| "O 
        melhor dos artesãos não pode executar sua tarefa corretamente 
        se as suas ferramentas tiverem falhas, se forem de má qualidade" 
        (Chafetz Chaim)  Alexandre não 
        é um nome de origem hebraica. Vem do grego. O maior deles impôs 
        a cultura helênica na Terra Santa, que depois foi expulsa pelos 
        macabeus. Pois Alexandre Goldberger é descendente destes macabeus, 
        vive hoje em São Paulo, estuda Administração e trabalha 
        como gerente de banco. Seu nome foi escolhido nessas revistas que dão 
        dicas de nomes. A mãe achou bonito, imponente.
 Alex, como é chamado pelos colegas, considerava-se uma mistura 
        de judeu cultural com judeu nacionalista. Era também um judeu de 
        festas, mas nos últimos tempos só ia à sinagoga no 
        Iom Kipur, quando mantinha o hábito de jejuar. Ele não leu 
        e conhece apenas de nome os grandes sábios de Torá, como 
        Maimônides, Rabi Akiva ou Gaon de Vilna. Preferia mesmo os nomes 
        judaicos da cultura contemporânea, como I. Bashevis Singer e Woody 
        Allen. Admirava também os grandes compositores hebreus da música 
        pop, como Bob Dylan e Leonard Cohen. Emocionou-se com a tradição 
        cantada e cumprida sem um porquê pelos habitantes do shtetl do Violinista 
        do Telhado. Para ele, os grandes pensadores judeus haviam sido Marx, Freud, 
        Kafka e Einstein. Mesmo assim, a imagem de Charlton Heston descendo do 
        Monte Sinai com os Dez Mandamentos nunca lhe saiu da cabeça. Já 
        o título de judeu nacionalista era justificado por sempre se incomodar 
        com os problemas em Israel, como atentados terroristas (embora nunca quisesse 
        saber a causa) ou o perigo de um míssel explodir na Eretz durante 
        a invasão americana no Iraque.
 
 Como sempre estudou em escola judaica, "arranhava" o hebreu 
        Gostava de ser judeu, pois causava curiosidade na faculdade, o que o fez 
        popular. Também sabia que seria mais fácil arrumar emprego 
        dentro da comunidade e, de certa forma, sentia orgulho de fazer parte 
        do povo escolhido, da minoria que já recebeu 20% dos prêmios 
        Nobel e tinha forte influência econômica e política 
        em vários países, inclusive no seu. No entanto, considerava 
        os religiosos loucos e fanáticos, tinha pena de vê-los todos 
        de preto no verão tropical e, desde que entrara na faculdade, afastara-se 
        da comunidade.
 
 Naquele dia, sua cabeça doía mais do que o normal e ainda 
        era o começo do jejum do Dia do Perdão. Preparava-se para 
        ouvir o shofar e chegou na sinagoga às cinco da tarde. Lá 
        viu Iossef pela primeira vez. Ele estava na porta, estendeu-lhe a mão 
        e se apresentou. Alex não entendeu o sobrenome direito, mas pelo 
        que se lembrava também aabava "com "er. Logo se recordou 
        que Iossef também era seu nome hebraico, embora desde as aulas 
        de ivrit no colégio, nunca mais tinha sido chamado assim.
 
 Durante a cerimônia, percebeu que Iossef, um típico judeu 
        religioso que se vestia de preto e usava tzit-tzit, não parava 
        de lhe encarar. Sorria sempre, mas era uma expressão que por vezes 
        parecia irônica e outras de reprovação. Todos prontos 
        para o shofar. Silêncio. Durante o toque longo, Alex conseguiu pensar 
        em pedir paz e saúde para sua família (como fazia todo ano), 
        mas durante os toques quebrados, não conseguia tirar da mente aquele 
        sorriso sarcástico de Iossef, o que fez sua cabeça quase 
        estourar.
 
 Quando estava com sua família quebrando o jejum, pensou ter visto 
        pela parede envidraçada do restaurante o vulto de Iossef, que tinha 
        a silhueta muito parecida com a sua, e quase pôde ouvir sua voz 
        misturada ao zunido do shofar, o que lhe rendeu mais uma pontada na cabeça.
 
 Daquele dia em diante, aquele religioso entrou de vez na vida do jovem 
        macabeu de nome grego. Alex tinha a impressão de que ele o seguia, 
        já que não poucas vezes o havia encontrado na rua. Até 
        na agência onde trabalhava já o tinha visto. E estava sempre 
        com aquele sorriso irônico, feliz e reprovador ao mesmo tempo. Alex 
        sabia que a Torá pregava o prazer e que, se não fosse para 
        ser feliz, não adiantava se dedicar ao judaísmo: "mas 
        também ele não precisava ficar andando com aquele sorriso 
        no rosto o tempo todo".
 
 Mas o pior mesmo ocorreu no encontro dos bancários, no sábado, 
        num sítio. Já era noite e os refletores iluminavam o pequeno 
        campo de futebol. Alex driblou um, o outro, quando um dos refletores teve 
        uma luz estourada. O jogo continuou. Alex arrancou em velocidade para 
        receber a bola. Sua miopia o atrapalhava, ainda mais num campo semi-escurecido. 
        Foi quando uma perna, envolta por uma calça preta, o derrubou. 
        Ao levantar o pescoço, ele viu a figura de Iossef, com tzit-tzit 
        pra fora e kipá preta. Não conseguiu falar nada, pois a 
        dor era insuportável. Embora alguns tivessem lhe explicado que 
        ele havia tropeçado num buraco, e que não havia ninguém 
        por perto quando caiu, sabia que tinha sido aquele religioso...
 
