Jean Canesqui é um ateu com certa simpatia pelo Demônio. Roteirista de audiovisual e histórias em quadrinhos, ele edita e escreve roteiros para a revista Kaos. (Aliás, este ano ele entrou na lista dos indicados para o prêmio de Melhor Roteirista da HQ Mix, concedido pela Associação dos Cartunistas do Brasil). De vez em quando, diverte-se com alguma pequena perversão literária, como essa...

SIMBIOSE

2097. O bastão do barqueiro nos move pela Sampa gordurosa e escura.
Olho para cima. Teto de chumbo celestial. Nunca me acostumo. Aqui a chuva é quase eterna. A água cai sempre na cachola, seja em garoa ou toró. Os dias solares são raros e celebrados por pálidos nudistas desesperados por bronze largados nas vias públicas, atrapalhando o tráfego e escandalizando os velhos. A culpa é do carro a hidrogênio.
Por volta dos anos 40, o petróleo ficou inviável pra extração e refino em gasolina. Isso significou o fim do CO automotivo. Os ecologistas celebraram e as corporações se adaptaram. Veio o hidrogênio. O motor H solta H2O. Os carburadores deram lugar a tubos exalantes de vapor branco. Logo, fez-se um mundo úmido e frio em poucas décadas. As chuvas limparam o ar e talharam o solo. Novas Venezas brotaram pela Terra. Enchentes ligeiras evoluíram em lagos, rios e mares permanentes. As águas reclamaram em definitivo o domínio sobre o vale do Anhangabaú, o qual se tornou um balneário labirintado por ruínas pelo qual deslizo num barco alugado na Favela Fluvial.
O táxi fluvial passa sob um viaduto fraturado. As capivaras saltam dos matagais marginais e nadam pelos canais oleosos. Poderia ter vindo de um modo menos úmido, mas preferi a discrição ao conforto. Metrô, aerotrem, automóvel? Nem! Muito perigoso. Minha cifra genética foi atualizada na Biblioteca Social como ator nocivo nível 98. A escala vai até 100. Sugerem uso de persuasão total. Ou, traduzindo os eufemismos, terrorista com altas maldades no currículo. Um mestre do terror, ou arquiteto do terror, he, nunca sei a diferença desses jargões dos Cães de Caça e das Aves de Rapina licenciados. De qualquer forma, uso de fogo nocivo e tortura estão liberados contra minha pessoa, meus amigos.
O que eu fiz? Coisinha mínima: nanitas indutores de canibalismo na maionese pro jantar anual da diretoria da K3.
Meu pai sempre acreditou nos chavões populares. Achava, em sua simplicidade, que um homem para ser feliz deve seguir a sabedoria do povão. Confesso que herdei um pouco dessa bobagem. No caso o ditado escolhido é "que o indivíduo para ser completo deve escrever um livro, plantar uma árvore e ter um filho". Já fiz tudo isso. Escrevi um manual de infiltração em sistemas, plantei um pinheirinho e me clonei para simular minha morte dois anos atrás (Não me olhe assim. No Paraguai clones podem exigir atestado de paternidade e pensão de seus originais). Somente adicionei mais um item a lista.
Repassando: um homem para ser completo deve escrever um livro, plantar uma árvore, ter um filho e matar o máximo de ricos sacanas que puder, usando os meios disponíveis mais obscenos.
Claro que o exato motivo de minha cotação no índice de periculosidade pública se deve mais a uma declaração feita após o atentado do que o ato em si. "Não matei por dinheiro, minha motivação foi uma mistura de esporte e ideologia". Em certos meios assassinato não remunerado é muito mal visto. Aí botaram prêmio pelo meu cu. Como se eu já não carregasse a ameaça de minha morte comigo mesmo por aí. Ingratos! As ações da K3 subiram após a substituição dos executivos mortos. Devia exigir participação... Opa!
O barqueiro parou. Nos encaramos. Ficamos ouvindo as águas em silêncio. Zumbido? Começa baixinho, bem longe e vai se aproximando, aumentando e logo lá está o pequeno brilho verde bruxuleante emoldurado pelo barulho de hélices. À medida que avança, reconheço a configuração simples e inequívoca do giro escâner. Uma cortina luminosa sustentada por um pequeno helicóptero de plástico.
- Amigo, aqui tem jacaré?
A luz ótica vai ler minha cifra genética e avisar todas as firmas policiais autorizadas e não autorizadas do perímetro central.
- Não, só cobra, ô patrão.
Bolsa impermeável fechada. Mercadoria protegida.OK!
- Venenosa ou estranguladora?
O barqueiro me passa a maquininha que carrega na cintura e eu passo o cartão.
- E daquelas que agarra, só.
- Ah, bom!
A maquina demora na leitura.
- Modelo antigo, né?
O giro se aproxima. Aparecem as letrinhas: código aprovado. Agradeço com um gesto mudo e pulo quando a cortina de luz atravessa o barquinho.
Mergulho.
Nado, nado, nado e, súbito, agonia, afundo e morro.
N-não? Quase! Subo. Respiro.
O giro analisa o barqueiro. Cara de despreocupado. Esse aí é remo velho. Tá nem aí. Ele sabe. Favelados Fluviais não têm registro. Vai cadastrá-lo. Isso leva uns quinze minutos, se a rede do éter não estiver congestionada com pornografia e mexericos da vida artística. Aproveito e chego a margem. Arrasto-me e me escondo no mato. Tento respirar. Aii...
Bala-necrose calibre 23 encravada no peito. Presente da Liga Platina durante as guerras católicas. Maquininha interessante. Ela faz a automanutenção e tira sua energia da destruição celular do hospedeiro. Segunda ou terceira geração de parasitas eletrônicos, acredito. Vem na embalagem:
Morte especial para inimigos especiais!
Dá apenas pra retardar a corrupção. Tirar, não. Só há uma saída. Abro a bolsa impermeável e pego a bíblia. Folheio. Verifico. Velha como o pecado, mas perfeita. Artigo em ordem! Cliente feliz. Espero. A dor... passa. Levanto e sigo para minha cura.

