Eugenia Zerbini, paulistana, conquistou o Prêmio SESC Literatura 2004 com o seu "As netas da Ema", publicado pela editora Record. Lançado em maio de 2005, já está com sua segunda edição no prelo. A autora mantém um blog homônimo (http://netasdaema.zip.net).

MEDITERRÂNEO EM AGOSTO

Toi qui m'as consolé
Rends-moi le Pausilippe et la mer d'Italie

(Gérard de Nérval, El Desdichado)

Para R.A.F.

Escrevi um livro. Por isso, fui convidada para participar de um evento sobre o Mediterrâneo, neste agosto. Meu livro - As netas da Ema - faz alusão no título a Ema Bovary. Minha grande surpresa foi o porquê contextualizá-lo em meio às águas sagradas daquele que é chamado Mare Nostrum. Este, afinal, sabe a óleo de oliva, enquanto Ema a creme de leite e manteiga.

Agradeci de coração o convite, adiando a tarefa de destrinchar a questão de falar sobre minhas "Emas" e o Mediterrâneo para agosto. A derradeira saída poderia ser, eu imaginei, notar que, em As netas da Ema, há uma menção expressa àquelas águas que na Antigüidade eram o "oceano sem fim". Em minha tentativa de tornar patente que a vida é muito maior e mais complexa do que qualquer enredo, pedi emprestada a voz de um de meus personagens, em meu capítulo IV, para contar o final da vida de Paganini. E ela é arrebatada por uma estranha viagem através do Mediterrâneo.

Il Maestro, nascido em Gênova - grande porto daquele mar -, cidade natal também do lendário violinista, relata a certa altura que Paganini era admirado e temido. Corria à boca pequena que tinha parte com o daninho, para não dizer outra coisa. Que, enquanto tocava, arrebentava, uma a uma, as cordas de seu violino, dito encantado, para terminar seus solos dedilhando uma única corda. Antes de morrer, em Nice, Niccolò Paganini teria se negado a receber a extrema-unção, com isso alimentando rumores de um suposto acordo com as forças do lá de baixo. Para castigá-lo, e com medo de eventuais maldições, a população foi contra seu sepultamento no cemitério daquela cidade. Por causa disso, seu corpo permaneceu guardado em um porão durante cinco anos. Por fim, a família obteve uma ordem do papa para que os restos do grande músico fossem transladados para sua Gênova, onde foi finalmente enterrado. Il Maestro finalizava esse relato fantástico (sempre baixando a voz, passando de tenor para barítono, reforçando o suspense dessa incrível narrativa) afirmando que, nessa última viagem, Paganini e seu navio foram escoltados por tempestades, raios e trovoadas, nas encrespadas águas daquele mar cujo nome quer dizer "entre-terras".

De resto, nenhuma ligação. Ao contrário, muitas oposições. A principal delas é a de que no Mediterrâneo se vive por amor, e que Ema matou-se por ele. Ou por falta dele. Porém, dei por mim, em um segundo momento, que nossa língua e nossos critérios recobrem-se de ambigüidade.

Mediterrâneo tanto pode designar o "entre-terras" como o interior. Por isso, tanto o Irã é um espaço mediterrâneo, entre os rios Tigre e Eufrates, como é correto dizer que Dijon, apetitosa capital da Bourgogne, produz magníficos vinhos, pois seus vinhedos são abençoados por um clima mediterrâneo, quer dizer, do interior, "no meio das terras" (longe do mar, portanto), muito quente no verão e frio no inverno.

Agosto, por sua vez, na orla do Mediterrâneo, significa férias, sol e prazer, enquanto para nós chama a figura do mau-agouro. Popularmente, mês de cachorro louco, durante o qual, segundo os mais supersticiosos, não se deve começar nada. Do ponto de vista político, os influxos suspeitos do período são corroborados, uma vez que em agosto ocorreram não apenas o suicídio de Vargas como a renúncia de Jânio Quadros. Esta última, prelúdio para o golpe de 1964 e 20 anos de ditadura militar.

De volta ao Mediterrâneo, depois do ambíguo agosto: o equívoco não estaria no discurso, mas na própria realidade, o que abre espaço infinito para as interpretações pessoais.

Mediterrâneo, para mim, são águas encantadas, berço de epifanias, cheias de esperma de deuses, abençoadas por cantos de sereias, que nadam de seios nus e caudas nacaradas. É Nápoles, onde o falar soa igual ao marulho de ondas; é a princesa siciliana com hálito de manjericão, que desfila portando nas orelhas argolas imensas de ouro; é o néctar das laranjas sangüíneas, sumo vermelho de vampiros solares, doadoras de vida para todos que o sugam. É também a visão de dois corpos seminus de um casal de jovens que um dia eu sonhei estarem se banhando na alegria dourada do pôr-do-sol, frente às velhas pedras de Pestum.

Mediterrâneo, ainda, é materno. La mer. Definitivamente feminino. Muito mais feminino do que nostrum. Nosso de quem? Dos fenícios, que nele iniciaram o comércio mil anos antes de Cristo, dos romanos, que lhe deram o nome, dos sarracenos que o dominaram por quase três séculos, ou dos ingleses, no século XIX? O que é de todos é de ninguém. Sendo de ninguém, pode ser moldado qual barro fresco, idêntico àquele escolhido por Deus como matéria-prima de Adão e Eva.

O Mediterrâneo é espaço mágico, criado e recriado na imaginação de cada um, aquela circunferência cujo ponto central está em todos os lugares e onde os limites do círculo se alojam em lugar nenhum. Nele, banham-se prazerosamente os corpos incorruptíveis de minhas heroínas, de Cassandra, ressuscitada das tragédias de Tróia e Micenas, à Ema Bovary e Ana Karenina, renascidas, uma de seu pote de arsênico, outra de seu trem assassino. Vencedoras da morte, cavalgam nuas os cavalos de Netuno, libertas das páginas dos livros e das sagas nem sempre doces traçadas por seus autores.

Nas águas de meu Mediterrâneo, Ema é absolvida de seus erros eventuais e adquire a pureza pagã, que perdurará enquanto brilhar a estrela Vésper, sinalizando o finalizar do dia e anunciando o nascer da Lua. Durante todos os meses, e não apenas em agosto.


O PAPO DA EUGÊNIA

Conheci a Eugênia Zerbini dia desses e não queria mais largar dela. Eugênia tem milhões de histórias interessantes para contar. Poderia escrever um belo livro de memórias... mas ela é que nem eu, prefere mesmo a ficção.
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