Era
um ato de coragem. Na noite anterior, a sentença: amanhã
você leva a comida pro Do Mato. As histórias terríveis
que contavam sobre ele. A mãe não acreditava. A mãe
dizia que era tudo besteira. Sentiu um gelar por dentro. Sentiu raiva da
mãe. Não adiantava se esconder na parte de cima do guarda-roupa,
nem fingir doença na casa da avó. Era a sua vez de levar a
comida pro homem do saco.
No almoço, deixou de lado a batata frita. Não comeu nem a
salsicha que tanto gostava. O que matou a fome foi a paçoca que guardou
no bolso. Duas de uma vez só. Depois que lavaram a louça,
o raspar terrível das panelas. Era pecado jogar comida fora. Os olhos
e as lágrimas. As pernas que falseavam. Dá
na mão dele e volta pra casa. Vai, menina. Deixa de frescura.
Foi.
Chutava as pedras da rua, a cabeça baixa e a imagem da mãe
no portão. Mentira. A mãe não tava mais lá.
Tinha a casa pra limpar, roupa pra estender, aspirador de pó no quarto.
Você gosta de mim? A mamãe ama você.
O homem do saco no fim da rua. O homem do saco e o Matador não
tava com ele. Ainda bem. O Matador havia mordido um bebezinho há
muitos e muitos anos. O bebezinho morreu cheio de furos, por isso ninguém
mexia com ele, nem os meninos da rua debaixo, nem os homens da delegacia.
O Matador gostava de carne humana.
Do Mato parecia dormir. A cabeça pendurada no pescoço. Cabeleira
cinza e cheiro forte de urina. Tinha que chamá-lo pelo nome. Tinha
que pegar uma pedra e tacar no meio da testa, era assim que bicho acordava.
As unhas compridas. Se a gente não toma
banho fica que nem o Do Mato. Detestava tomar banho. Os piolhos.
O vinagre na cabeça. O pente fino da farmácia. Encheu-se
de coragem, compreensiva.
Do Mato, acorda.
O homem abriu os olhos. O coração dela, sem parar. Ele tava
vivo e ia se mexer. Esticou o braço pra pegar a marmita, os dedos
imundos no pano branquinho, branquinho. Abriu a tampa de plástico
e os dentes eram imensos. Agradece a tua mãe,
menina. A voz que mal se ouvia. Tava doente o Do Mato? De pé
era maior que o pai, o irmão e o avô juntos. De pé
era tão pesado que quando andava a Terra balançava.
Dá na mão dele e volta pra casa.
Talvez se não ficasse olhando depois da primeira colherada (Do
Mato segurava a colher diferente); talvez se o cachorro aparecesse (o
Matador comia carne de gente e ela estava gordinha, todo mundo dizia).
Mas a menina sentou na calçada, tirou do bolso um vidrinho com
detergente e montou o arame de pretexto, como se brincasse de bolha de
sabão.
Do Mato nem olhava. Do Mato só comia. A menina fingia que não
estava com medo. Fingia que não ligava pro bater da colher na marmita.
Então, o pigarro grosso e ninguém além deles na rua.
Era preciso ser corajosa. Queria perguntar se ele tinha cem anos de idade.
Queria descobrir se havia um colar de ossos no saco que ele arrastava.
Queria saber o gosto das garrafas do diabo que ficavam na esquina, ao
lado das flores e às vezes, até de galinha.
Mas Do Mato não parava de comer. Era uma colher seguida da outra
fazendo da comida coisa pouca, pra toda fome que vinha dele. Do Mato era
um jacaré de boca aberta, e não comia só com os dentes,
eram as mãos, os olhos, os braços. Eram os pés que
mastigavam. Do Mato devorava tudo em volta, a ponta da rua, parte do muro,
o pedaço do céu. Isso dava uma angústia na menina.
Era um buraco. Era nojo. Era medo. Era compaixão o que sentia,
mas não devia, porque Do Mato era mau. Ele roubava criança
pra vender na feira. Ele esmagava os gatinhos com uma mão só.
Precisava ouvi-lo falando, pra descobrir se ele era realmente humano,
porque a voz dos fantasmas é metálica. Então a menina
teve uma idéia, enfiou o arame potinho adentro e com o detergente
na esfera, começou a soprar uma bolha de sabão.
Foi uma bolha grande que saiu do seu hálito de paçoca.
Do Mato que raspava a marmita, parou. A bolha indo na sua direção.
Era grande, viscosa, colorida. Era linda e quando chegou bem perto, estourou
na sua bochecha barbuda. Ele riu. Riu do frescor. Riu da beleza. Riu daquela
coisa boba no meio das horas vazias, mas ao sentir o hálito da
menina que exalava da bolha. Do Mato fechou os olhos.
Era o cheiro de paçoca. Era a boca de criança. Era alguém
ao alcance dos dedos. E o rabo de cavalo, as pernas tortas, a menina e
aquele espremer por dentro. A menina e aquele constrangimento. A bolha
crescendo nele. Inchando. Preenchendo. A coisa que nunca soube dizer.
A coisa que nunca soube conter. Era melhor fugir. Era melhor se esconder.
Ensaiou um rugido. Ergueu os braços. Levantou o corpo do chão
e largou a marmita ali mesmo, na calçada.
Assustada, a menina correu pra casa. Do Mato também correu. Arrumou
as coisas no saco e entrou no terreno baldio. Em paz, afundou seu corpo
de jacaré no lago.
O
PAPO DA TATI
Os
contos da Tati sempre deixam o leitor com um certo arrepio. Eles nunca
são o que parecem à primeira vista: há sempre uma
dúvida, uma suspeita pairando no ar. Quem olha a carinha risonha
dela, não imagina que essa moça seja capaz de tanto mistério.
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