O
sol não podia deixar de amanhecer mas antes dele Sinésio já
estava de pé. Arrumava as tábuas, os trapos, o papelão
já meio rasgado do uso noturno constante. A sua volta, pequenas relíquias,
objetos outrora com finalidades específicas hoje apenas cemitérios
tecnológicos. Um prato de lata com números postos nas extremidades,
algarismos romanos em relevo antes poderia despertar o sol mas nem o sol
nem Sinésio podiam esperar. A vida continua. Nascer, acordar, morrer,
dormir repetidas vezes dias a fio, meses e meses, ano após ano transparecendo
rugas, esbranquiçando manhas e cabeças.
Sinésio mal acordara e já se encontrava no seu xixi matinal
numa invenção sua: garrafa litro e meio de plástico
injetado, tubos velhos de ar condicionado não mais em uso, hastes
de guarda-chuva sendo guia ao tubo principal, tudo isso serpenteando terra
adentro desaguando no grande canal mestre, esgoto mãe da cidade.
Se a vontade fosse de fazer alguma coisa mais sólida adicionava-se
um dispositivo: uma pá com meia dobradiça ajustável
a altura do usuário. Dessa vez Sinésio não usou da
pá pois geraria inconvenientes como o uso indiscriminado de jornais,
material meio raro nas casas modernas de Idiotatown.
Hoje era um dia especial. Sinésio iria escovar os dentes. Hoje, uma
quarta-feira, era o dia de passar na Avenida que ele tanto adorava. Na casa
sete da vila morava a sua vida. Se não fosse Andradina, Sinésio
já teria dado cabo dos eternos amanheceres há muito tempo.
- Como está meu cabelo? Uso esse brinco tampa retorcida? - questionou-se
Sinésio à medida que olhava e remexia em várias coisas
largadas em várias pilhas. - Esse ela já viu. Sei lá.
Cinderela, o que você acha?
Cinderela nunca achava nada. Uma velha gata que foi achada desgraçada
com a vida por um fio quase cortada por um carro importuno na contramão.
Cinderela teve um passado de glória. Musica clássica, a poltrona
de sua propriedade, várias crias, um corte na orelha esquerda de
uma porta imprevista ou uma curiosidade não permitida. Todas estas
lembranças esquecidas por um pneu P44 seminovo. Cinderela só
se lembra de Sinésio com água na boca à espera de uma
morte que não veio. O que fazer? Duas patas quebradas, sem perspectiva
de andar nem após vários amanheceres, Cinderela passava o
dia e a noite esperando uma barata ou uma mariposa passar ao alcance da
sua pata dianteira esquerda, a única ágil e forte no corpo
raquítico daquela gata. Cinderela nada achava. Tinha adorado o novo
sofá de jornal no caixote de papelão que chegara na noite
anterior. Todos gatos têm como lema: a vida por uma caixa, e ela como
gata que era não podia ser diferente.
Sinésio realmente não sabia o que vestir e muito menos seu
sobrenome. Não sabia porque nunca vira seu pai e porque sua mãe,
recém-chegada do interior, na época, havia lhe embrulhado
para presente as ruas de Idiotatown. Se lembra do primeiro helicóptero
da cola do benze. por onde andar o Benze hoje? Benze foi remanejado. Teve
sorte. Foi transferido e ganhou um barraco no Jardim Mocó.
Sinésio à medida que pensava, se via na tampa retorcida de
alumínio por ele lixada, espelho diriam. Vestia seu melhor uniforme,
seu único do dia-a-dia como o sol, o único sol seu. Das magras
pernas pendiam uma calça azul com botas pretas sendo o pé
direito da bota furado que furara o pé dentro dela. Isso doía.
O furo na bota, o furo do pé. Sinésio tinha as mãos
pequenas. O indicador e o mindinho quase tinham o mesmo tamanho. Típica
mão quadrada sem muitas linhas pois a sua vida já estava escrita.
Apesar de aparentar tanta desgraça, Sinésio tinha olhos verdes
e isso trazia grandes chances junto a Andradina. Ela via em Sinésio
os olhos, só os olhos. Ele não conseguia esquecê-la.
