Em novembro, o convidado da Escrevinhadora é o Luiz Fernando Santos, com sua arrepiante história "Gaivota Azul". Eu conheci o Luiz na Oficina de Textos da Mário de Andrade, lá na Barra Funda. Além de escrever bem, ele é o melhor crítico literário amador que eu já vi. Devia passar para o time profissional...

GAIVOTA AZUL

Uma parede. Era o que lhe parecia aquele temporal, em meio à noite, enquanto viajava de Vitória para Alfredo Chaves, onde iria apresentar amostras de fertilizantes que representava naquela praça do Espírito Santo. Perdera a conta de quantas vezes cruzara a região e das condições adversas enfrentadas na estrada, com chuva e neblina. Mas nada se comparava com aquele pé d'água, tornando mais penosas as condições de visibilidade no escuro trecho da estrada, que já em condições normais apresentava pouco movimento.

Sobretudo antecipava problemas com seu carro. Não pudera fazer a revisão, mais uma vez adiada. Não quisera desperdiçar a primeira oportunidade de apresentar os produtos para uma grande fazenda daquela vizinhança da cidade. Na ansiedade do encontro com os administradores da fazenda Estrela, concordara com a data do encontro, adiando assim o serviço de manutenção. Justamente quando se dirigia para pernoitar nas cercanias da cidade, justamente naquele dia, tinha de começar uma nova edição do Dilúvio.

Imaginava que se o carro apresentasse qualquer problema poderia ficar encalhado a noite inteira e sabe-se lá o quanto mais à espera do primeiro veículo que lhe desse uma carona a um ponto qualquer onde pudesse conseguir socorro de um mecânico.

Desconfiado de uma conspiração meteorológica prosseguia na estrada o mais rápido possível, em meio à noite turva da enxurrada.

Os clarões dos raios cegavam, por fugazes frações de segundo, os faróis do carro. Gigantescas luzes néon tremelicando, dia acendido em plena noite, antecedendo ao estrondo do trovão e à vibração da terra.

E junto com o solo toda a estrutura do carro e do seu próprio ser estremecem, deixando-o aterrado e maravilhado.

"claro claro
mais que claro
raro
o relâmpago clareia os continentes passados;"

Aqueles versos, lidos em momento qualquer de sua vida, brincavam fragmentários na sua recordação. Súbito, um baque surdo interno ao próprio veículo. O motor, após um solavanco, estrebucha e pára.

Um fluxo gelado percorreu-lhe da base do cérebro até os dedos do pé, provocando em sua passagem uma contração no ventre e no músculo cardíaco. Aproveita a inércia do carro e consegue chegar ao acostamento.

Constatou que nada no veículo respondia aos seus comandos: ignição, faróis, luzes internas... Nenhum sinal de vida. Procurou no porta-luvas uma lanterna. Sentiu-se profundamente desanimado em enfrentar a chuva lá fora.

Esperaria um pouco no carro. Acendeu a lanterna e olhou o relógio: 23h.

Deixou-se ficar envolto na escuridão algum tempo. Percebeu que os raios haviam parado seu bombardeio. A chuva, por fim, esmaecia. Animou-se e voltou a experimentar a ignição. Sem nenhum motivo aparente, da mesma maneira como parou, o carro voltou a funcionar.

- Malditas velas! Praguejou.

Rodou por mais alguns quilômetros, um pouco desorientado, até chegar a uma bifurcação que se encaixava mais ou menos com as indicações sobre o rumo que deveria tomar. A chuva praticamente cessara e em seu lugar uma neblina começava a formar-se à sua frente, adensando-se à medida que avançava. Enveredou pelo nevoeiro, tragado em navegação cega.

Aos poucos, feito despertar de sono profundo, sua visão foi clareando e a neblina desfazendo-se, enquanto o carro a cortava, como se esta fosse imensa e tênue teia de aranha, de viscosa, enigmática e repugnante substância e engenharia.

A vegetação do campo em volta tomara um outro contorno, mais escassa e rasteira, como se preparada para o pasto. Ao longe um ponto luminoso. Uma sensação de conforto invadiu-o quando considerou que talvez já estivesse nos arredores da cidade, embora não tivesse de fato idéia sobre o local no qual se encontrava. Contudo, naquela altura, não se importava qual local fosse, queria simplesmente encontrar alguém para pedir uma orientação. Enveredou por uma bifurcação da estrada que o levaria até ao ponto que avistara a luz, farol solitário, naquele mar-noite sem estrelas.

A tocha elétrica toma forma: é uma antiga mansarda, imitando estilo colonial, instalada em terreno plano, ao sopé de uma encosta, ilha improvisada no meio de uma paragem desértica. Estava acostumado a encontrar pequenas habitações miseráveis, quando não taperas, mas aquele tipo de moradia mais estruturada nos arredores das cidades da região, nunca. "O que fazia o raio da casa em meio àquele nada?".

