Doeu. Quando ele bateu a
porta na cara dela, fazendo tremer as paredes do apartamento, doeu como
um corte no dedo e álcool depois. Como um caco no pé e alguns
passos pra frente. Como espinho sem querer na tentação de
arrancar a flor. Ouvir aquele barulho da porta batendo, bem na cara dela,
doeu como lábio mordido por dentro. Como dedo batido na quina. Como
soco no estômago. Puxão de cabelo. Como queda de escada. Arranhão.
Pancada. Doeu como fratura exposta. Inflamação. Como gelado
descendo na dor de garganta. Como tapa de mãe quando se é
pequena. Como soco na cara. Mão na tomada. Parto natural.
Quando ele bateu a porta na cara dela, fazendo tremer as paredes do apartamento,
ela não teve forças pra se mexer dali. Era como se os seus
pés, os dois, estivessem presos com aquela cola de tubinho, como
é o nome?, que promete grudar para sempre coisas de lata, de vidro,
de plástico. Coisas de papel, de madeira e de carne, como os pés
descalços dela sobre o chão gelado. Ele quis levar até
os tapetes. Aqueles dois tapetes coloridos comprados numa tarde de passeio
e de mãos dadas por aquela cidade de sofás e de armários
e de quadros e de tapetes artesanais. Ele quis encher o carro e o caminhãozinho-alugado
com tudo o que havia pago durante todos aqueles anos. Até com o jogo
de pequenas xícaras de café com desenhos de borboletas coloridas.
Ela não queria a separação? Pois então iria
embora levando tudo. Tudo o que tinha comprado desde o começo. Ela
não teria mais nada. Nem tapetes, nem quadros, nem sofá, nem
cadeira ou almofadas pra que pudesse sentar e chorar. Pra que pudesse lamentar
a frase dita sem pensar. Vomitada naquela noite de nervoso. Agora, não
tinha mais nada. Só aqueles dois pés descalços, que
graças a Deus, vieram grudados ao seu corpo e não foram comprados
pelo marido. Senão estaria mutilada, aleijada, cortada. Mulher-de-circo,
serrada sem os pés, rodando na mão de um mágico dando
gargalhadas histéricas.
Quando ele bateu a porta na cara dela, fazendo tremer as paredes do apartamento,
ela se perguntou o porquê do castigo. Da condenação
à solidão. Afinal fora apenas uma sugestão. Não
seria melhor dar um tempo?, disse enquanto ele se trocava no canto do quarto.
Frase idiota. Desabafo dispensável feito no momento de uma insatisfação
nem tão grande assim. A resposta dele veio em forma de roupas jogadas
nas malas. De livros arrancados da estante. De quadros levados. De pregos,
agora sozinhos, espalhados pelas paredes. Veio em forma de poeira que ficava
debaixo dos tapetes, aparecendo de repente no meio da sala. A resposta veio
em forma de caminhãozinho-alugado parado na porta do prédio.
De homens desconhecidos levando suas coisas. De vizinhos espiando pelas
frestas das janelas. Pelos cantos das cortinas. Telefonando uns para os
outros, curiosos com a movimentação.
Quando as paredes do apartamento tremeram com a porta batendo na cara dela,
percebeu que não conseguia desgrudar os pés do chão.
Quis chorar, mas não conseguiu, se perguntando o porquê daquele
homem não querer ficar mais ali. De não insistir. De não
esperar para que ela contasse que, no fundo, não queria aquilo. Castigo
dos grandes para a descontrolada. Justo ela. Ela que tinha desobedecido
apenas 20 por cento dos Dez Mandamentos. Ela que sempre doava agasalhos
no inverno. Que comprava balas penduradas no retrovisor, enquanto o farol
não ficava verde. Ela que nem falava palavrão. Que atravessava
cegos sobre a faixa. Que doava quilos de arroz no Natal. Justo ela, a mocinha
da história, a que deveria ganhar um final feliz antes dos créditos
subindo, castigada. Condenada a ficar sozinha para sempre. Com o apartamento
vazio, fazendo eco. Com os pés, ali, inteiros, grudados no chão,
mas com o coração arrancado. Levado pelo marido. Era dele
também. O maldito coração e as pequenas xícaras
de café com borboletas coloridas.
O
PAPO DO EDUARDO
Esse
conto primoroso é só uma amostra do que o Eduardo é
capaz. Ele é um rapaz modesto e acanhado. Por isso, sempre que
a gente convida pra alguma coisa, diz que está ocupado, não
pode aparecer... e manda um texto. Gente, cada texto!
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