Cláudio Fragata é escritor de histórias infantis, editor da revista Recreio e autor de "As Filhas da Gata de Alice Moram Aqui" (Editora Record). Mora em São Paulo com seus quatro siameses Fellini, Olívia, Dinah e Sofia.

O PATINADOR DO GELO SECO

A primeira vez, o rapaz patinava no parapeito da janela. Ernesto voltou-lhe as costas, mas pôde vê-lo executar alguns movimentos e com um salto ornamental tocar o chão do quarto.

Ao virar-se na cama, identificou o perfil da mulher recortado na madrugada. Respirava tranqüila. Abraçou-a e voltou a dormir.

Durante o café da manhã, lembrou do sonho e achou graça. Sonho ou visão? Preferiu não comentar nada. Marta estava de roupão e cara de quem não acordou ainda.

Assustou-se ao ver o rapaz no elevador, os patins pendurados nos ombros. Abaixou os olhos mais por hábito do que constrangimento. Seus sapatos brilhavam. Marta era mesmo uma boa esposa. De nada adianta vestir-se de linho ou casimira: com sapatos desengraxados, adeus elegância. Entrou no carro pensando em duplicatas.

Tudo normal no escritório. A secretária entrou e saiu da sala levando e trazendo papéis. Pouco antes do almoço, ela avisou pelo telefone:

-- Doutor Ernesto, tem uma pessoa insistindo em falar com o senhor, mas não quer se identificar. Diz que é um amigo.

-- Amigo?

Ernesto apertou o botão da linha 3.

-- Alô?

-- Estou ligando pra matar uma curiosidade. Você sabe patinar?

-- O quê? Quem está falando?

-- Sou eu. O rapaz da janela e do elevador. E aí? Sabe ou não sabe?

-- Mas que loucura é essa?

-- Não precisa responder agora. Volto a ligar outro dia. Tchau.

-- Espere. Alô? Alô?

Tentou dar um rumo natural à sua vida nos dias seguintes. Não funcionou. Daí em diante, tamborilava os dedos sobre a escrivaninha, digitava palavras absurdas no computador, fumava sem parar, mandava Marta calar a boca, pedia que as crianças ficassem longe dele. Ia se cansando de dar a mesma resposta - nada, estou bem - à mesma pergunta que Marta fazia mil vezes por dia - que há com você, amor?

Achou que estava enlouquecendo.

Um pesadelo passou a persegui-lo todas as noites. Patinava sobre as águas congeladas de um lago. Sentia o gelo fino, prestes a romper sob seus pés. Tentava fugir, mas a pista gelada não tinha fim. Uma névoa fria envolvia tudo e ele acordava com falta de ar.

O moço demorou a dar sinal. Quando deu, foi de repente, como das outras vezes.

Num domingo, de má vontade, Ernesto saiu com Marta e as crianças para jantar. Saco. Tudo o que fazia antes sem pensar, agora pesava feito cruz. Algumas mesas à frente, lá estava ele. Reconheceu-o pelos ombros. Poderia reconhecê-lo também pelo jeito de pousar o queixo na palma da mão ou pelo modo de sorrir apertando os olhos, mas o rapaz estava de costas e foi a primeira vez que Ernesto notou o quanto eram belos os seus ombros.

-- Olha aqui o cardápio não sei o que vocês pedirem está bom pode ser tanto faz ótimo fica quieto quem? a de vermelho? é, parece não eu, distante? impressão sua estou ótimo.

Magnetismo de imã. O que o atraía mais: o absurdo da situação ou os ombros do moço? Se descobrisse, talvez parasse de suar.

Aterrissou com as crianças beliscando-se e gritando diante dele. Esmurrou a mesa:

-- Pára, porra!

O restaurante inteiro olhou na sua direção. Marta agarrou as crianças e correu para o carro sem olhar dos lados. Ernesto esperou pela conta. As bebidas ainda balançando nos copos.

De longe, o rapaz convidou-o a se sentar, apontando o lugar vago ao lado dele.

Ernesto anulou dois cheques antes de preencher o terceiro com letra trêmula. Ao levantar-se, derrubou o guardanapo dobrado sobre os joelhos. Caminhou cego para a porta do restaurante.

Agora era obsessão. Mesmo depois de semanas, só uma coisa ocupava seu pensamento: o rapaz, o rapaz, o rapaz.

Acordou certa noite com um corpo aconchegado ao seu. Estranhou. Nos últimos tempos, Marta já nem falava com ele, usava as crianças como pombo-correio:

-- Pergunta pro seu pai se ele quer café.

Deslizou a mão pelo corpo ao lado.

O contato era bom, mas diferente. Pele lisa, mas dura. Cabelos curtos, nada de seios. Assustado, ergueu-se da cama. De um lado, o rapaz dormia sereno, do outro Marta sonhava. Só ele, no meio dos dois, tremia.

Então era assim? Pois também fingiria naturalidade. Louco é quem acredita na própria loucura. Voltou a dormir. Nas noites em que a história se repetiu, nem ligou. Acostumou-se a abraçar o rapaz e a respirar o cheiro dos seus cabelos. De manhã, acordava ao lado de Marta, sem jeito e confuso.

Com o tempo, o rapaz foi ficando para o café da manhã. Depois para o almoço, o jantar, partidas de buraco, festas de aniversário da família. Às vezes pegavam um cinema ou faziam viagens de fim-de-semana. Até o dia em que Marta arrumou as malas e foi com as crianças para a casa da mãe.

Deitado no sofá, Ernesto começou a fazer planos. Agora teria tempo para aulas de patinação.


O PAPO DO CLÁUDIO

O Cláudio é um grande amigo e excelente escritor infantil. Embora ele escreva para crianças, os adultos também merecem conhecer o seu trabalho. Daí eu ficar pentelhando o coitado, até ele me ceder esses contos... Pobre Cláudio.

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