2097. O bastão do barqueiro nos move pela Sampa
gordurosa e escura.
Olho para cima. Teto de chumbo celestial. Nunca me acostumo. Aqui a chuva
é quase eterna. A água cai sempre na cachola, seja em garoa
ou toró. Os dias solares são raros e celebrados por pálidos
nudistas desesperados por bronze largados nas vias públicas, atrapalhando
o tráfego e escandalizando os velhos. A culpa é do carro
a hidrogênio.
Por volta dos anos 40, o petróleo ficou inviável pra extração
e refino em gasolina. Isso significou o fim do CO automotivo. Os ecologistas
celebraram e as corporações se adaptaram. Veio o hidrogênio.
O motor H solta H2O. Os carburadores deram lugar a tubos exalantes de
vapor branco. Logo, fez-se um mundo úmido e frio em poucas décadas.
As chuvas limparam o ar e talharam o solo. Novas Venezas brotaram pela
Terra. Enchentes ligeiras evoluíram em lagos, rios e mares permanentes.
As águas reclamaram em definitivo o domínio sobre o vale
do Anhangabaú, o qual se tornou um balneário labirintado
por ruínas pelo qual deslizo num barco alugado na Favela Fluvial.
O táxi fluvial passa sob um viaduto fraturado. As capivaras saltam
dos matagais marginais e nadam pelos canais oleosos. Poderia ter vindo
de um modo menos úmido, mas preferi a discrição ao
conforto. Metrô, aerotrem, automóvel? Nem! Muito perigoso.
Minha cifra genética foi atualizada na Biblioteca Social como ator
nocivo nível 98. A escala vai até 100. Sugerem uso de persuasão
total. Ou, traduzindo os eufemismos, terrorista com altas maldades no
currículo. Um mestre do terror, ou arquiteto do terror, he, nunca
sei a diferença desses jargões dos Cães de Caça
e das Aves de Rapina licenciados. De qualquer forma, uso de fogo nocivo
e tortura estão liberados contra minha pessoa, meus amigos.
O que eu fiz? Coisinha mínima: nanitas indutores de canibalismo
na maionese pro jantar anual da diretoria da K3.
Meu pai sempre acreditou nos chavões populares. Achava, em sua
simplicidade, que um homem para ser feliz deve seguir a sabedoria do povão.
Confesso que herdei um pouco dessa bobagem. No caso o ditado escolhido
é "que o indivíduo para ser completo deve escrever
um livro, plantar uma árvore e ter um filho". Já fiz
tudo isso. Escrevi um manual de infiltração em sistemas,
plantei um pinheirinho e me clonei para simular minha morte dois anos
atrás (Não me olhe assim. No Paraguai clones podem exigir
atestado de paternidade e pensão de seus originais). Somente adicionei
mais um item a lista.
Repassando: um homem para ser completo deve escrever um livro, plantar
uma árvore, ter um filho e matar o máximo de ricos sacanas
que puder, usando os meios disponíveis mais obscenos.
Claro que o exato motivo de minha cotação no índice
de periculosidade pública se deve mais a uma declaração
feita após o atentado do que o ato em si. "Não matei
por dinheiro, minha motivação foi uma mistura de esporte
e ideologia". Em certos meios assassinato não remunerado é
muito mal visto. Aí botaram prêmio pelo meu cu. Como se eu
já não carregasse a ameaça de minha morte comigo
mesmo por aí. Ingratos! As ações da K3 subiram após
a substituição dos executivos mortos. Devia exigir participação...
Opa!
O barqueiro parou. Nos encaramos. Ficamos ouvindo as águas em silêncio.
Zumbido? Começa baixinho, bem longe e vai se aproximando, aumentando
e logo lá está o pequeno brilho verde bruxuleante emoldurado
pelo barulho de hélices. À medida que avança, reconheço
a configuração simples e inequívoca do giro escâner.
