Anatólia e Papoula são a mais exótica dupla de detetives já criada por um escritor - no caso, meu amigo Jean Canesqui, que bolou este estranho casal. Anatólia é legista e dominatrix. Papoula é travesti e ex-delegada de polícia. Estamos escrevendo um livro sobre as duas personagens, em esquema de colaboração. Aceitamos propostas de editoras. Aceitamos escrever sob encomenda. Em último caso, aceitamos um chopinho.

O ÚLTIMO CHOPE COM ANATÓLIA E PAPOULA

Como todo casal feliz, Anatólia e Papoula tinham muitas afinidades. Mas também tinham suas diferenças... além, é claro, da mais óbvia.
Por exemplo: enquanto Papoula era capaz de beber quantidades imensas sem se alterar, Anatólia ficava de pilequinho já no segundo chope. Que dirá no décimo, então.
- Papoula – disse Arnaldinho Gatto, que acompanhava a dupla de detetives naquela noite – acho que você vai ter de carregar sua mulher pra casa.
- Essa aí tem cabeça fraca pra bebida – disse Papoula, balançando a cabeça. – Mas eu tenho um remédio pro porre dela. Não tenho, amor?
Anatólia, que estava há vários minutos rindo da mesma piada, suspendeu o riso e enfiou a mão, sem maiores cerimônias, debaixo da saia da companheira.
- Nossa, amor – disse, suspirando. – Que remédio duro de tomar!
Os três companheiros de mesa caíram na gargalhadas. O dono do boteco lançou um olhar torto, mas não ousou reclamar. Anatólia e Papoula eram as únicas freqüentadoras do bar que sabiam da sua vida secreta. A estampa de machão de Terêncio, o rei dos bolinhos de bacalhau da Zona Norte do Rio, nunca enganou as duas detetivas. Principalmente depois que encontraram o empresário num bar gay, abraçado a uma drag queen conhecida como “Carmem Miranda”.
Depois disso, os bolinhos de bacalhau para Anatólia e Papoula eram por conta da casa.
O resto da freguesia era de machões; mas, com o tempo eles acabaram se acostumando com o travesti Papoula. Também, se não se acostumassem, levavam umas porradas.
- Não beba demais, Anatólia – pediu Arnaldinho. – Quero que vocês me contem a história do seu romance...
- Ah, meu amor, é uma longa história.
- A noite é uma criança, Anatólia...
- É, mas amanhã é dia de branco. Temos que levantar cedo, abrir nossa agência...
- Por exemplo. Essa agência. É de investigações, afinal?
- Maré Vermelha. Investigações. Intimidações.
- ... e outros – complementou Papoula, levantando refinadamente o dedinho para emborcar sua pinga. - Até aconselhamento conjugal já fizemos...
- ... pra uma atriz mexicana aí – complementou Anatólia, com voz um tanto pastosa.
- Quem? Quem? – perguntou Arnaldinho, curioso.
- Meu amor! – atalhou Papoula, com seu melhor ar de Perua Indignada. – Você acha mesmo que vamos sair por aí dedando nossos clientes para um fotógrafo da revista Caras? E o sigilo profissional? E a ética, fofo?
- Jamais revelaríamos um dado desses. A menos, é claro, que fosse por uma grana preta... – atalhou Anatólia.
- ...que você não tem. Portanto, esqueça o assunto – complementou Papoula.
Arnaldinho suspirou. Emborcou mais uma cerveja e mudou de assunto:
- Mas então. A Maré Vermelha. Pra quê trabalhar, se vocês são ricas?
- Ah, meu querido... O dinheiro não é tudo na vida – disse Papoula.
- Tem também o sexo – emendou Anatólia.
- E os agitos gays – complementou Papoula.
- Nosso apartamento com vista pra Augusta...
- Nossas amigas travecas...
- E nossas festinhas SM... Temos até um clube! Aliás, Arnaldinho, você  está convidado a aparecer por lá.
- Não curto apanhar...
- Também pode bater, se quiser. Ou os dois. Ou qualquer coisa. As possibilidades são infinitas.
- Vocês estão fugindo da minha pergunta. Pra quê as dondocas querem trabalhar?
Anatólia e Papoula olharam uma para outra. Por fim, Papoula limpou a garganta e confessou:
- A gente gosta. É nosso ramo, Arnaldinho. A Anatólia é legista, eu sou policial... por vocação.
- Epa! Que voz grossa é essa, mulher? – estranhou o fotógrafo.
- Sempre que ela lembra dos seus tempos de delegado, fica assim – disse Anatólia, segurando a mão da parceira. - Sentimental.
- Aqueles bofes da Secretaria de Segurança acabaram com minha carreira – disse Papoula, ainda com a voz de macho, mas mal contendo as lágrimas. – Até ali, eu era a estrela da Polícia Civil... Quando deixei crescer os peitos, fui tratado como lixo. Arrumaram um pretexto pra me demitir...