Mal ouvia-se Sinésio e equipe se aproximando, Andradina já
pra fora, já gritava a patroa.
Sinésio penteava seu cabelo com o meio ralador de plástico,
antigo cortador de batatas em palha quando se lembrou: ele tinha feito um
presente a Andradina. Será que ela vai entender? Tem muitos anos
da minha vida aqui, amargurava Sinésio. A tampa de Coca-cola, troféu
do primeiro dia de guarda carros, pregado em um cabo de vassoura fixado
em duas latas de cerveja das mais belas de sua coleção com
duas moedas abraçadas dentro da lata mais bonita. Como gostaria que
ela entendesse, resmungava Sinésio.
As trombetas de Jericó, as cornetas do Juízo Final soaram
e ressoaram e explodiram em seus ouvidos. Gel chegou, Mapicho também.
Hora de trabalhar. Vou pedir pro Gel guardar dentro do caminhão pensou
Sinésio já fechando o tapume que servia de mais corta frio
e chuva do que porta. Na hora que chegarmos lá na vila peço
pro Gel dar uma paradinha.
Gel é um cara legal. Acreditou em mim. Vem me buscar apesar de ser
proibido, apesar também daquele beijo logrado também ser proibido.
Ficamos elas por elas matutou Sinésio e absorto em seus pensamentos
continuo: Sempre se paga na Terra o erro que na Terra você cometeu.
Ainda bem que Mapicho é chegado. Pelo menos é o que dizem.
Uma passada de mão eu assisti. Será que se gostam? Continuava
nos pensamentos enquanto se pendurava no caminhão.
Gel é um gordão. Sua muito. Tem mulher e duas filhas, é
o que conta. Nunca nos convidou para conhecer o barraco. Repetindo o pensamento
se dirigindo a Mapicho: - Cê conhece o barraco do Gel? Não.
Nunca me convidou, respondeu Mapicho. Mapicho era o oposto de Gel
bem raquítico bem mais que Sinésio. O peso maior é
claro fica sempre para o Sinésio nesse trabalho. Mapicho é
peruano e sempre contava sobre Machu Pichu. Ninguém conseguia repetir,
ficou Mapicho. Um lugar de grandes pedras, assim ele dizia. - E aí
Mapicho? Cadê aquela meia tesoura? Eu vi ela primeiro, disse Sinésio.
Mapicho adora colecionar como Sinésio. É sempre um problema
no dia-a-dia. Gel já apartou tantas brigas entre os dois que nem
se pode enumerar.
As ruas de Idiotatown com o raiar do sol são belas. A luz se esconde
entre e atrás das árvores, as pessoas estão mal acordando,
os passarinhos cantam muito, tudo custa a se movimentar.
Sinésio adora sua cidade. Mora em um barraco entre duas colunas bem
próximo do ID. À noite muitos sapos fazem serenatas. Cinderela
é que não gosta de sapos. Uma vez levou uma esguichadela que
quase ficou cega. No barraco de Sinésio temos tudo que podemos imaginar
e nos usos os mais imaginários possíveis. Ele separa suas
coleções por temática: os objetos retos, os curvos,
os indefinidos, os a trabalhar, os trabalhados. Os objetos que menos têm
valor às pessoas são os mais valiosos para Sinésio.
Por exemplo, hastes retorcidas, molas quebradas são o que Sinésio
mais gosta. É estranho mas todos os objetos que geram uma expectativa
de status social são por ele idolatrados. Ele possuía seu
carro, um carro para carregar coisas feito de rodas furtadas e achadas às
margens do Ota. Um carro bem particular por sinal. Duas tábuas, um
eixo e uma antena de quase dois metros. Nessa antena bandeirinhas de plásticos
coloridos cortados e colocados de tal forma que não poderia ser disposta
ao acaso. Sinésio tinha seu aparelho de som quebrado com um disco
de Mozart, Piano Concerto No 12 em A maior, que ele nem sabia quem era Mozart
e muito menos como Mozart soava. Possuía muitos recortes de fotos,
todas elas colocadas na parede, e se divertia montando pequenas histórias
com as fotos como contos de imagens. Passava horas contando estórias
a Cinderela. Existia um objeto que este sim Sinésio guardava com
muito carinho. Um especial, um dente, que era guardado numa caixa sob outras
caixas. Quem sabe o que poderia ser?