Na névoa perene, brilham as janelas dos edifícios de resina negra do bairro Monólito. Há alguns vultos na rua. Pouca gente trabalha aqui e ninguém vem para passear. A cidade tem que agradecer a cerração urbana. Limpou seu visual de todo lixo publicitário, já que é quase impossível ver qualquer coisa claramente. Pena que isso estimulou o terrorismo publicitário de alto impacto individual. Bombardeamento maciço de mensagens subliminares, incluindo implante de memórias de consumo de certos cereais matutinos. Decadência! Hoje, todo mundo é terrorista... Eis o prédio.
O plasma inteligente do cérebro zelador possui um desses afeminados sotaques meio cantados das modas fonéticas de merda. Oh! Como são boçais... O funcionário digital me permite entrar. Estavam me esperando. O elevador avança na vertical e na horizontal lento. Seria mais rápido na diagonal, no entanto é bom fazer o gordinho sofrer um pouco mais.
O freguês é um Christex. Texano cristão. Confederação Cristã do Texas. Plebiscito de 44. Instigados por corporações evangélicas, Texas e outros estados se separaram dos EUA, pois aquela grande nação estava ficando liberal, atéia e gay demais pra América profunda (capa óbvia da Times: Serraram Tio Sam ao meio). Faliram em cinco anos. Crise terminal do combustível fóssil. Tentaram retornar, mas as bichas liberais do norte não aceitaram. Hoje, negociam o Novo México de volta com o México em troca de fornecimento de energia. Chega de história. O comprador é um texano rico exemplar. Branco, rosa e obscenamente gordo. Os cowboys consomem muito e se mexem pouco. Pra se deslocar precisam de carrinhos a motor. Famílias inteiras passeando motorizadas. Seus bairros chiques são imensos bate-bates de parque de diversões.
- Voltou antes que eu esperava.
- Profissionalismo. Vocês curtem, não é?
- Claro! Claro! Você...
Impaciente. Demoro um pouco para abrir a bolsa. Acompanho suas feições. Estou bem atento a qualquer deformação estrutural da sala. Exibo a bomba de acido séptico. Qualquer pisada na bola e o seboso ai vai ser dono de um mingau de polpa de papel com vinagre. Só o destravo quando tenho certeza que o edifício não vai me matar. O homem está se irritando. Melhor não forçar a barra. Enfim, eu mostro o livro.
Rara bíblia batista em celulose antiga. Os dedos grossos deslizam pelo papel vagabundo. Tão diferente da folha de silicone e da nanotinta. A fé brilha nos olhinhos azuis do diácono governamental para compra de armas e artigos religiosos. Os superbatistas (igreja oficial e partido único do Texas) crêem que a verdade se perdeu ao formatarem a bíblia em digital. E como o desleixo público quase extinguiu os livros, este exemplar tornou-se uma relíquia valiosa.
- E então? Satisfeito?
Agora é a vez do tomatão enrolar. Tensão. Faz uma cara de vou te comer vivo. Armação? Nem. O cérebro zelador do prédio deve saber que se eu quiser ainda posso explodir em combustão. É só elaborar uma determinada imagem complexa dentro do cérebro pro sensor neural ativar a bomba estomacal que eu engoli no café da manhã. O Cowboy morde o lábio.
- Você terá aquela abominação antitexana dos pagãos europeus que confiscamos na alfândega.
O melhor espécime de vida artificial de última geração, uma novidade maravilhosa do velho mundo, caro demais para se buscar na fonte.
- Feito! Aleluia, cowboy!