- A bem do serviço público – reforçou Anatólia – Sem chance de defesa.
- Disseram que eu não impunha respeito. EU NÃO IMPONHO RESPEITO PRA VOCÊ? – berrou subitamente Papoula, com sua poderosa voz de barítono. E deu um murro na mesa.
- Calma, meu bem – disse Anatólia.
- Manera aí, Papoula – avisou Terêncio, enxugando um copo lá do balcão.
- C-claro que você impõe respeito! – afirmou Arnaldinho, intimidado. – Muito. Juro.
- Você acha – disse Papoula, retornando ao tom de falsete – que, pelo fato de eu ter esse cabelo louro maravilhoso, essas pernas que Deus me deu -  exibiu as pernas, de fato belíssimas – e usar batom e sombra, não imponho respeito?
- Claro que sim!
- Os bandidos se borravam de medo, quando ele batia o salto na mesa! – afirmou Anatólia, orgulhosa.
- Uma vez, subi no morro de meia rendada, salto agulha e escopeta! Foi a glória!
- Puxa... – disse Arnaldinho. – Bem que eu gostaria de ter visto isso.
Papoula suspirou, muito triste:
- No dia seguinte, fui forçada a pedir demissão. Rolavam umas ameaças... uma pressão... aliás, assim que os hormônios começaram a fazer efeito...
- O peito cresceu... – completou Anatólia.
- A bunda arredondou...
- A voz afinou...
- Rua!
- Que pena – disse Arnaldinho.
- Eles ainda me ofereceram um serviço administrativo... papelada... Não aceitei, é claro. Eu sou delegado! Concursado!
Baixou as pálpebras carregadas de rímel. Vendo-a triste, o fotógrafo mudou de assunto:
- E como vocês dois... digo, vocês duas... se conheceram?
- Ah, isso foi antes – disse Anatólia. – Nos encontramos numa boate  sadomasô.
- Foi amor à primeira vista – afirmou Papoula, apertando a mão da companheira. – Assim que vi ela de chicote na mão...
- Eu era dominatrix de um monte de homens, mas eles me entediavam. – confessou Anatólia. – Não tinham imaginação, queriam sempre as mesmas fantasias ritualizadas, chatas... No começo eu curtia, mas com o tempo começou a me encher.  Aí surgiu a Papoula... me lembro como se fosse hoje. Com um vestido de paetê aberto do lado, mostrando a coxa inteira. Uma loucura.
- Foi lindo – suspirou Papoula.
- O lugar estava meio escuro, pensei que ela fosse mulher mesmo...
- E se eu fosse, gata...
- Nada contra, virava lésbica. Daquelas de coturno, pra te encher de pontapé...
- Ai que delícia – suspirou Papoula.
- Mas aí percebi que era um homem... A gente nunca mais se largou.
- Mas você... tinha fantasias com travestis?
- Quem precisa de fantasia, Arnaldinho, quando se é casada com a Papoula?
- Aliás – comentou a própria, fazendo um sinal para que Terêncio lhe trouxesse mais chope – este é o segundo casamento da Anatólia. Ela já era casada, quando me conheceu.
- Não me diga!
- Casada e fiel.
- Mas os homens que você encontrava, como dominatrix...
- Eu não fazia sexo com eles.  Com a Papoula, fui infiel pela primeira vez. Muitas vezes, aliás.
- E o seu marido?
- Larguei, claro. O Catarino foi um erro. Careta, conservador, nunca me deixou bater nele... Quando conheci Papoula, vi que estava jogando a minha vida fora.
- E nela, você bate muito?
As duas trocaram um olhar e desataram a rir. Anatólia respondeu:
- Isso, meu querido, deixo pra sua imaginação... Sabe, Arnaldinho... foi  legal te conhecer.
- Demorou! – afirmou o fotógrafo – Vocês duas são demais.
- Se a gente não fosse fazer a segurança do Roberto Ralentando... nunca teria se encontrado.
- Pois é... Agora, desculpe a franqueza. Mas que festa chata, essa do aniversário do Roberto! Boate, champanhe, mas ninguém se divertia. Todo mundo fazendo pose pra ver se aparecia na revista...
- E aparece?
- Minha filha, pelo que sei, só vai aparecer o Roberto. Afinal, ele está na TV, faz novela das oito, é um puta astro. As menininhas ficam se babando por ele...
- E o cara é maior gente-fina – afirmou Anatólia. – Ficou nosso amigo.
- Onde vocês conheceram ele?
- No batizado do nosso poodle – afirmou Papoula.
- No consultório do proctologista – disse Anatólia.
As duas tinham falado simultaneamente. Seguiu-se um silêncio constrangido. Os olhinhos espertos do fotógrafo passearam pelo casal, avaliando a conveniência de fazer mais perguntas. Mas Anatólia tinha tirado um espelhinho da bolsa, e retocava a maquiagem. Papoula, por sua vez, espreguiçou-se e berrou para Terêncio:
- A saideira, Tesinha!
O bar estava vazio. Rebolando, Terêncio veio trazer a bandeja com os copos.
 