Sinésio caminhava para a morte como alguém caminha para o
trabalho, dia-a-dia. A morte para ele não era objeto de desejo mas
uma jornada a percorrer, como o trajeto que está fazendo esta quarta.
Lixeiro, uma profissão do submundo não reconhecida em Idiotatown,
só para aqueles que nada valiam, para aqueles quase bandidos mas
que estão em um estado anterior, são lixo e com o lixo viverão,
ao lixo o que é de lixo. Sinésio é lixeiro e não
esconde. Tem orgulho de ter uma profissão. Quem não é
lixeiro em Idiotatown pensa nos lixeiros?
Andradina pensa. O que aqueles olhos verdes fazem catando lixo? Andradina
morava na vila Mocó. Pegava cinco conduções para ir
à Vila dos Sapos. Mas orgulhava-se de ter casa própria. Seus
longos cabelos castanhos com seu olhar meigo já foram razão
de briga na balsa, uma das cinco conduções. A briga foi tão
intensa que os dois rapazes de tanto se esmurrarem, sem forças caíram
no Ota e foram levados rio adentro.
Andradina tinha poucas recordações de infância. Brincava
de cuidar de bonecas, suas irmãs mais novas. Aprendeu o papai-e-mamãe
com o papai. Andradina tinha dez anos na época. Sentindo a carne
rasgando e com medo do rosto de lobo e a boca escancarada cheia de saliva
escorrendo de seu pai, Andradina aprendeu que a vida não é
só bonecas. Os olhos, estranhos olhos nunca vistos no seu pai tão
quieto e distante. Sua mãe assistiu a tudo com um pano na boca amarrado
na nuca e as mãos atadas nas suas pernas. Olhos, objeto de análise
e conhecimento de Andradina. Quanto mais fundo ia seu pai mais fundo ia
seu olhar nos olhos do pai. A córnea seca, a Íris vermelha,
a pupila dilatada. Seus olhos foram se perdendo no castanho claro de seu
pai até a dor não ser mais possível e desmaiar. Depois
de uma semana seu pai foi achado morto. Sua mãe desde então
nunca mais falou. Olhos, a única recordação do pai.
Andradina se superou. Superou mais do que podia, mais que sua própria
capacidade. Gosta da sua vida. Trabalhar na Vila dos Sapos o melhor
lugar de uma doméstica. Andradina quando volta para casa gosta de
olhar as montanhas. Ela passa em frente ao monumento ao sol, ainda se lembra
do tempo que o sol se punha ali. Toda quarta-feira, Andradina faz um esforço
adicional. É que para ver Sinésio ela tinha de sair de casa
uma hora e meia antes do horário normal. Ela gosta de entregar o
lixo a Sinésio. Sinésio sabia olhar para ela.
Quarta-feira. Um dia sem importância para Idiotatown mas valorizado
ao extremo por dois seres. Eles eram dois seres. Ser um ser é viver
e ser. Ser implica que a vida só põe empecilhos mas de contragosto
se é. Sinésio e a quarta, Andradina e a quarta. Esta quarta
é especial.
Sinésio hoje não se importava de catar lixo pesado. Mapicho
tava num daqueles dias. Acho que brigou com Gel antes de me apanharem.
Os dois não abrem a boca, pensou Sinésio.
A forma com que as pessoas jogam o lixo espelha suas personalidades. Algumas
pensam nos lixeiros. Põem em sacos duplos, em caixas, mas a maioria
põe em sacos finos porque são mais baratos e a última
coisa que se pensa é se ele vai rasgar na mão do lixeiro.
O importante é não rasgar até a rua. Catar papel higiênico
usado no chão depois de um mal sucedido saco de lixo é a coisa
mais corriqueira à Sinésio. Tem dias que não dá
para agüentar mas hoje é quarta e tudo dá .
