendo a sobrancelha.
Em outro homem, eu jamais toleraria aquele tipo de sarcasmo. Mas Velmax não era qualquer homem.
- É um Audi – expliquei. – Tem problema nos freios... Estou até com medo de dirigir. Deixei estacionado em frente.
Ele me acompanhou até a calçada. Mostrei o Audi, que não lhe provocou outra reação além de mais um erguer de sobrancelhas. Velmax foi até o carro, abriu o capô e localizou imediatamente o reservatório de líquido de freio. Prendi a respiração: como ele poderia saber que o problema era aquele? Era como se  “conversasse” com o carro. Virou-se para mim e disse:
- O reservatório de líquido de freio está vazio.
- Ah, é? – disse eu, fingindo surpresa. – O senhor poderia trocar para mim, por favor?
- Você esvaziou o reservatório, não foi? – perguntou ele, me perscrutando  com seu olhar muito azul.
Por essa, eu não esperava.
- Não... Que absurdo! Lógico que não.
- Acabou de esvaziar. – disse ele, calmamente, fechando o capô. –  Senão, nem chegava aqui.
- Mas por que eu faria isso? – disse, fingindo indignação.
- Porque quer dar para mim.
Abaixei a cabeça. Nunca sentira tanta vergonha na minha vida. Meu rosto queimava, minhas orelhas ardiam, mas também sentia as pernas fracas de tanto desejo. Comecei a rezar mentalmente para que ele não me mandasse embora. Por favor, Deus, por favor...
- Vamos lá dentro – disse Velmax, agarrando meu braço.

Assim foi nossa primeira vez: numa oficina cheirando a graxa e gasolina, no banco traseiro de um velho Opala.
Velmax me levou ao céu e de volta à Terra. Vi estrelas de várias cores. Saí fora de mim. Delirei. Nunca tinha sentido tanto prazer.
Decidi que nunca mais largaria aquele homem. Grudaria nele feito carrapato.
Só que Velmax não estava tão interessado em mim: ele simplesmente agarrara uma oportunidade de sexo fácil. A forma com que se despediu, naquele dia, mostrava bem isso:
- Vê se aparece um dia desses....
Mas sou obstinada: queria conquistá-lo para valer. E já sabia qual era o caminho mais curto para o seu coração.
Passei a visitar a oficina no mínimo duas vezes por semana. Mas controlava meus instintos. Por mais vontade que sentisse, não me atirava imediatamente em cima dele. Em vez disso, conversava.
Não que Velmax fosse de muita conversa. Tenho certeza que, se eu viesse à oficina para aborrecê-lo com assuntos triviais, ele me mandaria plantar batatas. Em vez disso, entretanto, eu falava sobre nossa paixão comum: carros.
Como já disse, eu conhecia mecânica. Mas meus conhecimentos eram mais teóricos, destinados a impressionar compradores. Dava para contar nos dedos as vezes em que efetivamente sujara as mãos de graxa. Não  tivera oportunidades.
Eu chegava na oficina de Velmax logo de manhã. Vinha sempre com o Audi. Velmax não era curioso, e nunca perguntou sobre a minha vida. Sabia que eu era casada por causa da aliança. E o Audi indicava que eu tinha dinheiro. Mas nunca lhe contei maiores detalhes, nem ele perguntou.
Em geral encontrava meu amante debruçado sobre o capô, ou embaixo do carro. Assim que ele tinha uma folga, perguntava qual era o problema. Ele me explicava com detalhes. Eu o ouvia atentamente: aprendia rápido, e percebi que ele ficava impressionado com minhas perguntas.
Discutíamos em profundidade motores e sistema elétrico. Velmax conhecia a mecânica de modelos do passado, do presente e do futuro. Antecipava tendências, falava de inovações tecnológicas que em breve estariam ao alcance de todos. Seus olhos brilhavam. E era então fazíamos amor.
