Carlos Eduardo de Magalhães nasceu em São Paulo em 1967. É autor dos livros "Os Jacarés" (Cosac&Naify) e "Mera Fotografia" (Rocco), entre outros. No prelo, os romances "Dora" e "O primeiro inimigo" devem ser lançados nos próximos meses.

ARMANDO

Quando nos disseram que o Armandinho ia se candidatar para vereador, eu disse, coitado do Armandinho, vai quebrar a cara, expor-se ao ridículo no programa eleitoral na televisão, gago que é, e logo pensei que não adiantava, tinha gente que nascia mesmo para ser tolo, que é quase a pior coisa que um sujeito pode ser nessa vida. Ele não quebrou a cara, o Armandinho, que depois de seis anos de mandato, uma reeleição tranqüila, elegeu-se deputado estadual, e deputado estadual outra vez, o Armandinho, ele mesmo, o Armandinho, aquele que a gente fazia de bobo a toda hora, que tinha de pagar sanduíche pra nós, que tinha de deixar nós ver pela fechadura as irmãs tomando banho, o Armandinho, que tacava umas punhetinhas pra nós, coisa à toa, nem era todo dia, e diz por aí que chupou a piroca de alguns de nós, mas isso eu não posso garantir a veracidade, não, nunca vi, e ninguém nunca viu, visto mesmo, com filmadora, que é o que conta. Quando me disseram que o Armandinho ia tentar ser prefeito, ri, dessas risadas que a gente ri poucas vezes na vida, que sente até os músculos do esôfago. Perto de nós, no bar em que nos encontrávamos todos os meses, o bar que nos via engordar, perder e ganhar cabelos com implante, rugas nos olhos, depois da luta diária de nossas vidas - prestações atrasadas, mulheres que nos enchiam o saco, filhos que nos enchiam o saco, patrões ou empregados que nos enchiam o saco - perto de nós tinha um homem que nos perguntou se era do Dr. Armando de quem ríamos. Virou doutor agora. Fiquei com vontade de contar pro sujeito das vezes em que o púnhamos no centro da roda e, numa espécie de coro em sussurro, ritmado qual torcida de futebol, Mija Armandinho, Mija Armandinho, Mija Armandinho, Mija Armandinho, até que o coitado se mijasse nas calças, pra nossa diversão. Aí dávamos tapas em suas costas, o aplaudíamos, acho que no fundo ele até gostava. E virou doutor agora.

Primeiro foi um que teve a licença da loja cassada, um segundo que foi despejado por aparecer uma dívida de imposto que ele nem sabia existir, depois outro que baixou fiscal e mandou demolir metade da casa, que estava irregular, e quando foi subornar, polícia e prisão. Eu fui despedido sem mais, e eu tinha 20 anos de empresa. Um a um caímos todos. Quando a secretária do patrão me disse, à boca pequena, no dia em que fui buscar uns papéis, que a prefeitura pedira a minha cabeça, aquilo do que desconfiávamos tornou-se uma certeza. Armandinho armou contra nós, nós, que o acolhemos na infância, nós, que tanto o defendemos dos garotos que queriam roubar ele de nós, Ele é nosso!, nós, que deixávamos ele jogar futebol, ainda que no gol, nós, que nunca batemos muito nele, nós, seus amigos! É menos, é menos, disse outro de nós, que parecia não prestar atenção, ensimesmado que estava, e todos nós calamos a boca no copo de chope, sem coragem de nos encararmos. Fizemos dele finalmente um homem, um de nós quebrou o silêncio, e brindamos a Armandinho. Orgulhosos.

