A
primeira vez, o rapaz patinava no parapeito da janela. Ernesto voltou-lhe
as costas, mas pôde vê-lo executar alguns movimentos e com
um salto ornamental tocar o chão do quarto.
Ao virar-se na cama, identificou o perfil da mulher recortado na madrugada.
Respirava tranqüila. Abraçou-a e voltou a dormir.
Durante o café da manhã, lembrou do sonho e achou graça.
Sonho ou visão? Preferiu não comentar nada. Marta estava
de roupão e cara de quem não acordou ainda.
Assustou-se ao ver o rapaz no elevador, os patins pendurados nos ombros.
Abaixou os olhos mais por hábito do que constrangimento. Seus sapatos
brilhavam. Marta era mesmo uma boa esposa. De nada adianta vestir-se de
linho ou casimira: com sapatos desengraxados, adeus elegância. Entrou
no carro pensando em duplicatas.
Tudo normal no escritório. A secretária entrou e saiu da
sala levando e trazendo papéis. Pouco antes do almoço, ela
avisou pelo telefone:
-- Doutor Ernesto, tem uma pessoa insistindo em falar com o senhor, mas
não quer se identificar. Diz que é um amigo.
-- Amigo?
Ernesto apertou o botão da linha 3.
-- Alô?
-- Estou ligando pra matar uma curiosidade. Você sabe patinar?
-- O quê? Quem está falando?
-- Sou eu. O rapaz da janela e do elevador. E aí? Sabe ou não
sabe?
-- Mas que loucura é essa?
-- Não precisa responder agora. Volto a ligar outro dia. Tchau.
-- Espere. Alô? Alô?
Tentou dar um rumo natural à sua vida nos dias seguintes. Não
funcionou. Daí em diante, tamborilava os dedos sobre a escrivaninha,
digitava palavras absurdas no computador, fumava sem parar, mandava Marta
calar a boca, pedia que as crianças ficassem longe dele. Ia se
cansando de dar a mesma resposta - nada, estou bem - à mesma pergunta
que Marta fazia mil vezes por dia - que há com você, amor?
Achou que estava enlouquecendo.
Um pesadelo passou a persegui-lo todas as noites. Patinava sobre as águas
congeladas de um lago. Sentia o gelo fino, prestes a romper sob seus pés.
Tentava fugir, mas a pista gelada não tinha fim. Uma névoa
fria envolvia tudo e ele acordava com falta de ar.
O moço demorou a dar sinal. Quando deu, foi de repente, como das
outras vezes.
Num domingo, de má vontade, Ernesto saiu com Marta e as crianças
para jantar. Saco. Tudo o que fazia antes sem pensar, agora pesava feito
cruz. Algumas mesas à frente, lá estava ele. Reconheceu-o
pelos ombros. Poderia reconhecê-lo também pelo jeito de pousar
o queixo na palma da mão ou pelo modo de sorrir apertando os olhos,
mas o rapaz estava de costas e foi a primeira vez que Ernesto notou o
quanto eram belos os seus ombros.
-- Olha aqui o cardápio não sei o que vocês pedirem
está bom pode ser tanto faz ótimo fica quieto quem? a de
vermelho? é, parece não eu, distante? impressão sua
estou ótimo.
Magnetismo de imã. O que o atraía mais: o absurdo da situação
ou os ombros do moço? Se descobrisse, talvez parasse de suar.
Aterrissou com as crianças beliscando-se e gritando diante dele.
Esmurrou a mesa:
-- Pára, porra!
O restaurante inteiro olhou na sua direção. Marta agarrou
as crianças e correu para o carro sem olhar dos lados. Ernesto
esperou pela conta. As bebidas ainda balançando nos copos.
De longe, o rapaz convidou-o a se sentar, apontando o lugar vago ao lado
dele.
Ernesto anulou dois cheques antes de preencher o terceiro com letra trêmula.
Ao levantar-se, derrubou o guardanapo dobrado sobre os joelhos. Caminhou
cego para a porta do restaurante.
Agora era obsessão. Mesmo depois de semanas, só uma coisa
ocupava seu pensamento: o rapaz, o rapaz, o rapaz.
Acordou certa noite com um corpo aconchegado ao seu. Estranhou. Nos últimos
tempos, Marta já nem falava com ele, usava as crianças como
pombo-correio:
-- Pergunta pro seu pai se ele quer café.
Deslizou a mão pelo corpo ao lado.
O contato era bom, mas diferente. Pele lisa, mas dura. Cabelos curtos,
nada de seios. Assustado, ergueu-se da cama. De um lado, o rapaz dormia
sereno, do outro Marta sonhava. Só ele, no meio dos dois, tremia.
Então era assim? Pois também fingiria naturalidade. Louco
é quem acredita na própria loucura. Voltou a dormir. Nas
noites em que a história se repetiu, nem ligou. Acostumou-se a
abraçar o rapaz e a respirar o cheiro dos seus cabelos. De manhã,
acordava ao lado de Marta, sem jeito e confuso.
Com o tempo, o rapaz foi ficando para o café da manhã. Depois
para o almoço, o jantar, partidas de buraco, festas de aniversário
da família. Às vezes pegavam um cinema ou faziam viagens
de fim-de-semana. Até o dia em que Marta arrumou as malas e foi
com as crianças para a casa da mãe.
Deitado no sofá, Ernesto começou a fazer planos. Agora teria
tempo para aulas de patinação.
O
PAPO DO CLÁUDIO
O
Cláudio é um grande amigo e excelente escritor infantil.
Embora ele escreva para crianças, os adultos também merecem
conhecer o seu trabalho. Daí eu ficar pentelhando o coitado, até
ele me ceder esses contos... Pobre Cláudio.
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