De tanto conversar com Velmax, uma ambição foi nascendo em mim. Pensei muito, fiz alguns arranjos na concessionária. Numa segunda-feira de manhã, apareci na oficina vestida com minhas piores roupas. Velmax me olhou surpreso:
- Ué, por que você veio com essa roupa? Parece até que vai trabalhar aqui...
- É vou mesmo – respondi.
Outro homem qualquer teria me chamado de louca. Mas o que eu vi nos olhos de Velmax, naquele instante, foi admiração. Ficamos assim, olhos nos olhos, nos declarando sem uma palavra, durante muito tempo. Naquele instante senti que ele se apaixonara por mim.
- Não posso pagar quase nada pra você – disse ele, ainda engasgado.
- Não tem importância.

Velmax, como eu já disse, era homem de poucas palavras. Mas depois de algumas semanas, me disse que nunca trabalhara com um mecânico tão dedicado:
- Os outros ficam pensando na hora da saída, na namorada, no time de futebol...  Você é cem por cento concentrada.
De fato, eu trabalhava duro. Ficava tão absorta, mexendo nas entranhas dos carros, que até perdia a noção de tempo. Horas e horas se passavam, e eu ali no escuro, debaixo daquelas máquinas - conhecendo, acariciando cada uma de suas engrenagens. Com o tempo Velmax começou a me passar os casos mais complicados, e eu os encarava como charadas apaixonantes. Por que aqueles carros que tinham parado? Qual a origem dos seus misteriosos ruídos? Qual o problema com aquela bateria, aquele disco de freio, aquela transmissão? A cada dia acertava com mais facilidade e me sentia mais confiante. Como Velmax, eu estava aprendendo a “conversar” com os carros. Nossa compreensão mútua foi aumentando.
Me desinteressei por baterias descarregadas e bobagens afins. Fazia esses servicinhos apenas para aumentar o rendimento da oficina. Mesmo assim, estávamos sempre deficitários.
Velmax fazia questão de me pagar. O salário era uma mixaria, e eu gastava tudo em presentes para ele: novas ferramentas, revistas especializadas, um macacão novo... Era a mulher mais feliz do mundo. Tinha encontrado ao mesmo tempo a minha vocação, um sentido para a vida e um novo amor.
Nem é preciso dizer que, em casa, as coisas iam mal. Marcus Vinícius andava desconfiadíssimo. Inventei uma história de que estava fazendo um curso de Comércio Exterior e por isso me afastara do trabalho na concessionária. Mas ele não engoliu essa patranha. Me crivava de perguntas e me vi obrigada a inventar colegas, professor, matérias do curso... Ia me enrolando em minhas próprias mentiras. Estava vendo o dia em que o castelo de cartas desabaria.
Nossa vida sexual acabara. Assim que fui para a cama com Velmax, deixei de fazer amor com ele. Por isso, tive que inventar uma história complicadíssima de uma doença ginecológica que me “impedia” de ter relações sexuais, por ordem médica. Fingia tomar um remédio. Ele não parecia acreditar muito. Mas eu não estava preocupada.

Nosso caso já tinha seis meses, e eu estava cada vez mais enfronhada em meu aprendizado, quando um dia Velmax largou a chave inglesa  e decretou:
- Não tenho mais nada a ensinar para você.
Ficamos nos olhando, conscientes de que chegávamos a um novo patamar de nossa relação. Velmax passou a mão calosa pelos meus cabelos. Seus olhos estavam pregados nos meus. De repente, disse:
- Quero que você seja minha sócia.
Concordei imediatamente. Mas, na volta para casa, comecei a pensar na situação. A “Velmax Mecânica e Auto-Elétrico” mal dava para sustentar seu proprietário. A sociedade não tinha futuro. As perspectivas do meu amante seriam pobres, enquanto se contentasse com aquela oficina de bairro.
O que fazer?