Mês seguinte, quando nos encontramos no bar, cada um trazia em mãos o convite para um jantar na casa do prefeito. Era para ir de smoking, e até dava o endereço onde poderíamos pegar os trajes, alugados por cortesia do anfitrião. Era armação do Armandinho, sabíamos todos, porém ninguém nada disse e todos aceitamos. Achávamos que devíamos isso a ele. Um homem tem o direito de se vingar, e o Dr. Armando, prefeito e candidato cotado para disputar o governo do Estado, o fazia com competência. Sempre respeitamos gente competente, confesso que até me arrependia de nunca ter votado nele. Talvez não, e tivéssemos aceito o convite seduzidos pelo que tinha se tornado, esperançosos que nos perdoasse e nossas vidas, cada vez mais na merda, voltasse ao normal. Porém ninguém nada disse e todos aceitamos.

Que chegássemos às 22:00 hs, e todos juntos, o prefeito gostaria de rever velhos amigos. E fomos, com nossas mulheres, nossas esperanças escondidas, nossa curiosidade. Estavam todos de roupa casual, camisas com mangas dobradas, exceto nós, e os garçons. Nossas mulheres estavam à casamento, um dinheiro que não tínhamos gasto no cabeleireiro boiola, no costureiro efeminado. Éramos nós, e todos nos olhavam de lado, fingindo não olhar. Nossas mulheres tentavam se consolar, pedindo-nos para que fossemos embora. Um minuto de atenção, um minuto, oi, eu reuni vocês aqui hoje para um agradecimento, não ao senhor, nem ao senhor, nem à senhora, que tanto me ajudaram nesses anos todos, queria agradecer a esses senhores aí, abram um pouco a roda, sim, eu devo a eles tudo o que sou, não fossem eles que me abusaram, me maltrataram, que fizeram da minha infância um tormento, eu não estaria aqui hoje... E Armandinho continuou a falar, a falar, que até nossas mulheres começavam a nos olhar diferente. Dava pra ver que estavam com nojo de nós. Eu pensava apenas que ele podia ter deixado a cena pra depois do jantar, que devia ser chique à beça. Rico come bem. Armandinho tinha ficado rico. Comia bem, dava pra ver a morenaça que estava a seu lado. Se bem que corria por aí que era só pra fazer pose, não era chegado. Eu queria pedir desculpa aos senhores pelo desprazer de ter essas pessoas, que não foram convidadas, aqui na minha casa, e vocês sabem que não sou homem de levar desaforo pra casa, se bem que estou em casa - um ou outro senhor e senhora riram - e a presença deles, certamente para pedir algum favor, é um desaforo, por obséquio, retirem-se. Todos olhavam para nós, nossas mulheres escondiam o rosto umas nas outras, lágrimas sujavam a maquiagem. Quem quebrou o silêncio foi um de nós, ou outro de nós, já não me lembro bem. Mija Armandinho, Mija Armandinho, Mija Armandinho, Mija Armandinho. Coitado do Armandinho, começou a gaguejar, Mija Armandinho, Mija Armandinho, e não éramos só nós, e nossas mulheres, que nos repetiam com raiva, não, pude perceber outras vozes que não as nossas no coro. Mija Armandinho, Mija Armandinho, até que ele se mijasse, coisa que aconteceu mais rápido do que quando criança. Deve ter perdido a prática.

Chegamos em nossas casas rachadas cheias de dívidas e goteiras, com nossas mulheres já gastas, despimos elas daqueles vestidos chiques, molhamos seus corpos já deselegantes com as champanhes francesas das garrafas que nós levamos da festa. Bebemos e trepamos até pouco antes dos nossos filhos se levantarem. E rimos até distender o esôfago.

18 de junho de 2003


O PAPO DO CARLOS EDUARDO

Conheci o Carlos Eduardo quando ele deu um curso na Oficina da Palavra. Naquela época eu era cem por cento inédita, e tinha até medo de escritor publicado. Mas o Carlos Eduardo é gente fina e logo botou os alunos à vontade. A oficina foi uma delícia. Como escritor, ele sabe como poucos mostrar a estranheza contida nas coisas mais "normais" do mundo. É só ver o texto acima. E quando forem publicados, prestem atenção em "Dora" e no "Próximo Inimigo". Eu já tive o privilégio de ler, e recomendo.

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