Os vampiros viviam felizes da vida, fazendo sucesso no cinema e comendo muitas mulheres. Até o dia em que a Escrevinhadora resolveu mexer com eles...

DA ARTE DE AGÜENTAR UM CHATO
Meu emprego? Bom... é médio. Tem seus pontos positivos e seus pontos negativos. Por exemplo, o salário não é ruim.
Em compensação, o trabalho é um saco! Jesus do Céu, é um cu! Tem horas que tenho vontade de pedir as contas e nunca mais aparecer. Mas sabe como anda a situação... Emprego com carteira assinada, hoje em dia, é raridade.
Já perdi a conta das vezes em que fui trabalhar pensando: é hoje. Hoje peço o bilhete azul. Mas aí começo a fraquejar. Se ficar desempregado, provavelmente terei que vender meu carro. Adeus passeios, viagens, baladas... E nos fins-de-semana? Como vou sair, me divertir? Hoje em dia, qualquer cervejinha que você tome fora de casa já é uma fortuna. Adoro dançar, e sabe quanto fica a consumação mínima em qualquer boate legal? E a roupa? Eu gosto de andar bem arrumado... E as férias? Ano passado fui pra Parati, foi um arraso. Amei.
Se peço demissão, adeus férias, adeus balada, adeus roupinhas. É, pode me chamar de covarde. Eu não devia dar tanto valor pras coisas materiais... Mas o que fazer, sou assim.


O grande problema desse emprego é o seguinte: meu patrão é o cara mais pentelho da humanidade. Ele é um saco, menina, você não acredita.
Pra começo de conversa: espaçoso. É verdade que ganho bem, mas não precisava abusar por causa disso. (Afinal das contas, faz dois anos que não tenho aumento. E a inflação? Sempre que falo no assunto, ele se finge de surdo).
Oficialmente, sou mordomo. MORDOMO. Segundo o dicionário (eu consultei) deveria "supervisionar a criadagem no cumprimento das tarefas domésticas" . Só que fica meio difícil supervisionar a criadagem quando o único criado sou eu. Que raio de mordomo é esse?
Assim que entro naquele mausoléu, tenho de fazer a faxina. E lá se vai a Escrava Isaura limpando, esfregando, polindo, encerando... Você acredita que a pessoa exige que eu encere as escadas todo santo dia? Aliás - toda santa noite. Qualquer dia desses escorrego naquela porcaria, caio e quebro o pescoço.
Depois da faxina, tenho de acordar a criatura. Bato na porta do quarto com força porque sei que ele tem sono pesado:
- Valfrido! Valfrido! Ô Valfridooooooô! Acorda!
- (...)
- Valfridoooooooô!
Finalmente ouço alguém se remexendo lá dentro. E aquele voz rouca dele. (Sexy? Depende. Você acha catarro sexy?):
- Que é?
Isso é que me enlouquece: toda noite ele pergunta a mesma merda. E toda noite dou a mesma resposta.
- Sou eu, Valfrido. Mário Sílvio. Seu mordomo, lembra? Hoje é onze de novembro de 2003, estamos em São Paulo, Brasil, e você precisa acordar pra comer. São onze da noite.
- Onze?
- Onze.
- Mas já está escuro?
É o rei das perguntas imbecis.
- Cem por cento.
Pausa. Depois, ouço sempre a mesma frase:
- Ai meu Deus do céu meu reumatismo.
Saco. Se tem reumatismo, por que não vai no médico? Mas não, prefere ficar reclamando. Já disse oitocentas vezes pra passar no reumatologista, mas ele sempre vem com a mesma desculpa. Que o horário... Ora essa, tem médico a qualquer hora da noite. Não tem? Pois é. Mas vai enfiar essa idéia na cabeça daquela múmia.
- Quer que eu ajude você com o caixão?
- Não, não, não precisa.