O prédio vai crescendo, parecia-lhe que ele em seu carro estava imóvel, enquanto a própria construção ganha movimento, vindo ao seu encontro. Algo semelhante ao que acontece em uma estação de trem, quando em determinado instante perdemos a noção exata de qual corpo na verdade se move: se a composição ou a plataforma, que ganha velocidade deixando-nos para trás.

Estacionou a poucos metros, após ultrapassar uma porteira aberta. Embora as luzes estivessem acesas, não percebia qualquer movimentação no interior: uma edificação sólida, grande, centrada no terreno aplainado, construída em pedra e madeira - talvez fosse muito antiga e tivesse sido reformada, especulou.

De qualquer forma encontrar um ponto de referência qualquer lhe deu algum conforto, mas não estava de todo tranqüilo: que tipo de pessoas morava naquele ermo? E se não tolerassem estranhos? Ou, pior, tivessem escolhido aquele ponto remoto exatamente para ocultar alguma atividade ilegal, que ele, inoportuna presença, estava exatamente lá para testemunhar.

Tomado por sinistros pensamentos ponderou entre ir imediatamente embora ou prosseguir. Vencendo a pessimista conjetura que lhe assaltava, tomou coragem e gritou:

- Ô da casa...

Uma, duas, três vezes, com pequenos intervalos, repetiu o brado. Sua voz, solitária, ecoando na noite, perdida, arrepiou-lhe. Concluiu que, de fato, não havia ninguém. Melhor seguir carreira, não devia de estar longe outro ponto no qual pudesse pegar orientação ou até mesmo pernoitar. Já dava meia volta em direção ao carro, quando um vulto surgiu à porta.

Não conseguia divisar mais do que a sua estatura alta e que gesticulava, em convite para que entrasse. Timidamente, quase pé ante pé, aproximou-se da porta, que se encontrava entreaberta, à sua espera. Ao ultrapassar o batente não deixou de surpreender-se com o que viu.

Em lugar de uma tradicional família ou de um bando armado, um grupo de pessoas displicentemente espalhadas pela sala central, dividida em dois ambientes: um dos quais com um grande sofá no qual um homem gordo folheava uma revista, acolá alguém sentado em uma cadeira com encosto ressonava com o jornal largado sobre as pernas; mais adiante, na extensão da sala, sentadas em torno de uma mesa, três pessoas jogavam cartas. Entre as duas dependências da sala, havia um pequeno corredor no qual uma escada levava para um andar superior.

- Boa noite!

Interrompendo sua exploração do ambiente, o homem que convidou-o para entrar, saudou-o. Era um tipo alto, um pouco robusto, cabelos grisalhos, tez queimada do sol e rosto macilento, típico de pessoas cujo tamanho excede a média.

Dono de sobrancelhas grossas e olhar que apresentava inquietante e objetivo movimento de busca, o estranho dirigiu-lhe novamente a sua atenção.

- Espero que tenha feito boa viagem. Achamos que não viria mais hoje.

Aquela repentina e inesperada intimidade causou-lhe um mal estar: do que aquele homem falava afinal? Jamais o vira em toda a sua vida e já desejava o mais ardentemente sumir de sua vista.

- Creio que está havendo um grande mal-entendido - protestou. Estou aqui por um acaso, peguei um aguaceiro na estrada e depois um nevoeiro que não permitia enxergar mais que um palmo diante do próprio nariz, acho que me desviei e vim parar aqui.

- É claro. Desculpe-me o engano, pensei tratar-se de alguém com reserva conosco. Somos uma pousada muito procurada. É comum programarmos a hospedagem, para evitar imprevistos de lotação, compreende?

Ainda que dizendo de uma forma extremamente educada, curvando-se servilmente em desculpa e amabilidade, havia um certo acento de ironia e sarcasmo em sua voz, cuja emissão tinha o registro monocórdico, ocluso e grave. Talvez fosse o permanente e irritante sorriso que ele ostentava nos lábios que acentuasse a má impressão, mas o fato concreto é que o viajante antipatizara com o homem.

- Não faz mal. Estamos longe de Alfredo Chaves?

- Não, de fato não...

- Posso fazer um telefonema?

- Não, não pode. Quero dizer, a chuva, o senhor sabe... Nosso telefone está totalmente mudo. Mas, se me permite uma sugestão, porque não passa a noite aqui, durante o dia será mais fácil prosseguir viagem, até mesmo porque nunca se sabe: um atoleiro, uma árvore caída no caminho... Depois de uma reparadora noite de sono tudo fica mais fácil.

Ainda que a contragosto considerou de bom senso o que aquele homem dizia. Após pegar sua valise e pasta de catálogos no carro, voltou para um novo enfrentamento com o hospedeiro ou coisa que o valesse.

