Toi qui m'as
consolé
Rends-moi le Pausilippe et la mer d'Italie
(Gérard de Nérval, El Desdichado)
Para R.A.F.
Escrevi um livro. Por isso, fui convidada para participar
de um evento sobre o Mediterrâneo, neste agosto. Meu livro - As
netas da Ema - faz alusão no título a Ema Bovary.
Minha grande surpresa foi o porquê contextualizá-lo em meio
às águas sagradas daquele que é chamado Mare
Nostrum. Este, afinal, sabe a óleo de oliva, enquanto Ema
a creme de leite e manteiga.
Agradeci de coração o convite, adiando a tarefa de destrinchar
a questão de falar sobre minhas "Emas" e o Mediterrâneo
para agosto. A derradeira saída poderia ser, eu imaginei, notar
que, em As netas da Ema, há uma menção expressa
àquelas águas que na Antigüidade eram o "oceano
sem fim". Em minha tentativa de tornar patente que a vida é
muito maior e mais complexa do que qualquer enredo, pedi emprestada a
voz de um de meus personagens, em meu capítulo IV, para contar
o final da vida de Paganini. E ela é arrebatada por uma estranha
viagem através do Mediterrâneo.
Il Maestro, nascido em Gênova - grande porto daquele mar -, cidade
natal também do lendário violinista, relata a certa altura
que Paganini era admirado e temido. Corria à boca pequena que tinha
parte com o daninho, para não dizer outra coisa. Que, enquanto
tocava, arrebentava, uma a uma, as cordas de seu violino, dito encantado,
para terminar seus solos dedilhando uma única corda. Antes de morrer,
em Nice, Niccolò Paganini teria se negado a receber a extrema-unção,
com isso alimentando rumores de um suposto acordo com as forças
do lá de baixo. Para castigá-lo, e com medo de eventuais
maldições, a população foi contra seu sepultamento
no cemitério daquela cidade. Por causa disso, seu corpo permaneceu
guardado em um porão durante cinco anos. Por fim, a família
obteve uma ordem do papa para que os restos do grande músico fossem
transladados para sua Gênova, onde foi finalmente enterrado. Il
Maestro finalizava esse relato fantástico (sempre baixando a voz,
passando de tenor para barítono, reforçando o suspense dessa
incrível narrativa) afirmando que, nessa última viagem,
Paganini e seu navio foram escoltados por tempestades, raios e trovoadas,
nas encrespadas águas daquele mar cujo nome quer dizer "entre-terras".
De resto, nenhuma ligação. Ao contrário, muitas oposições.
A principal delas é a de que no Mediterrâneo se vive por
amor, e que Ema matou-se por ele. Ou por falta dele. Porém, dei
por mim, em um segundo momento, que nossa língua e nossos critérios
recobrem-se de ambigüidade.
Mediterrâneo tanto pode designar o "entre-terras"
como o interior. Por isso, tanto o Irã é um espaço
mediterrâneo, entre os rios Tigre e Eufrates, como é correto
dizer que Dijon, apetitosa capital da Bourgogne, produz magníficos
vinhos, pois seus vinhedos são abençoados por um clima mediterrâneo,
quer dizer, do interior, "no meio das terras" (longe do mar,
portanto), muito quente no verão e frio no inverno.
Agosto, por sua vez, na orla do Mediterrâneo,
significa férias, sol e prazer, enquanto para nós chama
a figura do mau-agouro. Popularmente, mês de cachorro louco, durante
o qual, segundo os mais supersticiosos, não se deve começar
nada. Do ponto de vista político, os influxos suspeitos do período
são corroborados, uma vez que em agosto ocorreram não apenas
o suicídio de Vargas como a renúncia de Jânio Quadros.
Esta última, prelúdio para o golpe de 1964 e 20 anos de
ditadura militar.
De volta ao Mediterrâneo, depois do ambíguo
agosto: o equívoco não estaria no discurso, mas na própria
realidade, o que abre espaço infinito para as interpretações
pessoais.
Mediterrâneo, para mim, são águas encantadas, berço
de epifanias, cheias de esperma de deuses, abençoadas por cantos
de sereias, que nadam de seios nus e caudas nacaradas. É Nápoles,
onde o falar soa igual ao marulho de ondas; é a princesa siciliana
com hálito de manjericão, que desfila portando nas orelhas
argolas imensas de ouro; é o néctar das laranjas sangüíneas,
sumo vermelho de vampiros solares, doadoras de vida para todos que o sugam.
É também a visão de dois corpos seminus de um casal
de jovens que um dia eu sonhei estarem se banhando na alegria dourada
do pôr-do-sol, frente às velhas pedras de Pestum.
Mediterrâneo, ainda, é materno. La
mer. Definitivamente feminino. Muito mais feminino do que
nostrum. Nosso de quem? Dos fenícios, que nele iniciaram
o comércio mil anos antes de Cristo, dos romanos, que lhe deram
o nome, dos sarracenos que o dominaram por quase três séculos,
ou dos ingleses, no século XIX? O que é de todos é
de ninguém. Sendo de ninguém, pode ser moldado qual barro
fresco, idêntico àquele escolhido por Deus como matéria-prima
de Adão e Eva.
O Mediterrâneo é espaço mágico,
criado e recriado na imaginação de cada um, aquela circunferência
cujo ponto central está em todos os lugares e onde os limites do
círculo se alojam em lugar nenhum. Nele, banham-se prazerosamente
os corpos incorruptíveis de minhas heroínas, de Cassandra,
ressuscitada das tragédias de Tróia e Micenas, à
Ema Bovary e Ana Karenina, renascidas, uma de seu pote de arsênico,
outra de seu trem assassino. Vencedoras da morte, cavalgam nuas os cavalos
de Netuno, libertas das páginas dos livros e das sagas nem sempre
doces traçadas por seus autores.
Nas águas de meu Mediterrâneo, Ema é
absolvida de seus erros eventuais e adquire a pureza pagã, que
perdurará enquanto brilhar a estrela Vésper, sinalizando
o finalizar do dia e anunciando o nascer da Lua. Durante todos os meses,
e não apenas em agosto.
O
PAPO DA EUGÊNIA
Conheci a Eugênia Zerbini dia desses e não queria mais largar
dela. Eugênia tem milhões de histórias interessantes
para contar. Poderia escrever um belo livro de memórias... mas ela
é que nem eu, prefere mesmo a ficção.
|