Uma cortina luminosa sustentada por um pequeno helicóptero de plástico.
- Amigo, aqui tem jacaré?
A luz ótica vai ler minha cifra genética e avisar todas
as firmas policiais autorizadas e não autorizadas do perímetro
central.
- Não, só cobra, ô patrão.
Bolsa impermeável fechada. Mercadoria protegida.OK!
- Venenosa ou estranguladora?
O barqueiro me passa a maquininha que carrega na cintura e eu passo o
cartão.
- E daquelas que agarra, só.
- Ah, bom!
A maquina demora na leitura.
- Modelo antigo, né?
O giro se aproxima. Aparecem as letrinhas: código aprovado. Agradeço
com um gesto mudo e pulo quando a cortina de luz atravessa o barquinho.
Mergulho.
Nado, nado, nado e, súbito, agonia, afundo e morro.
N-não? Quase! Subo. Respiro.
O giro analisa o barqueiro. Cara de despreocupado. Esse aí é
remo velho. Tá nem aí. Ele sabe. Favelados Fluviais não
têm registro. Vai cadastrá-lo. Isso leva uns quinze minutos,
se a rede do éter não estiver congestionada com pornografia
e mexericos da vida artística. Aproveito e chego a margem. Arrasto-me
e me escondo no mato. Tento respirar. Aii...
Bala-necrose calibre 23 encravada no peito. Presente da Liga Platina durante
as guerras católicas. Maquininha interessante. Ela faz a automanutenção
e tira sua energia da destruição celular do hospedeiro.
Segunda ou terceira geração de parasitas eletrônicos,
acredito. Vem na embalagem:
Morte especial para inimigos especiais!
Dá apenas pra retardar a corrupção. Tirar, não.
Só há uma saída. Abro a bolsa impermeável
e pego a bíblia. Folheio. Verifico. Velha como o pecado, mas perfeita.
Artigo em ordem! Cliente feliz. Espero. A dor... passa. Levanto e sigo
para minha cura.
Na névoa perene, brilham as janelas dos edifícios
de resina negra do bairro Monólito. Há alguns vultos na
rua. Pouca gente trabalha aqui e ninguém vem para passear. A cidade
tem que agradecer a cerração urbana. Limpou seu visual de
todo lixo publicitário, já que é quase impossível
ver qualquer coisa claramente. Pena que isso estimulou o terrorismo publicitário
de alto impacto individual. Bombardeamento maciço de mensagens
subliminares, incluindo implante de memórias de consumo de certos
cereais matutinos. Decadência! Hoje, todo mundo é terrorista...
Eis o prédio.
O plasma inteligente do cérebro zelador possui um desses afeminados
sotaques meio cantados das modas fonéticas de merda. Oh! Como são
boçais... O funcionário digital me permite entrar. Estavam
me esperando. O elevador avança na vertical e na horizontal lento.
Seria mais rápido na diagonal, no entanto é bom fazer o
gordinho sofrer um pouco mais.
O freguês é um Christex. Texano
cristão. Confederação Cristã do Texas. Plebiscito
de 44. Instigados por corporações evangélicas, Texas
e outros estados se separaram dos EUA, pois aquela grande nação
estava ficando liberal, atéia e gay demais pra América profunda
(capa óbvia da Times: Serraram Tio
Sam ao meio). Faliram em cinco anos. Crise terminal do combustível
fóssil. Tentaram retornar, mas as bichas liberais do norte não
aceitaram. Hoje, negociam o Novo México de volta com o México
em troca de fornecimento de energia. Chega de história. O comprador
é um texano rico exemplar. Branco, rosa e obscenamente gordo. Os
cowboys consomem muito e se mexem pouco. Pra se deslocar precisam de carrinhos
a motor. Famílias inteiras passeando motorizadas. Seus bairros
chiques são imensos bate-bates de parque de diversões.
- Voltou antes que eu esperava.
- Profissionalismo. Vocês curtem, não é?