No dia seguinte, de manhã, Arnaldinho acordou num hotel vagabundo, com uma pavorosa ressaca, um olho roxo e uma dor persistente no mamilo esquerdo. Não tinha a menor idéia de como viera parar ali. 
Arrastou-se até o espelho e levantou a camisa. Ai! Começava a se lembrar... Em volta do mamilo, havia uma nítida marca de mordida.
Anatólia.
Sem dúvida.
Quanto ao olho roxo... Mas, antes que se aprofundasse no olho roxo, uma idéia horrível lhe ocorreu. Pôs a mão no bolso. Tirou a carteira. Seu dinheiro estava ali, intacto. Mas não era isso que preocupava Arnaldinho Gatto.
Freneticamente, ele vasculhou um pequeno compartimento com zíper.
Vazio. Com um gemido, o fotógrafo deixou-se cair na cama.
Sua chance de tirar o pé da lama tinha se evaporado.

Agora, a memória começava a voltar. A dor do soco potente de Papoula, logo no primeiro beco escuro, era a primeira lembrança. Logo seguida pela agonia indescritível do chute nos testículos que Anatólia lhe aplicara, quando ele caiu no chão.
Depois de muito gemer e uivar, ele arquejou:
- Que é isso, suas loucas? Pra quê isso? A gente não é amigo?
- Sim – concordou Papoula, tirando a lixa da bolsa e começando a cuidar das unhas, enquando Anatólia fincava o salto no peito do fotógrafo. – Somos amigos, é claro. E podemos continuar assim...
- Desde que você nos entregue seu tesouro – completou a legista.
- Afinal, somos uma agência de intimidações... a serviço de nossos clientes, é claro.
- Mas o que vocês querem, porra?
Como resposta, levou uma agulhada de salto bem no peito, que fez lágrimas virem aos seus olhos.
- Não tente nos enganar, Arnaldinho...
- Você não estava bêbada, Anatólia? Mal conseguia andar...
- Eu fingi, sua anta.Queremos o stick card.
- Que stick card? (Oh, não, pensou o fotógrafo. Tudo, menos isso!)
- Aquele onde você guardou as fotos da festa do Roberto. Inclusive as dele com o namorado, no banheiro masculino.
- Que é isso, gente, eu...
- Não banque o mané, Arnaldinho, que vai ser pior pra você!
- ...desconhecia essa história... sempre pensei que o Roberto gostasse de mulher... Ele não namorava uma mina da novela das sete?
Foi aí que Papoula levantou-o do chão e começou a socar o seu estômago. No terceiro soco Arnaldinho pediu misericórdia. Entregou a carteira. O stick card. E ainda ofereceu dinheiro para que o deixassem em paz.
- Não somos ladrões, Arnaldinho – informou Papoula, dignamente. – Estamos só tentando impedir que o Roberto seja prejudicado pela imprensa burguesa e homófoba!
- Gente... - gemeu o fotógrafo – que é isso? Vocês acham mesmo que a Caras ia publicar um absurdo desses? Somos uma revista de classe!
- A Caras, pode ser que não... Mas você encontraria outra revista mundo-cão, que não teria escrúpulo em publicar esse lixo!
- Que é isso, Anatólia... Papoula... nunca pensei que vocês fizessem uma coisa dessas comigo... eu não tenho preconceito contra gays...
Foi aí que Anatólia lhe aplicou a mordida no mamilo.

- Aqui está, Roberto querido – disse Papoula – o stick card do cretino. Pode ir dormir em paz, que nada será publicado!
- Nem sei como agradecer – afirmou Roberto, fixando os olhos verdes no travesti.
- Ora, meu bem, tem um jeito muito simples...
Roberto olhou para Anatólia, que piscou para os dois:
- Fiquem à vontade, queridos... Mas deixem a porta aberta para eu escutar...
Os dois subiram sofregamente a escada. Alguns minutos depois, um rapaz magro, de calça e camisa pretas, desceu. Sorriu para Anatólia:
- Tudo bem, querida?
- Tudo ótimo, Lulu... principalmente agora que seu marido e minha mulher vão nos dar um concerto de saxofone e bateria!
E de fato, a música já vinha do pequeno estúdio de Roberto. Lulu acendeu um cigarro. Parecia tenso:
- Resolveram o problema daquele enxerido que fotografou a gente?
- Completamente.
- Ai, que alívio! – respirou Lulu. – Fiquei tão preocupada com isso, que tive medo que atrapalhasse minha ovulação!
- Vocês continuam tentando engravidar?
- Claro que sim... mas tem de ser logo, né, meu bem. Senão, nunca vou fazer a operação de mudança de sexo! Ui! Meus peitos estão doloridos, com o remédio que o médico lá da clínica de fertilidade me deu! E o calor que dá, menina!
E, sem maiores delongas, desabotoou a camisa e desenfaixou um pequeno par de peitos, firmes e redondos.
- Não se preocupe – disse Anatólia. – Aquelas fotos nunca serão publicadas.
E as duas sorriram uma para outra, cúmplices, enquanto os sons do saxofone viajavam escada abaixo.

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