Ele sempre diz que não precisa. Aí, não deu cinco minutos, me chama de novo:
- Mário Sílvio, vem me ajudaaaar! - naquela voz triste de pobre velhinho sofredor. Ai meu saco.
Entro e vou abrir a tampa, que é pesada pra xuxu. Por que não compra um caixão mais leve?
- É muito caro - me disse ele, uma vez.
Caro! Ele é o maior munheca da face da terra, isso sim. Quanto deve custar um caixãozinho desses de pinho? Uma ninharia! E o cara é cheio da grana!
Ele se apóia nos meus ombros pra sair de lá. Menina, o hálito do cara é de revirar o estômago. Essa é uma das piores horas do meu expediente. Quase vomito.
Depois de muita luta, finalmente consigo botar o cara de pé. Como ele é? Feio. Nossa, que homem feio. Na juventude não devia ser grande coisa, mas hoje em dia é de assustar criancinha. Roupa cheirando a naftalina. Todo enrugado, parece maracujá de gaveta. Branco feito lençol - e ainda passa pó branco no rosto, na hora da maquiagem. Que eu sei que ele faz, embora negue.
Mas já foi bem pior. Quando entrei no emprego, a criatura fedia feito carniça. Coloquei minhas condições. Não ia trabalhar com aquele fedor horroroso.
- Banho todo dia, ou peço demissão.
- Banho? Está ficando louco? Nunca! Jamais!
Desconfio que na terra dele, lá na Europa, ninguém é muito chegado numa Sabesp - por causa do frio, acho. Tudo bem, cada um com seu costume. Mas aqui, com esse calor, você já imaginou?
- Ou toma banho, ou tô fora.
Ele resmungou, xingou, esbravejou, mas acabou cedendo. É pra você ver, fofa: eu me tornei indispensável. Esse homem não vive sem mim.
Mas continuando. Depois que ele está de pé, pede a papinha. Então vou pegar aquele troço nojento na geladeira; ele toma diluído com leite.
O pior é que sempre faz careta, na primeira colherada:
- Mas esse mingau é de ontem...
- Sinto muito, mas o Banco de Sangue não mandou mais. Estão em falta... É difícil encontrar doadores hoje em dia.
- Com a fábula que eles cobram!
E vai resmungando até o fim do mingau. Essa primeira refeição é só para agüentar sair, porque senão ele não fica de pé. Come até raspar o prato. Depois, limpa os beiços num guardanapo de papel como ensinei, e diz na maior cara-de-pau:
- Tá uma porcaria! Você não aprende a cozinhar, mesmo!
Nessa hora, sem trocadilho, meu sangue ferve. Que ódio! Vontade de matar! Faço aquele mingau com o maior capricho, bem temperadinho, pra quê? Pro caco velho me vir com essas malcriações! Velho escroto, mal-educado, grosso... É uma tora!
Outro dia perdi a paciência, peguei o prato, tasquei com toda força na pia e só disse assim:
- Não está satisfeito, muda de pensão!
Ele então veio todo mansinho pedir desculpas.
Nessa altura, já é quase meia-noite. Ele então começa toda aquela encenação pra sair.
- Minha capa, Mário Sílvio.
Abro o armário e pego a capa de cetim. Preta por fora, vermelha por dentro. Brega? Brega é apelido, menina! Aquilo é um aleijo!
- Pronto - digo, e levanto a papada da criatura, para amarrar as fitinhas debaixo do pescoço como ele gosta. Aí ele sempre vai se olhar no espelho. Sempre! Não acredito! Será Alzheimer? Chega em frente ao espelho e fica olhando com a boca aberta, feito idiota. Aí eu digo, todo paciente:
- Valfrido...
- Mário Sílvio!
- Valfrido, quantas vezes preciso te lembrar que O ESPELHO NÃO REFLETE VOCÊ? Ai, minha Nossa Senhora do Babado Roxo!
Ele faz uma cara mais palerma ainda:
- É mesmo!