- Claro! Claro! Você...
Impaciente. Demoro um pouco para abrir a bolsa. Acompanho suas feições.
Estou bem atento a qualquer deformação estrutural da sala.
Exibo a bomba de acido séptico. Qualquer pisada na bola e o seboso
ai vai ser dono de um mingau de polpa de papel com vinagre. Só
o destravo quando tenho certeza que o edifício não vai me
matar. O homem está se irritando. Melhor não forçar
a barra. Enfim, eu mostro o livro.
Rara bíblia batista em celulose antiga. Os dedos grossos deslizam
pelo papel vagabundo. Tão diferente da folha de silicone e da nanotinta.
A fé brilha nos olhinhos azuis do diácono governamental
para compra de armas e artigos religiosos. Os superbatistas (igreja oficial
e partido único do Texas) crêem que a verdade se perdeu ao
formatarem a bíblia em digital. E como o desleixo público
quase extinguiu os livros, este exemplar tornou-se uma relíquia
valiosa.
- E então? Satisfeito?
Agora é a vez do tomatão enrolar. Tensão. Faz uma
cara de vou te comer vivo. Armação? Nem. O cérebro
zelador do prédio deve saber que se eu quiser ainda posso explodir
em combustão. É só elaborar uma determinada imagem
complexa dentro do cérebro pro sensor neural ativar a bomba estomacal
que eu engoli no café da manhã. O Cowboy morde o lábio.
- Você terá aquela abominação antitexana dos
pagãos europeus que confiscamos na alfândega.
O melhor espécime de vida artificial de última geração,
uma novidade maravilhosa do velho mundo, caro demais para se buscar na
fonte.
- Feito! Aleluia, cowboy!
Bato os sapatinhos de rubi em casa com Totô bem
distante de sampa e do christex maluco. Estou segurando o vidro da criatura.
Coisa feia e vermelha. Ela dorme tranqüila na placenta sedativa.
Abro o lacre e tiro a tampa. Quero sentir cada fase do processo. O toque
não é nojento. Parece um tipo de casca mole, gostoso de
se manipular. Dá vontade de apertar...
A síntese de artrópode e cefalópode entre meus dedos
é uma ferramenta viva. Aplicativo orgânico pra simbiose funcional.
Levo o artefato até debaixo da torneira e limpo do sedativo. A
coisa rubra mal acorda e, seguindo sua programação de procedimento,
crava o ferrão neurodigital em mim. É como uma injeção
anestésica. Dói no começo e depois pára. A
criatura improvisa uma faixa mental precária de comunicação
pra dialogo.
Permissão para neurotransmissão?
A voz assexuada na minha mente não é novidade. Não
causa estranhamento e nem enjôo. Agradeço aquela temporada
que fiquei internado numa cada de jogos neurológicos. O duro é
falar com o córtex...
- S-sim.
Permissão para a fusão plena.
A coisa refaz o pedido mais duas vezes.
Não será possível voltar
atrás.
- Aceito!
Rodando.
Dói. Dói muito. A dor deve ser a dor de um parto.
Deseja aplicação de Endorfina?
Indolor.
Circuito nervoso com acesso pleno. Buscando erros
na fisiologia.
Não deve demorar.
Corpo estranho. Ameaça estrutural 03. Reconhecimento:
Bala-necrose. Deletar?
- Não, deixa ai porque eu sou adepto do masoquismo solitário...
É claro que sim!
Continuar reparos.
A manutenção me derruba. Caio no sofá com o simbionte
grudado em meu punho. Apago por alguns dias. Desperto, faminto e sedento.
Saio correndo para a cozinha e engulo metade dela. Alimentado. Me sinto
bem. Recauchutado. Vou ao banheiro e no espelho vejo que remocei alguns
anos e perdi as cicatrizes. No meu punho, enrolada com seus tentáculos
e braços articulados está como a manopla orgânica,
a luva de carne, a nova parte de mim
É um pacto simples esse que se faz com simbiontes. Dou-lhe vida
na substância de meu corpo em troca de seus serviços: imunidade
a doenças e cura de qualquer ferimento. Perfeito para meu ramo
profissional.
