Claudinei Vieira é escritor, roteirista e (tentativa de) poeta, professor de roteiro de cinema, resenhista de Literatura e Ciências Humanas em sites como IgLer, Paralelos, Desconcertos, Patife e Cronópios, entre outros. Tem artigos publicados na Folha de S. Paulo e um conto premiado pelo jornal O Estado de São Paulo. Sabe que nunca vai ficar rico com literatura, mas se conseguisse pagar a conta do padeiro já ficaria muito feliz.
UM DIA DE FÚRIA

A questão é que, de repente, a porra explode, a merda acontece. Assim. (se este texto for conectado com link interativo, você estará ouvindo um estalar de dedos).

Sem filosofias, sem falatório, sem nenhuns presidenciais nhem-nhem-nhems, nem sequer uma única razão válida, alguma desculpa. Somos feitos da mesma matéria que constitui os sonhos, com a mesma etereidade, o mesmo vácuo, idêntica subtaneidade. Culpa de ninguém, é simplesmente isso.
Douglas não pensa em nada disso (na verdade, nem sequer pensa), mas ele explode. Sai do carro parado no trânsito de horário de rush na Avenida Rebouças de onde não se mexera dez metros na ultima meia hora, piorada em cem por conta do calor desgraçado. O suor escorre, empapa a camisa, o terno, nunca teve dinheiro pra carro com frescuras indispensáveis, como um ar-condicionado, teto-solar, barzinho com gelo. Antes de prosseguir, é preciso especificar que Douglas não tem caráter violento, não provoca problemas, foge de brigas, nunca teve passagem na polícia; as pessoas, aliás costumam nem perceber que ele existe. Portanto, se algum conhecido de Douglas ("amigo" talvez seja uma palavra muito forte) estivesse presente naquele momento e o observasse sair do carro, começar a uivar e gritar, a dar chutes, uma, duas, dez vezes na porta, pegar uma pedra do chão e estilhaçar a vidraça, arrancar o espelho esquerdo e pisar em cima até destroçá-lo... bom, o mais provável é que este conhecido ficaria um tanto surpreso com a cena. Um pouco espantado também e até meio indignado: certas pessoas deveriam se ater à sua posição e não sair destruindo seus próprios carros desse jeito.
Digamos que, no momento, Douglas não esteja muito interessado em respeitar convenções sociais. O que ele quer é pegar sua pasta executiva que ficara no banco de trás, aproveitar para dar mais um chute na porta, e lembrar de dar um sorriso cínico para o conhecido ausente.
Agora, preste atenção, pois não vou repetir as seqüências. Neste caso, é uma confluência de três elementos, além deste nosso personagem nervosinho: dois ladrões e um policial se aproximam. Os três tinham presenciado a saída dele do carro, mas nenhum deles tinha se visto. Entende a situação? No instante em que o moleque de quatorze anos e o de quinze se chegaram pro baixinho, pensando na moleza de pegar o dinheiro, o relógio e o terno daquele maluco, se trombaram e começaram a brigar entre si, foi o MESMO instante que o Dinerval apareceu, empunhou o revólver, gritou "Polícia" e os enquadrou, no ato em flagrante. Todo contente, à noite, depois de comer a namorada e jantar na casa dos pais, deitar satisfeito com a vida e com o dia, só então Dinerval lembrou do babaca estranho que fugiu no meio do engarrafamento.

A briga teve o dom de assustar Douglas que até pensou em voltar pro carro. No entanto, sua mente teve a meia-volta interrompida ao perceber que algum deles tinha deixado cair um canivete. Portanto, o mesmo Douglas que nunca teve coragem sequer de dar um chute naquele gato chato da vizinha que insistia em mijar todo dia no canto do seu quarto, agora estava armado. Podia se defender. Podia até atacar. Podia, quem sabe, matar o gato. Ou a vizinha.

ATENÇÃO!

ATENÇÃO!, pois este é o búsilis em si, toda a merda cósmica em pura ação, como já disse um Howard Bulwer-Lytton em tempos idos. Pois na próxima esquina Douglas vai conseguir, da mesma forma inconsistente, um revólver 38 niquelado de coleção particular e não vai saber o que fazer com ele, sem balas. Uma hora mais tarde, vai sobrar uma escopeta militar com cano serrado e uma Mauser israelense com pouquíssimo uso. Vai terminar a noite com mais uma metralhadora e mais dois 38. Não terá matado ninguém, não terá destruído qualquer propriedade, não terá magoado nenhum membro do exército da salvação. Nada, nada.
Vai se humilhar para conseguir o carro de volta, continuará a ser maltratado pelos colegas de serviço, esnobado pela Darlene, chateado e mijado pelo gato da vizinha, mas estará armado! Impressionantemente armado.
Pra você ver como são as coisas.


O PAPO DO CLAUDINEI

O Claudinei e seu cachimbo já são figuras bem conhecidas de quem gosta de literatura aqui em São Paulo. O rapaz vive escrevinhando e agitando eventos culturais. Tem um romance pronto que está aperfeiçoando interminavelmente, e um site, o Desconcertos (www.desconcertos.com.br), com atrações várias, inclusive contos como esse, que com perdão de trocadilho, são desconcertantes. (Desculpaí, hein, Claudinei!).
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