A questão é que,
de repente, a porra explode, a merda acontece. Assim. (se este texto for
conectado com link interativo, você estará ouvindo um estalar
de dedos).
Sem filosofias, sem falatório, sem nenhuns presidenciais
nhem-nhem-nhems, nem sequer uma única razão válida,
alguma desculpa. Somos feitos da mesma matéria que constitui os
sonhos, com a mesma etereidade, o mesmo vácuo, idêntica subtaneidade.
Culpa de ninguém, é simplesmente isso.
Douglas não pensa em nada disso (na verdade, nem sequer pensa),
mas ele explode. Sai do carro parado no trânsito de horário
de rush na Avenida Rebouças de onde não se mexera dez metros
na ultima meia hora, piorada em cem por conta do calor desgraçado.
O suor escorre, empapa a camisa, o terno, nunca teve dinheiro pra carro
com frescuras indispensáveis, como um ar-condicionado, teto-solar,
barzinho com gelo. Antes de prosseguir, é preciso especificar que
Douglas não tem caráter violento, não provoca problemas,
foge de brigas, nunca teve passagem na polícia; as pessoas, aliás
costumam nem perceber que ele existe. Portanto, se algum conhecido de
Douglas ("amigo" talvez seja uma palavra muito forte) estivesse
presente naquele momento e o observasse sair do carro, começar
a uivar e gritar, a dar chutes, uma, duas, dez vezes na porta, pegar uma
pedra do chão e estilhaçar a vidraça, arrancar o
espelho esquerdo e pisar em cima até destroçá-lo...
bom, o mais provável é que este conhecido ficaria um tanto
surpreso com a cena. Um pouco espantado também e até meio
indignado: certas pessoas deveriam se ater à sua posição
e não sair destruindo seus próprios carros desse jeito.
Digamos que, no momento, Douglas não esteja muito interessado em
respeitar convenções sociais. O que ele quer é pegar
sua pasta executiva que ficara no banco de trás, aproveitar para
dar mais um chute na porta, e lembrar de dar um sorriso cínico
para o conhecido ausente.
Agora, preste atenção, pois não vou repetir as seqüências.
Neste caso, é uma confluência de três elementos, além
deste nosso personagem nervosinho: dois ladrões e um policial se
aproximam. Os três tinham presenciado a saída dele do carro,
mas nenhum deles tinha se visto. Entende a situação? No
instante em que o moleque de quatorze anos e o de quinze se chegaram pro
baixinho, pensando na moleza de pegar o dinheiro, o relógio e o
terno daquele maluco, se trombaram e começaram a brigar entre si,
foi o MESMO instante que o Dinerval apareceu, empunhou o revólver,
gritou "Polícia" e os enquadrou, no ato em flagrante.
Todo contente, à noite, depois de comer a namorada e jantar na
casa dos pais, deitar satisfeito com a vida e com o dia, só então
Dinerval lembrou do babaca estranho que fugiu no meio do engarrafamento.
A briga teve o dom de assustar Douglas que até
pensou em voltar pro carro. No entanto, sua mente teve a meia-volta interrompida
ao perceber que algum deles tinha deixado cair um canivete. Portanto,
o mesmo Douglas que nunca teve coragem sequer de dar um chute naquele
gato chato da vizinha que insistia em mijar todo dia no canto do seu quarto,
agora estava armado. Podia se defender. Podia até atacar. Podia,
quem sabe, matar o gato. Ou a vizinha.
ATENÇÃO!
ATENÇÃO!, pois este é o búsilis
em si, toda a merda cósmica em pura ação, como já
disse um Howard Bulwer-Lytton em tempos idos. Pois na próxima esquina
Douglas vai conseguir, da mesma forma inconsistente, um revólver
38 niquelado de coleção particular e não vai saber
o que fazer com ele, sem balas. Uma hora mais tarde, vai sobrar uma escopeta
militar com cano serrado e uma Mauser israelense com pouquíssimo
uso. Vai terminar a noite com mais uma metralhadora e mais dois 38. Não
terá matado ninguém, não terá destruído
qualquer propriedade, não terá magoado nenhum membro do
exército da salvação. Nada, nada.
Vai se humilhar para conseguir o carro de volta, continuará a ser
maltratado pelos colegas de serviço, esnobado pela Darlene, chateado
e mijado pelo gato da vizinha, mas estará armado! Impressionantemente
armado.
Pra você ver como são as coisas.
O
PAPO DO CLAUDINEI
O Claudinei e seu cachimbo já
são figuras bem conhecidas de quem gosta de literatura aqui em São
Paulo. O rapaz vive escrevinhando e agitando eventos culturais. Tem um romance
pronto que está aperfeiçoando interminavelmente, e um site,
o Desconcertos (www.desconcertos.com.br), com atrações várias,
inclusive contos como esse, que com perdão de trocadilho, são
desconcertantes. (Desculpaí, hein, Claudinei!). |