No dia seguinte, tive uma conversa séria com Velmax. Pela primeira vez, expliquei-lhe minha real situação financeira. Eu podia mudar sua vida, abrir uma nova oficina para ele.
Falei com cuidado, tentando não ferir seus sentimentos. Mas aconteceu exatamente o que eu temia: Velmax recusou.
- Não vou viver à sua custa. – disse, laconicamente. –
- Não é isso, querido. Eu sou sua sócia. Estou só injetando capital.
- Não gosto dessa idéia. E além do mais, não acho graça em ter uma oficina grande. Pra quê? Para passar a vida cuidando de contabilidade, administração, esses troços chatos?
O que ele dizia tinha um fundo de verdade.
- Mas então, o que você quer fazer? – perguntei.
Ele me olhou timidamente (ficava lindo assim, todo acanhado) e disse:
- Bom, você vai achar que é uma idéia maluca...
- Não, meu amor, pode falar.
- Eu gostaria de ter uma escola de mecânicos. Ensinar pessoas como ensinei você.
Começou a explicar. Ele se instalaria em outra cidade – “São Paulo já está lotada, não tem campo” e abriria a tal escola. Faria uma seleção cuidadosa de alunos para barrar curiosos e amadores. Os aprovados entrariam fazendo pequenos serviços, com salário simbólico. Quanto mais aprendessem, mais subiria seu salário. Ao se formarem, optariam entre ficar na oficina ou abrir seu próprio negócio. Com o tempo, poderia até abrir uma franquia...
Meus olhos brilhavam, enquanto Velmax falava. Na sua escola, ele não se limitaria a ensinar técnicas. Queria transmitir aos alunos a sua filosofia de respeito e devoção ao Carro.
- Que você acha? – perguntou, por fim. – Quer me ajudar na escola? Quer largar teu marido e vir morar comigo?
- Claro que sim. – respondi. Ele me tomou nos braços. Estávamos ao lado de um Santana com problemas de transmissão. Velmax ligou o motor, abriu o capô e me virou de costas, num gesto brusco. Desceu meu macacão até os joelhos e fez a mesma coisa com o seu.
Tive três orgasmos seguidos, olhando as engrenagens do Santana rodarem e sentindo o cheiro de gasolina em minhas narinas.

Quando cheguei em casa, Marcus Vinícius estava me esperando. Estava muito nervoso. Recém-chegado do trabalho, ainda de terno e gravata, tremia de raiva:
- Denise, assim não é possível. Telefonei para todos os cursos de Comércio Exterior da cidade, e você não está matriculada em nenhum. O que está acontecendo? Você tem de me contar! - Pegou minhas mãos à força e examinou-as: - Que significa isso? Suas unhas estão sujas de graxa!
Sentei à sua frente e confessei tudo. Quando terminei, Marcus estava pálido de raiva:
- Não é possível! Meu Deus, que humilhação! Minha mulher, me enganando com um mecânico!
- É só isso que você consegue enxergar, Marcus Vinícius?
- Minha mulher, sujando as mãos de graxa!
- Marcus Vinícius, eu quero o divórcio.
- Nunca! – berrou ele. – Jamais! 
- Você não pode me prender aqui.
- Pois de mim, você não vai ter um tostão! Nada! Se está pensando que vou te dar pensão, para você gastar com o seu... mecânico, vá tirando o cavalinho da chuva!
- Não quero pensão nenhuma.
Ele estava desesperado:
- Vou arranjar o melhor advogado de São Paulo, e vou deixar você na miséria! Pode dizer adeus à concessionária que eu te comprei! Entendeu?
Fiquei com raiva, mas procurei me conter. Não tinha interesse em brigar com ele.
- Marcus Vinícius, não seja mesquinho. A separação é inevitável. E eu posso provar a qualquer juiz que coloquei a concessionária de pé. Podemos entrar num acordo. Me dê a concessionária e eu abro mão de todo resto, está bem? Você ainda sai lucrando.