- Depois de sete séculos nessa vida, já estava na hora de aprender...
- Eu esqueço, Mário Sílvio - diz ele, com uma cara tão triste que até sinto remorso. - Esqueço tudo hoje em dia... Não sei o que acontece com a minha cabeça...
- É a friagem. É o sereno. Se ficasse aqui em casa, em vez de sair feito uma louca na rua toda noite, nada disso acontecia.
- Puxa, Mário Sílvio... Bem que eu gostaria de ficar aqui assistindo uns vídeos com você! Mas preciso me alimentar!
E enxuga uma lágrima vermelha com a manga.
- Olha a sujeira, Valfrido! Não vê o esforço que eu faço pra conservar suas roupas novas?
- Mas aquelas velhas estavam tão boas...
- Caindo aos pedaços, isso sim. Não sei como você tinha coragem de sair com aquilo na rua.
- No escuro, ninguém nota...
- Você é que pensa. Pode ser que fosse assim no seu tempo, quando se usava vela. Hoje, com iluminação pública, é outra coisa...
Mas ele continua a choramingar. Vai acabar arruinando a roupa. Aí, toca a escrava lavar tudo de novo, naquela máquina toda rebentada. Outro dia ele me contou, todo orgulhoso, que era novinha: "Comprei no máximo há uns trinta anos".
- Bom. Vai andando, vai. Tenho mais o que fazer.
A essa altura o táxi já está na porta, esperando a madame. Onde vai? Sei lá! Nunca perguntei pra ele onde arranja suas "refeições". Nem pra ele nem pro taxista, um gordão chamado Honório, que vive com um palitinho de dente nos caninos afiados.
Entre eles dois, o obeso mórbido e o caco velho, a caçada da noite deve ser uma coisa. Uma performance. Ainda bem que não sou obrigado a presenciar essas cenas deprimentes.
Quando o ronco do Gol do Honório se afasta (aquela lata velha deve ter no mínimo uns dez anos) começa a melhor parte da noite para mim. Quatro horas de paz e sossego. Dou assim uma arrumadinha básica na cozinha, espano o caixão, se precisar telefono pro Banco de Sangue. Tem um supermercado vinte e quatro horas ali perto e às vezes dou uma passada pra comprar comida pra mim, mais uns produtos de limpeza. Às três da manhã faço uma ceiazinha e depois me estendo no sofá. Na maior parte das vezes, acabo pegando no sono. Mas às vezes até consigo assistir um filme interessante na TV.
O sossego dura pouco. Às quinze pras quatro, ouço o ronco do Gol do Honório na esquina: pufpum, pufpum! Isso sim é que é motor a explosão.
Vou para o portão da frente esperar meu patrão. Essa é outra hora da noite que dá vontade de pedir demissão. Ele chega tão cansado que, entre eu e o Honório, demoramos uns quinze minutos pra tirar o infeliz do Gol. E você sabe que, apesar de magro, o desgraçado é bem pesadinho?
Agora, depois de muitos anos de bronca, estou conseguindo que tome cuidado com as roupas. Mas antes era um saco, toda noite voltava com aquelas manchas horrorosas. Principalmente no colarinho... Hoje faço ele sair com um babador. O Honório tem instruções de amarrar no pescoço e só desamarrar quando ele terminar a "refeição".
Mas teve uma noite em que ele passou dos limites. Você acredita que trouxe a "refeição" pra casa? Era uma oxigenada bem falsa, já meio desfalecida, com a maquiagem borrada e umas roupas escandalosas. Agora me diz uma coisa: onde você pensa que ele arranjou essa mulher?
Fiz um escândalo. Mandei o Honório sumir com aquela baranga. A mulher foi embora no banco de trás do Gol, e o Valfrido ficou choramingando que tivera de sair às pressas, que carregara a loira para terminar em casa, e que eu era muito malvado, porque agora ele ia morrer de fome!