 Ficaria uns dias de cama. Havia quebrado a perna e, por algum motivo não 
        explicado, também perdera a voz. No começo, estranhou o 
        fato do religioso jogar futebol no shabat, mas lembrou-se que quando ele 
        entrou na partida, o sol já tinha se posto. Também não 
        sabia que ele era funcionário do banco.
 
 Alex morava sozinho, mas quando foi para casa, com a perna engessada, 
        recebeu muitas visitas. Depois que todas iam embora, chegava ele, o religioso. 
        Ele apenas sentava-se em frente a sua cama, como que esperando alguma 
        reação do enfermo.
 
 Foi nestes dias que, ao invés de sentir raiva, Alex tentou desafiar 
        Iossef no seu próprio terreno. Voltou a ler seus livros de cultura 
        judaica e até arriscou estudar Guemará e Chafetz Chaim. 
        Queria ir fundo como nunca foi e chamar o religioso para um jogo filosófico, 
        onde sabia que ganharia. Começou a formular perguntas que julgava 
        sem respostas no judaísmo, como: "se Deus realmente existe, 
        como provar que Ele é bom e misericordioso, já que foi apenas 
        Ele próprio que disse isso?" ou "como saber que não 
        existe uma outra força, um outro Deus, que criou esse Deus, que 
        pode ter criado o mundo numa disputa de mundos perfeitos com outros deuses?" 
        Naquele momento pensou na letra de uma música de Cohen, que dizia 
        que "um de nós não pode estar errado". Iossef 
        não poderia se vangloriar de ter nada melhor que ele. Durante as 
        visitas, o religioso apenas se sentava perto de sua cama e, quieto, esperava-o 
        dormir.
 
 Nesse tempo, sua mãe lhe trouxe uma revista semanal estrangeira, 
        onde havia uma reportagem na qual Charlton Heston, o seu Moisés, 
        aparecia como um velho racista reacionário. Isso foi ao mesmo tempo 
        em que estudava a saída do Egito e o real significado da liberdade 
        conquistada pelos judeus. Refletiu que tinha vários "Egitos" 
        dentro de si, como o dinheiro, o poder, a necessidade de ser admirado. 
        Era escravo do consumismo, daquilo que lhe vendiam como uma vida digna, 
        intensa, mas que podia ser comprada no supermercado ou na concessionária 
        a qualquer hora.
 
 Em poucos dias, teve a sensação de que não havia 
        pensado nos últimos tempos. Ele tinha a necessidade de sempre ser 
        ouvido, nunca de ouvir, nem a si próprio. Durante os últimos 
        dias de visita, o sorriso que sempre acompanhava Iossef parecia ter se 
        tornado de alegria, de satisfação. No entanto, era o mesmo 
        sorriso de antes. Dali a dois dias, Alex estaria de volta ao banco, mesmo 
        de perna engessada, mas sabia que aquele período de cama mudaria 
        certas coisas em sua vida. Não conseguiu se aprofundar nos estudos 
        judaicos como queria, já que o tempo foi curto, mas aquilo o fez 
        refletir.
 
 Claro que não largaria tudo para se tornar rabino. Mas aquele jogo 
        de questões existenciais, que desafiaria o religioso, parecia não 
        ter mais importância. Estava com um sentimento de que, ao invés 
        de questionar a existência, era mais importante fazer dela uma coisa 
        melhor e com um sentido. Não deixaria de ouvir Dylan, ver os filmes 
        de Allen (principalmente rever os mais antigos) e de se emocionar com 
        a poesia sussurrada de Cohen. Mas decidiu buscar de volta sua identidade 
        judaica. Sabia que ser judeu não era ostentar um sobrenome, um 
        status. Ser judeu estava dentro de si. Bastava-lhe desenvolver seu potencial.
 
 Queria ser como Einstein, claro, de acordo com suas limitações. 
        Seria bom naquilo que escolheu profissionalmente, mas não deixaria 
        de ser um humanista. Talvez viesse a freqüentar grupos de discussão 
        ou voltasse a estudar a cultura judaica. Queria voltar a fazer parte do 
        povo onde, segundo a Torá, cada um tem sua importância e 
        seu papel. Provavelmente não cumpriria as duzentas e poucas mitzvot 
        obrigatórias, mas sabia que tinha potencial para ser uma pessoa 
        melhor, mais útil de alguma maneira. Mesmo que não guardasse 
        o shabat à risca, usaria o sábado para refletir. Não 
        sabia se ia conseguir, ou se a rotina do banco e do consumo desenfreado 
        tomaria conta de sua mente de novo. Mas tentaria.
 
 Depois que sua perna melhorou, Iossef não apareceu mais em sua 
        vida. Pelo menos não na sua frente.
 
 O 
      PAPO DO DANIEL
 
 O 
      Daniel é um rapaz aí muito bonzinho, inclusive é meu 
      amigo, problema é quando começa a beber. Brincadeira. Na verdade 
      o Daniel é bom jornalista, leva o maior jeito como escritor e precisa 
      levar a sério essa carreira. Inclusive podia começar participando 
      dos Alcoólicos Anônimos.
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