- Nunca! Nunca! – ele estava transtornado – Não cedo um milímetro! Não vou te dar a concessionária!
- Pois então enfie no cu – disse eu, gelidamente. Saí em direção ao meu quarto, enquanto ele ia atrás de mim, soluçando:
- Denise, desculpe, desculpe...
Bati a porta na sua casa e tranquei-me no quarto.

Naquela noite, dormi feito um anjo. Afinal, não era minha culpa se o casamento acabara. São coisas que acontecem. E para sair daquela união, eu abriria mão de tudo - até da minha concessionária.
É verdade – pensei melancolicamente, enquanto me despia – que o dinheiro faria falta. Eu estava contando com ele para ajudar Velmax com sua escola. Mas fazer o quê?
No dia seguinte, fui acordada por uma tímida batida à porta. Era Marcus Vinícius. Abri apenas um dedo. Estava com medo dele.
- Denise, por favor, precisamos conversar.
Tinha olheiras enormes. Deixei que entrasse e sentasse na cama, enquanto eu jogava minhas roupas numa mala.
- Por que você está me deixando? – perguntou ele, com uma voz de cortar o coração.
Suspirei. Como lhe explicar? Não era apenas outro homem. Nossos valores eram diferentes. Ele nunca entenderia. Para Marcus Vinícius, tudo se media em dinheiro.
- Eu mudei, você mudou. Não é culpa de ninguém.
- Mas...
- Quero levar uma vida diferente.
- Metida num macacão de mecânico?
- Estávamos nos afastando, Marcus. Eu quero viver minha paixão.
- Que paixão? Pelo tal sujeito de nome esquisito?
- Velmax. E não é só ele. São os carros.
- Mas eu te dou todos os carros que você quiser! – gritou ele. – Você sabe disso. Denise, estou importando uma Ferrari!
Não vou mentir: meu coração saltou no peito.
- Importando o quê?
- Uma Ferrari 360 Modena F1 Spider – Eu conhecia o modelo. – Conversível. Ia ser uma surpresa para você, no Dia dos Namorados. Vai chegar daqui a quinze dias.
Fiquei olhando para ele. Marcus Vinícius realmente me amava. E a Modena F1 Spider era um sonho sobre rodas. Mas, por mais que me doesse renunciar a ela, Velmax me oferecia muito mais. Ele me daria a ligação espiritual automotiva que eu smpre procurara. Nem toda a produção anual da Ferrari pagaria por isso.
- Sinto muito, Marcus Vinícius – disse, afinal – Mas meus sentimentos não estão à venda.
- Denise, por favor...
- Espero que você aproveite bastante a Modena. Não vou estar aqui quando ela chegar.

Nos próximos dias, me recusei a ver meu ex-marido. Depois de duas semanas, não atendia nem seus telefonemas.
Marcus Vinícius parecia descontrolado. Chegou a ameaçar suicídio. Eu achei que, quanto menos contato tivéssemos, melhor seria para ele.
Um mês depois, já morando  no apartamento de Velmax, no Bom Retiro, fui procurada pelo advogado de Marcus Vinícius – um idiotinha engravatado, que antes se dava por muito feliz de ser convidado para as minhas festas. Agora, ele brandia ameaças:
- Sinto muito, Denise, mas o Marcus está irredutível. Não vai formalizar a separação. Com isso, o divórcio pode demorar anos, assim como a partilha dos bens. Você pode começar o processo por conta própria e requerer pensão ao juiz. Mas o fato de você estar morando com esse... mecânico, pelo que o Marcus Vinícius me contou, não vai facilitar as coisas.
- Muito bem – disse eu, secamente. – Quem ri por último ri melhor. Já que o seu cliente resolveu partir para a briga, ele vai ter briga.
Peguei minha bolsa e levantei para sair. Para falar a verdade, ainda não me decidira a entrar numa cansativa disputa judicial. Mas estava com raiva. Marcus Vinícius estava sendo mesquinho e estúpido. Precisávamos de dinheiro, para realizar nosso sonho de sair da cidade e montar uma escola de mecânicos. Velmax inclusive já vendera a oficina; mas a quantia obtida fora ridícula.