- Tenho certeza de que o senhor irá apreciar imensamente, apesar de sua breve passagem, a nossa hospitalidade. Nossos aposentos atendem aos mais exigentes gostos e temos recebido muitos hóspedes ilustres. Nossa cozinha típica é um motivo de orgulho, uma beleza! Tenho certeza...

- Tenho certeza de que o senhor não irá se incomodar se deixarmos nossa conversa para outra ocasião. Estou muito cansado e tenso e amanhã bem cedo preciso estar preparado para uma importante reunião de negócios.

- Me desculpe a insensibilidade, é claro. Por favor, queira assinar o livro de registro de hóspedes.

Após a interrupção, o fulano calou-se, embora continuasse perscrutando-o de forma rapínica, com o pescoço entortado, enquanto o involuntário hóspede assinava seu nome no livro de registro.

- É um prazer tê-lo como hóspede da Gaivota Azul!

Nome estranho para uma pousada, pensou o viajante. Mas não teve tempo para qualquer outra consideração íntima, interrompido em seu pensamento pelo anfitrião.

- Permita-me apresentar-me: Caronte, gerente e dono da pousada. Se o senhor quiser comer alguma coisa após descansar um pouco basta solicitar e providenciarei uma ceia. O senhor encontrará no quarto o necessário para sua higiene pessoal.

Após dizer isto o gerente deu-lhe a chave do quarto 13 e sorriu de forma algo sarcástica.

A mansarda tinha o pé direito alto, imponente, tão comum nesses imensos casarios de fazenda, embora, possivelmente, tivesse sofrido reformas para abrigar as dependências de hóspedes. O andar superior apresentava duas alas espaçosas que concentravam os quartos e eram povoadas por objetos com motivos marítimos: uma carranca, remos, um leme; quadro com diversos tipos de nós de marinheiro; uma âncora, redes de pesca e de dormir, além de telas retratando navios e o mar, ocupavam as paredes que intercalavam os quartos e o saguão que dividia as alas.

De toda a coleção, um quadro em especial chamou-lhe a atenção. Deteve-se. Na pintura, um barco lotado, com seus ocupantes nus ou seminus. Pareciam atormentados, tomados de profundo sofrimento, acotovelando-se. Enquanto alguns apresentavam os braços estendidos em súplica, outros estavam em ato de pular da embarcação; outros ainda com os rostos cobertos com as mãos, em pranto. Na proa, uma figura de aspecto tirânico e demoníaco, comandava a nau de almas torturadas.

Libertando-se do magnetismo exercido pela pintura, dirigiu-se ao quarto.

Checou as instalações, desprovidas de luxo, de um estilo severamente sóbrio. O cansaço, reforçado pelo momento tenso que passara na estrada, fazia que desejasse apenas um banho.

O generoso e reconfortante contato com a água quase o fez esquecer os aspectos singulares da viagem. Deixou-se levar pela sensação de bem-estar, enquanto observava no piso a confusa dança e os arranjos das formas assumidas pela água, imprecisos e fugazes.

A torrente lembrou-lhe por breve momento a chuva, mas principalmente concentrou-se no caráter aleatório que regia o comportamento das pequenas poças: seu rápido fim em curta corrida em direção ao ralo ou a formação de uma nova peça daquele intrincado e impreciso balé.

Deixou-se ficar em suspenso naquela paz de espírito um bom tempo antes de romper com a bolha artificial de tranqüilidade e voltar ao mundo daquele quarto de pousada, do seu encontro de vendas, do desvio do caminho, daquele lugar e da desagradável sensação que mantinha em relação ao ambiente e à circunstância.

Enquanto terminava de enxugar-se, sentado na cama alta do quarto, consultou as horas. Constatou que seu relógio havia parado. Pela sua estimativa, desde o momento em que parou na estrada, até chegar à pousada, deveria ter passado quase duas horas. No entanto, os ponteiros insistiam em permanecer estáticos em 23h.

Deitou por um breve momento e seu pensamento divagou. As formas irregulares da toalha branca, amarfanhada sobre o leito, lembravam-lhe brumas, nuvens, espumas de mar. Um leve torpor embalou seu corpo.

Acompanha o balanço suave, enquanto observa as águas escuras e encapeladas que avista de uma das muradas do barco. O balanço torna-se mais forte. A embarcação joga em um subir e descer mais rápido, enquanto o vento úmido molha seu rosto.

O encontro, as peças de catálogo, tinha pressa de chegar. Avista à distância uma ponta de terra, para onde o barco dirige-se. Ao descer divisa uma casa: a pousada Gaivota Azul.