Sinésio e as folhas de papel rasgadas, as garrafas de bebidas, as
caixas de presentes de lojas caras, lixos maiores e maiores. Parece que
se faz mais lixo à medida que se tem mais dinheiro. Quem cataria
meu lixo pensou Sinésio. No meu barraco ninguém vem catar
meu lixo, se lamentou. Mas uma coisa o alegrava, o lixo estava melhorando
porque estava chegando na Vila dos Sapos. Espero que Gel não esqueça
do trato.
Despontou na Avenida como se fosse um grande carro alegórico onde
a arquibancada o lixo. Mapicho notou que Sinésio estava apreensivo.
Qual é a tua, Mapicho gritou pois a Avenida já estava barulhenta.
Tá apaixonado por aquela garota da casa 7? Mapicho não era
idiota, mas também eu não consigo esconder, pensou Sinésio.
É, tô. Por que? Por nada. É que nunca te vi assim tão
ansioso.
O lixo da casa 5 foi pego por Sinésio e Mapicho. Era muito. A casa
6 esqueceu, melhor. Casa 7. Gel fez um buzinaço, única
serenata que podíamos fazer pensou Sinésio. Andradina estava
linda. De avental com as pernas de fora, correu para a sacada com o lixo
na mão. Demorou para vir. O presente já estava na mão
de Sinésio embrulhado em um saco de lixo. Com uma mão Sinésio
pegou o saco da mão de Andradina e com a outra deu o presente. Mas
o que é isso? Depois em casas você abre. Andradina gostou da
surpresa. Seus olhos choraram para Sinésio. Este pegou a mão
de Andradina e apertou forte e completou: - É um presente muito especial,
espero que você entenda. Gel buzinou. O tempo se esgotava. A patroa
da porta: Andradina olha o leite derramando. O tempo parou. Os olhos se
fixaram, pupilas imóveis, pálpebras enrijecidas, misto de
admiração e paixão. Quando se espera o tempo, este
passa devagar mas quando se ama o tempo pára mas logo corre e aparece
na segunda buzinada de Gel. Sinésio, o lixo, gritou com fúria
de dentro do caminhão. O leite rebateu a patroa. As mãos ainda
hesitaram por um segundo a mais. Amar ocupar o mesmo espaço
físico mesmo a física não permitindo.
Sinésio, como era de se esperar, morreu antes mesmo da outra quarta-feira.
No sábado catando um lixo como outro qualquer foi mordido por uma
cobra que tinha sido jogada no lixo por um veterinário excêntrico.
A cobra era venenosa para espanto até do veterinário.
Sinésio morreu em casa com Cinderela lambendo seus lábios
entreabertos. Andradina não entendeu o presente mas quis conhecer
a casa de Sinésio. Hoje ela mora lá. Pelo menos Cinderela
ficou com companhia.
O veterinário não foi condenado.
Idiotatown continua com seu ID ainda mais sujo que nunca. Gel e Mapicho
abandonaram o emprego. Coisas de Idiotatown.
O
PAPO DO LORENZO
Lorenzo
Ferrari escreve desde os oito anos de idade (sua primeira colaboradora literária
foi a avó). Seus autores prediletos são Mario Quintana, Mark
Twain, Rubem Fonseca, Hermann Hesse, Ítalo Calvino, Isaac Asimov
e Milan Kundera. Em 2003 publicou o segundo livro de poesias, "Beijo
- Manual Poético". Também colabora em veículos
como o "Jornal da Praça" e "Café Literário",
e faz parte do Poetrix. Este grupo literário reúne vários
autores que trabalham com tercetos assemelhados ao hai-kai. Eu já conhecia e admirava o "Sinésio", justamente
pela qualidade poética do texto. Para quem quiser conhecer melhor
o trabalho do Lorenzo, além do seu livro, recomendo os sites http://poetrix.vilabol.uol.com.br/index.html
e http://www.usinadeletras.com.br/exibelotextoautor.phtml?user=lorenzog. Recomendo também o seu carpaccio de abobrinha e estrogonofe de avestruz,
tão bons que podem ser considerados literários.
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