Lucas, o advogado, me acompanhou até a porta. Na hora das despedidas, cochichou no meu ouvido:
- Ah, sim, Denise, o Marcus mandou um recadinho para você. Disse que a Ferrari já chegou. E está no seu nome.

Hoje vejo que Marcus montou uma armadilha para mim. E eu, feito boba, caí.
Velmax estava atarefado preparando a mudança para Goiânia, onde íamos nos instalar. Eu fiquei em casa, pensando na Ferrari Modena. Quanto devia valer? Fiz algumas pesquisas e descobri que era ainda mais valiosa do que eu pensava. Com o dinheiro da sua venda, eu e Velmax poderíamos investir na escola e viver sossegados durante, no mínimo, dois anos. Que desafogo!
E depois, a idéia de dirigir aquele carro me deixava excitadíssima. Marcus Vinícius tinha me enviado todo o material informativo do importador – especificações, garantia e fotos, muitas fotos. Havia imagens de um modelo amarelo, como o meu, que me davam água na boca. Eu não conseguia tirar os olhos daquelas linhas aerodinâmicas, aquela majestosa elegância.

Na véspera da nossa partida para Goiânia, eu estava em frente aos portões da minha ex-casa, no Morumbi. Confesso que agi por impulso. Nem por um instante cogitei o que faria, se as coisas dessem errado. 
Eram duas horas da tarde – horário em que Marcus Vinícius, com toda certeza, estaria no trabalho. Sexta-feira era dia de reunião com seus vendedores. Me senti segura para agir.
Sem grandes esperanças, enfiei a chave no portão. Marcus Vinícius podia estar apaixonado por mim, mas tinha bons advogados. Com certeza trocara as fechaduras...
Mas a chave deslizou facilmente. Entrei pelos fundos, dando um susto na cozinheira:
- Ai, Dona Denise, é a senhora! Nossa! Pensei que fosse o ladrão!
- Como vai a família, Dona Edwiges? E o netinho?
Ela me deu notícias detalhadas. Sempre fui popular com os empregados, ao contrário de Marcus, que era muito antipático.
Dona Edwiges se disse muito triste com a separação, pois eu era a melhor patroa que já tivera. E os carros? Quem ia ficar com eles? Todos com o patrão? Até o modelo novo, aquele do Rubinho Barrichello? Mas que injustiça! Não, isto não estava certo. Eu devia era arranjar um bom advogado.
Queria pegar umas coisinhas que esquecera em casa? Pois não fizesse cerimônia. Em casa estavam só ela e a arrumadeira. Eu que ficasse à vontade.
Se eu fosse mais esperta, teria desconfiado toda aquela facilidade: portão com a mesma fechadura, empregados desprevenidos... Mas não conseguia pensar em mais nada, só na Ferrari. Queria botar as mãos no seu volante o mais rápido possível.
Fui direto ao quarto de Marcus. Como imaginava, ali estavam as chaves com o logo da Ferrari. Agarrei-as, me esgueirei pelo jardim e de lá para a garagem. Ainda tinha o controle remoto do portão.
Lá estava ela, mergulhada na semi-obscuridade. Ferrari 360 Modena F1 Spider. Caixa de marchas derivada dos bólidos da F1. Motor V8 de quatro válvulas, que produzia 400 cv de potência. Velocidade máxima de 295 km por hora! Aceleração de zero a 100 km/h em 4,5 segundos!
Marcus Vinícius sabia o efeito que aquela máquina teria em mim. Fiquei ali, parada no limiar da garagem, respirando com dificuldade. Minhas mãos formigavam para agarrar o volante da Modena. Meus pés impacientes queriam pisar no seu acelerador. E ela era minha! Legalmente minha!
