Daniel Waismann é jornalista, mas de vez em quando gosta de dar uma de escritor. Até 2012, pretende lançar seu primeiro livro de contos. O conto "Iossef" ganhou o quarto lugar da primeira edição do Concurso Literário do Espaço K, em setembro de 2003.

Um breve relato sobre Iossef Goldberger

"O melhor dos artesãos não pode executar sua tarefa corretamente se as suas ferramentas tiverem falhas, se forem de má qualidade" (Chafetz Chaim)

Alexandre não é um nome de origem hebraica. Vem do grego. O maior deles impôs a cultura helênica na Terra Santa, que depois foi expulsa pelos macabeus. Pois Alexandre Goldberger é descendente destes macabeus, vive hoje em São Paulo, estuda Administração e trabalha como gerente de banco. Seu nome foi escolhido nessas revistas que dão dicas de nomes. A mãe achou bonito, imponente.

Alex, como é chamado pelos colegas, considerava-se uma mistura de judeu cultural com judeu nacionalista. Era também um judeu de festas, mas nos últimos tempos só ia à sinagoga no Iom Kipur, quando mantinha o hábito de jejuar. Ele não leu e conhece apenas de nome os grandes sábios de Torá, como Maimônides, Rabi Akiva ou Gaon de Vilna. Preferia mesmo os nomes judaicos da cultura contemporânea, como I. Bashevis Singer e Woody Allen. Admirava também os grandes compositores hebreus da música pop, como Bob Dylan e Leonard Cohen. Emocionou-se com a tradição cantada e cumprida sem um porquê pelos habitantes do shtetl do Violinista do Telhado. Para ele, os grandes pensadores judeus haviam sido Marx, Freud, Kafka e Einstein. Mesmo assim, a imagem de Charlton Heston descendo do Monte Sinai com os Dez Mandamentos nunca lhe saiu da cabeça. Já o título de judeu nacionalista era justificado por sempre se incomodar com os problemas em Israel, como atentados terroristas (embora nunca quisesse saber a causa) ou o perigo de um míssel explodir na Eretz durante a invasão americana no Iraque.

Como sempre estudou em escola judaica, "arranhava" o hebreu Gostava de ser judeu, pois causava curiosidade na faculdade, o que o fez popular. Também sabia que seria mais fácil arrumar emprego dentro da comunidade e, de certa forma, sentia orgulho de fazer parte do povo escolhido, da minoria que já recebeu 20% dos prêmios Nobel e tinha forte influência econômica e política em vários países, inclusive no seu. No entanto, considerava os religiosos loucos e fanáticos, tinha pena de vê-los todos de preto no verão tropical e, desde que entrara na faculdade, afastara-se da comunidade.

Naquele dia, sua cabeça doía mais do que o normal e ainda era o começo do jejum do Dia do Perdão. Preparava-se para ouvir o shofar e chegou na sinagoga às cinco da tarde. Lá viu Iossef pela primeira vez. Ele estava na porta, estendeu-lhe a mão e se apresentou. Alex não entendeu o sobrenome direito, mas pelo que se lembrava também aabava "com "er. Logo se recordou que Iossef também era seu nome hebraico, embora desde as aulas de ivrit no colégio, nunca mais tinha sido chamado assim.

Durante a cerimônia, percebeu que Iossef, um típico judeu religioso que se vestia de preto e usava tzit-tzit, não parava de lhe encarar. Sorria sempre, mas era uma expressão que por vezes parecia irônica e outras de reprovação. Todos prontos para o shofar. Silêncio. Durante o toque longo, Alex conseguiu pensar em pedir paz e saúde para sua família (como fazia todo ano), mas durante os toques quebrados, não conseguia tirar da mente aquele sorriso sarcástico de Iossef, o que fez sua cabeça quase estourar.

Quando estava com sua família quebrando o jejum, pensou ter visto pela parede envidraçada do restaurante o vulto de Iossef, que tinha a silhueta muito parecida com a sua, e quase pôde ouvir sua voz misturada ao zunido do shofar, o que lhe rendeu mais uma pontada na cabeça.

Daquele dia em diante, aquele religioso entrou de vez na vida do jovem macabeu de nome grego. Alex tinha a impressão de que ele o seguia, já que não poucas vezes o havia encontrado na rua. Até na agência onde trabalhava já o tinha visto. E estava sempre com aquele sorriso irônico, feliz e reprovador ao mesmo tempo. Alex sabia que a Torá pregava o prazer e que, se não fosse para ser feliz, não adiantava se dedicar ao judaísmo: "mas também ele não precisava ficar andando com aquele sorriso no rosto o tempo todo".