Ah! E há brindes também. Um sensor alarme a qualquer flutuação
elétrica próxima. Posso fechar os olhos e sacar quantos
caras estão no prédio onde moro. O teaser enguia, um jato
de ácido úrico que conduz uma corrente elétrica até
seu alvo. Spray paralisante e ácido corrosivo. Usina de drogas.
Ímã sexual de feronoma. Ferrão neurodigital cambiável
e moldável para todas as entradas de máquinas e mentes.
E o bálsamo definitivo contra a solidão. Explico: o simbionte
se nutrirá de mim e se tornará um ente próprio. Uma
personalidade independente elaborada a partir de fragmentos da minha.
Meu próprio papagaio de pirata. Sempre falará e sempre a
ouvirei...
Vamos pra casa!
A nova voz se formou semana passada e ainda não me habituei à
sua feminilidade.
- Tá doida, sua lagosta?
Não sou uma lagosta. Eu sou um simbionte.
A mágoa na fala é uma graça.
Estou só pensando no nosso bem-estar.
Embaixo, podia ver pela grade do sistema de ventilação o
bispo embaixador roncando alto.
- É a chance da gente descobrir onde a Santa Sé está
escondendo Cristo em sua terceira vinda. Com a educação
política certa, podemos levar a revolução até
os portões do paraíso.
Vocês e seus amigos nem conseguem
ganhar nem uma eleição pra sindico.
- Olha você implicando com os rapazes de novo! Ai... Você
quer colaborar? Estende seu ferrão até lá em baixo
e sonda a cuca do véio.
Não.
- Como não?
Não quero.
- Como não quer?
Não sou lagosta.
- Não acredito nisso.
Sou um simbionte. Me respeita.
- Tá bom. O que posso fazer para você me ajudar?
- Peça desculpas.
- ...
Peça desculpas ou não tem
sondagem neural. E o velho vai acordar daqui a pouco.
- Desculpa...
Não ouvi.
- Desculpa!
Não foi sincero.
- Desculpa. Eu não quis chamar você de lagosta. Você
é um bom simbionte. Pronto.
Acho que sou fêmea.
- Você é uma linda simbionte. OK?
Humm...
- O que foi agora?
Quero mais uma coisa. Um nome.
- O que?
Quero que você me dê um nome.
- Agora?
É, agora. Estamos juntos há
três meses e você não me deu um nome até agora.
Respiro fundo. Penso.
- Ana.
Por que Ana?
- Era... era o nome de minha mãe.
Não sei porque, faço um carinho em sua cartilagem rosada.
Oh. Que fofo!
Ana ejeta um tentáculo fino que desce pela grade da ventilação
e se enfia por entre os fios brancos do nariz do sacerdote.
Por causa disso, hoje à noite você
vai ganhar um sonho quente com aquela atriz ruiva que você gosta.
- Como você sabe que eu curto sonhar com ela?
É quando você faz mais gostoso.
- Gostoso... Pêra aí!
Hihi! Voltemos ao trabalho. Psiu. Acessando
informação do córtex...
O
PAPO DO JEAN
Esta é a segunda vez que o Jean comparece a esta página, com
seu senso de humor malvado e uma imaginação de fazer qualquer
escritor adulto chorar de inveja. Um dia eu, o Jean e outras pessoas estávamos conversando sobre nossos
amigos imaginários na infância. Todo mundo tinha tido um, que
era assim ou assado, se chamava Fulano ou Beltrano. E o Jean? "Ah,
meu amigo imaginário era um camaleão fosforescente que brilhava
no escuro". Fechou, né? Todo mundo ficou morrendo de inveja.
E essa história diz tudo sobre o Jean...
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