Aproximei-me da Ferrari, percorri meus dedos sensualmente pela sua pintura. Abri a porta. Mergulhei nos seus assentos macios e fechei os olhos. Abri-os de novo, examinei o câmbio: seis marchas!
Marcus Vinícius devia ter pago meio milhão de reais pela Modena. Mas naquele momento nem pensei em dinheiro. Dirigir a Ferrari, para mim, era mais uma etapa de meu crescimento espiritual.
Coloquei a chave no contato, girei-a, e ouvi o ronronar incomparável do seu motor.
- Denise!
Olhei para a entrada da garagem e lá estava meu ex-marido. Na sua mão, uma arma.
- Eu sabia que você viria – disse. Percebi imediatamente que estava fora de si. Suas roupas estavam em desordem, seus olhos, injetados.
- Marcus, calma. Vamos conversar.
- Não quero conversa nenhuma, sua vadia. Você tem que voltar para mim.
- Nem pensar – disse eu, tolamente.
No minuto seguinte, uma bala passou raspando pela minha cabeça e foi cravar-se na parede oposta da garagem. Se eu tinha alguma dúvida sobre as intenções de Marcus, não tive mais. Ele queria me matar. Abaixei-me, encostei a cabeça no volante:
- Marcus, pelo amor de Deus, páre com isso!
Mas ele continuou dando um tiro após o outro, metodicamente, feito um louco. Graças a Deus, o filho-da-puta tinha má pontaria.
- Dona Denise! Dona Denise!
Era a cozinheira, desesperada, vinda da cozinha. Logo atrás vinha a faxineira.
- Não faça isso, seu Marcus! – gritou Dona Edwiges, desesperada.
- Fora daqui! – disse meu ex-marido, virando-se para elas e dando um tiro em sua direção. – Fora, vocês duas!
Elas se jogaram no chão. Marcus girou nos calcanhares e tentou de novo me acertar. Rachou o vidro da frente. Eu não tinha a mínima idéia de quantas balas havia naquele revólver. Mas tinha uma certeza: ali, era matar ou morrer.
O tiro seguinte atravessou a lataria da Ferrari e selou minha decisão.
Pisei o pé com força no pedal, engatei a ré e acelerei com toda força. Só fui parar perto do portão. Felizmente consegui evitar uma batida. Já meu ex-marido tinha voado longe e sofrido fratura do crânio. Chegou morto ao hospital.

Bem, essa é minha história. Naturalmente, quando a polícia chegou, não tive dificuldade nenhuma em explicar a situação. As balas que Marcus Vinícius tinha deflagrado estavam cravadas nas paredes da garagem. E, além do mais, eu tinha duas testemunhas do acesso de loucura de Marcus.
- Um caso claríssimo de legítima defesa – afirmou o meu advogado (o mesmo que trabalhara para o falecido), quando saímos da delegacia. – Ele queria matá-la, e seria um crime premeditado. Colocou detetives para segui-la, que o chamaram assim que você botou o pé em casa. Não acredito que você vá a julgamento.
De fato, não fui. Em vez disso, herdei toda a fortuna de Marcus. Eu e Velmax – cada vez mais sedutor e misterioso, em seus novos macacões de couro – fomos dar uma voltinha pela Europa, visitando as melhores mecânicas do Velho Mundo. Atualmente, estamos completando nosso tour, depois de sujarmos as mãos na graxa de vários países. Não vemos a hora de abrir nossa oficina em Goiânia.
O que aconteceu com Marcus Vinícius foi realmente lamentável, mas fazer o quê? Algumas pessoas não sabem quando pisar no freio. É uma pena. Mas não vou dizer que sinto saudades dele.
Se vendi a Ferrari? Claro que não. Está lá no Brasil, me esperando. Um mecânico credenciado pela montadora veio da Itália para reformar sua lataria. Dizem que está novinha em folha.
Não sossego enquanto não botar minhas mãos nela.

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