Mas o pior mesmo ocorreu no encontro dos bancários, no sábado, num sítio. Já era noite e os refletores iluminavam o pequeno campo de futebol. Alex driblou um, o outro, quando um dos refletores teve uma luz estourada. O jogo continuou. Alex arrancou em velocidade para receber a bola. Sua miopia o atrapalhava, ainda mais num campo semi-escurecido. Foi quando uma perna, envolta por uma calça preta, o derrubou. Ao levantar o pescoço, ele viu a figura de Iossef, com tzit-tzit pra fora e kipá preta. Não conseguiu falar nada, pois a dor era insuportável. Embora alguns tivessem lhe explicado que ele havia tropeçado num buraco, e que não havia ninguém por perto quando caiu, sabia que tinha sido aquele religioso...

Ficaria uns dias de cama. Havia quebrado a perna e, por algum motivo não explicado, também perdera a voz. No começo, estranhou o fato do religioso jogar futebol no shabat, mas lembrou-se que quando ele entrou na partida, o sol já tinha se posto. Também não sabia que ele era funcionário do banco.

Alex morava sozinho, mas quando foi para casa, com a perna engessada, recebeu muitas visitas. Depois que todas iam embora, chegava ele, o religioso. Ele apenas sentava-se em frente a sua cama, como que esperando alguma reação do enfermo.

Foi nestes dias que, ao invés de sentir raiva, Alex tentou desafiar Iossef no seu próprio terreno. Voltou a ler seus livros de cultura judaica e até arriscou estudar Guemará e Chafetz Chaim. Queria ir fundo como nunca foi e chamar o religioso para um jogo filosófico, onde sabia que ganharia. Começou a formular perguntas que julgava sem respostas no judaísmo, como: "se Deus realmente existe, como provar que Ele é bom e misericordioso, já que foi apenas Ele próprio que disse isso?" ou "como saber que não existe uma outra força, um outro Deus, que criou esse Deus, que pode ter criado o mundo numa disputa de mundos perfeitos com outros deuses?" Naquele momento pensou na letra de uma música de Cohen, que dizia que "um de nós não pode estar errado". Iossef não poderia se vangloriar de ter nada melhor que ele. Durante as visitas, o religioso apenas se sentava perto de sua cama e, quieto, esperava-o dormir.

Nesse tempo, sua mãe lhe trouxe uma revista semanal estrangeira, onde havia uma reportagem na qual Charlton Heston, o seu Moisés, aparecia como um velho racista reacionário. Isso foi ao mesmo tempo em que estudava a saída do Egito e o real significado da liberdade conquistada pelos judeus. Refletiu que tinha vários "Egitos" dentro de si, como o dinheiro, o poder, a necessidade de ser admirado. Era escravo do consumismo, daquilo que lhe vendiam como uma vida digna, intensa, mas que podia ser comprada no supermercado ou na concessionária a qualquer hora.

Em poucos dias, teve a sensação de que não havia pensado nos últimos tempos. Ele tinha a necessidade de sempre ser ouvido, nunca de ouvir, nem a si próprio. Durante os últimos dias de visita, o sorriso que sempre acompanhava Iossef parecia ter se tornado de alegria, de satisfação. No entanto, era o mesmo sorriso de antes. Dali a dois dias, Alex estaria de volta ao banco, mesmo de perna engessada, mas sabia que aquele período de cama mudaria certas coisas em sua vida. Não conseguiu se aprofundar nos estudos judaicos como queria, já que o tempo foi curto, mas aquilo o fez refletir.

Claro que não largaria tudo para se tornar rabino. Mas aquele jogo de questões existenciais, que desafiaria o religioso, parecia não ter mais importância. Estava com um sentimento de que, ao invés de questionar a existência, era mais importante fazer dela uma coisa melhor e com um sentido. Não deixaria de ouvir Dylan, ver os filmes de Allen (principalmente rever os mais antigos) e de se emocionar com a poesia sussurrada de Cohen. Mas decidiu buscar de volta sua identidade judaica. Sabia que ser judeu não era ostentar um sobrenome, um status. Ser judeu estava dentro de si. Bastava-lhe desenvolver seu potencial.

Queria ser como Einstein, claro, de acordo com suas limitações. Seria bom naquilo que escolheu profissionalmente, mas não deixaria de ser um humanista. Talvez viesse a freqüentar grupos de discussão ou voltasse a estudar a cultura judaica. Queria voltar a fazer parte do povo onde, segundo a Torá, cada um tem sua importância e seu papel. Provavelmente não cumpriria as duzentas e poucas mitzvot obrigatórias, mas sabia que tinha potencial para ser uma pessoa melhor, mais útil de alguma maneira. Mesmo que não guardasse o shabat à risca, usaria o sábado para refletir. Não sabia se ia conseguir, ou se a rotina do banco e do consumo desenfreado tomaria conta de sua mente de novo. Mas tentaria.

Depois que sua perna melhorou, Iossef não apareceu mais em sua vida. Pelo menos não na sua frente.


O PAPO DO DANIEL

O Daniel é um rapaz aí muito bonzinho, inclusive é meu amigo, problema é quando começa a beber. Brincadeira. Na verdade o Daniel é bom jornalista, leva o maior jeito como escritor e precisa levar a sério essa carreira. Inclusive podia começar participando dos Alcoólicos Anônimos.
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