Bato os sapatinhos de rubi em casa com Totô bem distante de sampa e do christex maluco. Estou segurando o vidro da criatura. Coisa feia e vermelha. Ela dorme tranqüila na placenta sedativa. Abro o lacre e tiro a tampa. Quero sentir cada fase do processo. O toque não é nojento. Parece um tipo de casca mole, gostoso de se manipular. Dá vontade de apertar...
A síntese de artrópode e cefalópode entre meus dedos é uma ferramenta viva. Aplicativo orgânico pra simbiose funcional. Levo o artefato até debaixo da torneira e limpo do sedativo. A coisa rubra mal acorda e, seguindo sua programação de procedimento, crava o ferrão neurodigital em mim. É como uma injeção anestésica. Dói no começo e depois pára. A criatura improvisa uma faixa mental precária de comunicação pra dialogo.
Permissão para neurotransmissão?
A voz assexuada na minha mente não é novidade. Não causa estranhamento e nem enjôo. Agradeço aquela temporada que fiquei internado numa cada de jogos neurológicos. O duro é falar com o córtex...
- S-sim.
Permissão para a fusão plena.
A coisa refaz o pedido mais duas vezes.
Não será possível voltar atrás.
- Aceito!
Rodando.
Dói. Dói muito. A dor deve ser a dor de um parto.
Deseja aplicação de Endorfina?
Indolor.
Circuito nervoso com acesso pleno. Buscando erros na fisiologia.
Não deve demorar.
Corpo estranho. Ameaça estrutural 03. Reconhecimento: Bala-necrose. Deletar?
- Não, deixa ai porque eu sou adepto do masoquismo solitário... É claro que sim!
Continuar reparos.
A manutenção me derruba. Caio no sofá com o simbionte grudado em meu punho. Apago por alguns dias. Desperto, faminto e sedento. Saio correndo para a cozinha e engulo metade dela. Alimentado. Me sinto bem. Recauchutado. Vou ao banheiro e no espelho vejo que remocei alguns anos e perdi as cicatrizes. No meu punho, enrolada com seus tentáculos e braços articulados está como a manopla orgânica, a luva de carne, a nova parte de mim
É um pacto simples esse que se faz com simbiontes. Dou-lhe vida na substância de meu corpo em troca de seus serviços: imunidade a doenças e cura de qualquer ferimento. Perfeito para meu ramo profissional.
Ah! E há brindes também. Um sensor alarme a qualquer flutuação elétrica próxima. Posso fechar os olhos e sacar quantos caras estão no prédio onde moro. O teaser enguia, um jato de ácido úrico que conduz uma corrente elétrica até seu alvo. Spray paralisante e ácido corrosivo. Usina de drogas. Ímã sexual de feronoma. Ferrão neurodigital cambiável e moldável para todas as entradas de máquinas e mentes.
E o bálsamo definitivo contra a solidão. Explico: o simbionte se nutrirá de mim e se tornará um ente próprio. Uma personalidade independente elaborada a partir de fragmentos da minha. Meu próprio papagaio de pirata. Sempre falará e sempre a ouvirei...