Ao longe vê Caronte acenando. Quer afastar-se. Ouve um rosnado, volta-se e percebe em seu encalço um enorme cão negro. O animal possui três cabeças. Mais do que depressa começa a correr. Tropeça e cai. Levanta-se. O cão aproxima-se. Redobra sua carreira pela planície, empregando o máximo de suas forças. O campo está molhado, cheio de imensos charcos. Suas pernas pesam. O cão cada vez mais perto: um bote...

Levantou-se sobressaltado, o corpo banhado em suor. Estava vestido exatamente como chegara à pousada. Lá fora, distante, escuta latidos. O cansaço o derrubara, sonhara tudo. Respirou fundo e passou as mãos sobre o rosto umedecido. Senta-se e encontra ao seu lado uma toalha usada. Em sua mente está vívida a imagem do chuveiro. Ainda no estado de perturbação do pós-despertar, decide tirar a roupa.

Ao abaixar-se, para desamarrar seu sapato, verifica que as pernas da calça e os calçados estavam cheios de lama, embora ao entrar na casa não tivesse passado por nenhum lodaçal. Por força do hábito, esquecido da súbita suspensão do tempo nas engrenagens do relógio, inclina o braço esquerdo e busca em seu pulso um parâmetro de realidade. As estáticas 23h parecem zombar de qualquer princípio de coerência.

Uma chuva torrencial, súbita, alcança a pousada. Tateou no escuro em busca do interruptor, tropeça em algo, é a sua lanterna. Clarões. Cambaleia, enquanto tenta chegar à porta do quarto. Alcança a maçaneta, que está emperrada. Força-a utilizando o máximo de sua energia.

Agora, no corredor, anda desorientado, trôpego, como impelido de um lado a outro por violento balanço, sem conseguir identificar a fonte da instabilidade: se o ambiente ou ele mesmo, expropriado do controle de seu corpo. Anda desorientado. Escuta o som da chuva lá fora, que aumenta ainda mais de intensidade. Sua cabeça gira e gira e gira...

Continua vagando pelo corredor a procura da escada que o levara ao piso superior. Nada mais lhe parece igual ao que encontrara antes. Desaparecera a exposição de objetos. As paredes parecem-lhe mais próximas e o teto mais baixo.

Por uma pequena janela, antes inexistente, chega-lhe a luz trêmula do relampejar. Em cada flash imagens, em andamento descontínuo, estroboscópico, se atropelam em sua mente. Visualiza a estrada, enquanto dirigia velozmente em direção ao destino de pernoite, antes de chegar, pela manhã, à fazenda Estrela. Uma curva rápida, um violento rodopio, seu carro cambalhota até parar semidestruído em um barranco.

A escada que o levara até o patamar elevado da casa, encontra-se lá, porém invertera sua direção, em vez de descer, sobe, conduzindo-o até o tombadilho de uma embarcação, onde encontra sentados homens e mulheres, velhos e velhas e crianças. Uns murmuram frases inaudíveis, outros sentados, quietos, olhos estáticos, indiferentes à chuva fria e cortante.

Tenta conversar com as pessoas, seus lábios se movem, mas não emitem som algum. Percebe-se então nu, como os demais. Na proa, Caronte comanda o barco, gargalhando sarcasticamente um riso desprovido de som.

No entanto, sem conseguir identificar de onde venham, lhe chegam vozes apreensivas, tensas, articuladas em frases secas. Sente como se mãos invisíveis o agarrassem. Quer gritar, contudo sua voz não sai, parece sufocar...

Um clarão mais intenso deixa-o cego e muito lentamente em suas retinas qualquer registro de luminosidade vai desaparecendo, as vozes diminuindo, o rodopio se amainando...

A descarga elétrica do desfibrilador cardíaco contraiu pela última vez o corpo inerte. Inútil. Os paramédicos sinalizam ao motorista que haviam perdido a batalha para salvar a vida do acidentado. Caronte desligou a sirene e reduziu drasticamente a velocidade. No relógio 23h. Aquela noite prometia...


O PAPO DO LUÍS

Aos catorze anos de idade, Luiz Fernando Santos fugiu de casa com uma cigana e passou os próximos anos trabalhando como engolidor de fogo num circo em Bucareste. Ao atingir a maioridade, matriculou-se na Universidade de Oxford, na Inglaterra - de onde infelizmente acabou sendo expulso, acusado de venda clandestina de sanduíches de mortadela. Depois desse episódio, Luiz Fernando, já então com seus vinte e tantos anos, voltou à sua terra natal. Foi trabalhar na contabilidade de um conhecido empresário progressista, um tal de PC Farias. Mais tarde, Luiz tornou-se jornalista especializado em informática e foi convidado a colaborar com a Escrevinhadora. Aceitou o convite. Mas como esqueceu de enviar sua biografia à responsável pela página, a mesma foi obrigada a inventar todos os dados do parágrafo anterior.
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