No final dos anos 70, Fábio A., então um jovem diplomata,
trabalhava com o adido cultural da embaixada brasileira em Paris. Divulgava
na França as novas glórias do cinema brasileiro - A Batalha
dos Guararapes, Os Inconfidentes ou Independência ou Morte.
Fábio A. cumpria suas funções com eficiência.
Promovia exibições para convidados seletos, seguidas de
coquetel e salgadinhos. Cavava notinhas na imprensa local, que depois
eram enviadas ao Brasil. E assim ia tocando.
Na mesma época, Fábio A., sem o conhecimento dos seus superiores,
também fazia um lucrativo bico como intermediário entre
produtores de pornochanchadas brasileiros e exibidores especializados
franceses. Eram filmes como As Cangaceiras Eróticas e
Como era gostosa a nossa empregada. Os exibidores franceses achavam
a mercadoria très exotique. E Fábio ganhava um dinheirinho
com a comissão.
Circulando entre as salas pornôs de Pigalle, Fábio A. conheceu
Véronique. Apesar do nom de guerre, Véronique era
brasileira de Valinhos. No passaporte, seu nome era José Luiz de
Andrade. Requisitadíssima pela clientela francesa, fazia ponto
no Bois de Boulogne.
Fábio A. começou a sair mais cedo do trabalho para encontrar
Véronique antes que ela saísse para o trottoir. Ainda
esperava que voltasse e chegava à embaixada atrasado, com grandes
olheiras.
Tanto insistiu, suplicou e infernizou, que Véronique concordou
em abandonar o Bois de Boulogne.
O diplomata instalou-a em seu apartamento, e exigia que ela passasse os
dias em casa. Véronique ficava vendo televisão, comendo
croissants e morrendo de tédio. Um dia, aconteceu o inevitável:
Fábio A. voltou para casa mais cedo e encontrou-a na cama com outro
homem.
Foi um escândalo: tapas, palavrões, gritos. O prédio
todo ouviu. A concierge ouviu e disse que c'était inadmissible.
Chamou a polícia. A embaixada interveio para que o caso não
chegasse aos jornais. Véronique sumiu, e Fábio A. foi aconselhado
a pedir demissão. Discretamente.
Voltou ao Brasil e arranjou emprego num jornal. Simpático, cheio
de lábia, tinha bom texto e fumaças intelectuais. Logo foi
promovido a crítico.
Escrevia principalmente sobre cinema nacional. Conheceu e fez amizade
com vários diretores. Freqüentava suas casas, ia às
suas festas, era apresentado a atrizes. Quando os filmes desses cineastas
estreavam, Fábio lhes dedicava colunas e colunas de espaço
- mesmo que se tratassem de bombas inomináveis. Comparava o novo
filme com as "obras" anteriores do diretor, geralmente tão
ruins quanto. Traçava paralelos, mostrava a "evolução
da linguagem" do responsável por aquele horror.
Bons filmes recebiam o mesmo tratamento, e ficava tudo por isso mesmo.
Os anos passavam. Os amigos de Fábio nem suspeitavam daquele incidente
em Paris, há tantos anos. Quando uma nova e misteriosa doença
começou a fazer vítimas no Brasil, ele procurou um médico
e fez exames, para saber se o affaire com Véronique tinha
lhe deixado alguma recordação desagradável. Não
era o caso.
Logo em seguida, Fábio A. conheceu uma escritora que produzira
alguns roteiros para filmes sem pé nem cabeça, cujos diretores
tinham sido subsidiados pela Embrafilme. Fábio casou-se com ela.
Mais alguns anos passaram. O cinema nacional não decolava, ninguém
sabia porque. Fábio A. continuava escrevendo seus volumosos artigos.
Ocasionalmente, desagradava um ou outro cineasta que não se sentia
suficientemente elogiado. Este então escrevia reclamando e iniciava
uma polêmica. Era bom, movimentava o suplemento.
Uma noite, Fábio A. vinha descendo a rua Augusta quando um vulto
magro barrou-lhe a passagem. Mal podia enxergá-lo no escuro, mas
identificou o perfume forte, a franjinha preta. Um clarão de mercúrio
caiu sobre o rosto devastado: era Véronique.
Contou que estava muito doente, voltara à pátria para morrer.
Fábio não poderia lhe fazer um empréstimo? Por amor
aos velhos tempos? Ele deu tudo que tinha na carteira, com uma presteza
apavorada, e foi embora o mais rápido possível.
Não se sabe como, Véronique descobriu o seu telefone na
redação. Começou a ligar duas, três vezes por
semana, para contar as misérias da sua vida. Estava morando um
quartinho, no Brás. No final da conversa, invariavelmente pedia
mais dinheiro.
Era gentil, não fazia chantagem, mas Fábio sentia uma ameaça
no ar. Começou a ficar nervoso. A mulher estava grávida.
E se Véronique ligasse para sua casa?
Às vezes ela sumia por algumas semanas, mas sempre voltava. Dizia
que tinha sido internada, mas já estava boa. "Tenho o couro
duro", avisava, e dava uma risadinha seguida de um acesso de tosse.
Um presidente fora eleito, e os cineastas não haviam colaborado
para sua eleição. Rancoroso, o homem jurou vingança.
Ao tomar posse, extinguiu a Embrafilme e abriu a temporada de caça
ao cinema nacional.
Pouco depois desse infausto acontecimento, Fábio A. escreveu um
longo e reflexivo artigo sobre o fim (ao que tudo indicava) do cinema
nacional. Os próprios cineastas tinham provocado aquela catástrofe,
com seus filmes mal-feitos, mal-iluminados, mal-sonorizados, com atuações
indigentes e roteiros incompreensíveis (a esposa de Fábio
agora escrevia telenovelas). E depois, os brasileiros não sabiam
competir no mercado moderno. Viviam na gaiola dourada da Embrafilme. Era
bom que ela tivesse acabado.
Muitos elogiaram o corajoso posicionamento do crítico. Ele ganhou,
é verdade, uma porção de inimigos. Mas nenhum deles
tinha uma coluna tão influente quanto a sua.
A partir daquele ano, Fábio A. praticamente só viu filmes
estrangeiros - ou melhor, americanos. Mocinhos, bandidos, socos e romances
em inglês, só em inglês, eternamente em inglês.
O cinema, essa janela para o mundo, não mostrava mais essa parte
do mundo que nos coube.
Nenhuma imagem brasileira. Nenhum cangaceiro. Nenhum gaijin. Nenhuma macabéia.
Véronique também sumiu. Fábio deduziu que tinha morrido,
mas nunca teve certeza.
Nessa mesma época, as redações começaram a
contratar cineastas desempregados. Geralmente, vinham escrever sobre cinema.
Os ex-cineastas tratavam Fábio A. com tanta amabilidade, que só
podiam estar escondendo um ódio mortal. Fábio A. sentia
um vago medo de que eles, de repente, voltassem a fazer filmes. Era um
medo parecido com o das suas escapadas furtivas à rua Augusta -
onde ainda temia, a qualquer momento, encontrar Véronique.
Nesses momentos, o crítico tentava se convencer de que fantasmas
não tinham pernas. Nem financiamentos. Respirava fundo, sorria
para os michês e continuava sua caminhada.
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