Vamos pra casa!
A nova voz se formou semana passada e ainda não me habituei à sua feminilidade.
- Tá doida, sua lagosta?
Não sou uma lagosta. Eu sou um simbionte.
A mágoa na fala é uma graça.
Estou só pensando no nosso bem-estar.
Embaixo, podia ver pela grade do sistema de ventilação o bispo embaixador roncando alto.
- É a chance da gente descobrir onde a Santa Sé está escondendo Cristo em sua terceira vinda. Com a educação política certa, podemos levar a revolução até os portões do paraíso.
Vocês e seus amigos nem conseguem ganhar nem uma eleição pra sindico.
- Olha você implicando com os rapazes de novo! Ai... Você quer colaborar? Estende seu ferrão até lá em baixo e sonda a cuca do véio.
Não.
- Como não?
Não quero.
- Como não quer?
Não sou lagosta.
- Não acredito nisso.
Sou um simbionte. Me respeita.
- Tá bom. O que posso fazer para você me ajudar?
- Peça desculpas.
- ...
Peça desculpas ou não tem sondagem neural. E o velho vai acordar daqui a pouco.
- Desculpa...
Não ouvi.
- Desculpa!
Não foi sincero.
- Desculpa. Eu não quis chamar você de lagosta. Você é um bom simbionte. Pronto.
Acho que sou fêmea.
- Você é uma linda simbionte. OK?
Humm...
- O que foi agora?
Quero mais uma coisa. Um nome.
- O que?
Quero que você me dê um nome.
- Agora?
É, agora. Estamos juntos há três meses e você não me deu um nome até agora.
Respiro fundo. Penso.
- Ana.
Por que Ana?
- Era... era o nome de minha mãe.
Não sei porque, faço um carinho em sua cartilagem rosada.
Oh. Que fofo!
Ana ejeta um tentáculo fino que desce pela grade da ventilação e se enfia por entre os fios brancos do nariz do sacerdote.
Por causa disso, hoje à noite você vai ganhar um sonho quente com aquela atriz ruiva que você gosta.
- Como você sabe que eu curto sonhar com ela?
É quando você faz mais gostoso.
- Gostoso... Pêra aí!
Hihi! Voltemos ao trabalho. Psiu. Acessando informação do córtex...


O PAPO DO JEAN

Esta é a segunda vez que o Jean comparece a esta página, com seu senso de humor malvado e uma imaginação de fazer qualquer escritor adulto chorar de inveja. Um dia eu, o Jean e outras pessoas estávamos conversando sobre nossos amigos imaginários na infância. Todo mundo tinha tido um, que era assim ou assado, se chamava Fulano ou Beltrano. E o Jean? "Ah, meu amigo imaginário era um camaleão fosforescente que brilhava no escuro". Fechou, né? Todo mundo ficou morrendo de inveja. E essa história diz tudo sobre o Jean...
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