Eu atalhei:
- Bom, Valfrido, é o seguinte. Pra mim deu, entende? 'Cabou. Fui.
- Mas Mário Sílvio...
- Você por favor faça as minhas contas, que eu não trabalho mais nem um minuto nessa espelunca.
Quase fui mesmo. Mas na noite seguinte ele ligou aos prantos para a minha casa, dizendo que estava sozinho e se machucara ao sair do caixão, não conseguia esquentar a papinha e não sei mais o quê. E a trouxa aqui voltou... Foi aí que ele me prometeu aumentar o salário "em breve".
Estou esperando até hoje.
Mas enfim. Justiça seja feita, nunca mais ele me aprontou uma dessas. Sabe que está proibido de trazer comida para casa. Em qualquer caso. Sem exceções.
Então ele chega no Gol do Honório, sobe a escadaria aos gemidos e espera esparramado no sofá enquanto eu lhe trago a sobremesa - um coagulozinho com coco, receita especial minha. Ele adora.
Bom, a essa altura já estou um trapo, são quatro da manhã. Ele podia ter a consideração de se enfiar no caixão e dormir, né? Mas não. Em vez disso quer conversar, a boneca. E eu sou obrigado a ficar acordado, com os olhos quase fechando, enquanto ele conta aquelas histórias da mocidade. Jesus, que tédio! Cada história eu já ouvi, sei lá, umas cinqüenta vezes. Mas é só dar uma cochiladinha que ele praticamente grita no meu ouvido:
- 'Tá me ouvindo, Mário Sílvio?
- Tô, tô...
Como se eu tivesse outro remédio....
A história preferida dele é a da princesa. A tal que largou tudo e se tornou vampira só para acompanhá-lo! Gente, que coisa ridícula. Não acredito numa palavra desse tralalá. Olha só a cara dele. Vocês acham que alguma princesa ia abandonar o trono para ficar com isso? Só se estivesse muito desesperada, e bota desesperada nisso...
Fora que tem mais um detalhe. Se ela abandonou mesmo o castelo para segui-lo, onde anda a essas alturas? Bem que podia estar aqui, me ajudando a cuidar do caco velho.
Se é que essa história é verdade, acho que a tal princesa corneou ele e fugiu com o primeiro vampiro bonitão que passou pelo caminho. Não a culpo, aliás...
Bom. Ele conta a história bem devagarzinho, com a velocidade de uma lesma retardada. Aí, quando chega à parte onde os dois fogem dos aldeões revoltados num lindo cavalo branco, já começou a amanhecer.
Finjo que levei um susto:
- Valfrido! Minha nossa mãe do céu! O sol já apareceu, você precisa voltar pro caixão!
Ele, de branco, fica verde. Entra no caixão com a velocidade de um foguete. Não vou negar que é divertido...
Já no caixão, diz numa voz aflita:
- Mário Sílvio! Não se esqueça de fechar a tampa!
- Não, Valfrido. Vou deixar aberta, pra você virar poeirinha.
Normalmente ele não responde quando eu digo isso. Mas outro dia, depois de alguns segundos, retrucou:
- Mário Sílvio.
- Ai, meu saco. Que foi?
- Você não faria isso, né?
Confesso que fiquei meio... sei lá. Comovido. Bobagem minha. Até senti o olho umedecer.
- Faria?
- Não enche, Valfrido.

Bom, é isso. Depois de tampar o caixão, não fico ali mais nem um minuto. Pego minhas coisas, tranco a casa e saio. Já são quase seis da manhã - cinco, no horário de verão - e eu estou podre, precisando de cama urgente. Vou pra casa e durmo até às duas da tarde. A essa hora todo mundo está trabalhando, é difícil você encontrar um amigo, fazer um programa. Dali a pouco já está na hora de voltar pra lá.
É um saco. Odeio meu emprego. Mas fazer o quê? É a vida, né? Todo mundo tem esse tipo de problema. Você também não odeia o seu?
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