Quando
nos disseram que o Armandinho ia se candidatar para vereador, eu disse,
coitado do Armandinho, vai quebrar a cara, expor-se ao ridículo
no programa eleitoral na televisão, gago que é, e logo pensei
que não adiantava, tinha gente que nascia mesmo para ser tolo,
que é quase a pior coisa que um sujeito pode ser nessa vida. Ele
não quebrou a cara, o Armandinho, que depois de seis anos de mandato,
uma reeleição tranqüila, elegeu-se deputado estadual,
e deputado estadual outra vez, o Armandinho, ele mesmo, o Armandinho,
aquele que a gente fazia de bobo a toda hora, que tinha de pagar sanduíche
pra nós, que tinha de deixar nós ver pela fechadura as irmãs
tomando banho, o Armandinho, que tacava umas punhetinhas pra nós,
coisa à toa, nem era todo dia, e diz por aí que chupou a
piroca de alguns de nós, mas isso eu não posso garantir
a veracidade, não, nunca vi, e ninguém nunca viu, visto
mesmo, com filmadora, que é o que conta. Quando me disseram que
o Armandinho ia tentar ser prefeito, ri, dessas risadas que a gente ri
poucas vezes na vida, que sente até os músculos do esôfago.
Perto de nós, no bar em que nos encontrávamos todos os meses,
o bar que nos via engordar, perder e ganhar cabelos com implante, rugas
nos olhos, depois da luta diária de nossas vidas - prestações
atrasadas, mulheres que nos enchiam o saco, filhos que nos enchiam o saco,
patrões ou empregados que nos enchiam o saco - perto de nós
tinha um homem que nos perguntou se era do Dr. Armando de quem ríamos.
Virou doutor agora. Fiquei com vontade de contar pro sujeito das vezes
em que o púnhamos no centro da roda e, numa espécie de coro
em sussurro, ritmado qual torcida de futebol, Mija Armandinho, Mija Armandinho,
Mija Armandinho, Mija Armandinho, até que o coitado se mijasse
nas calças, pra nossa diversão. Aí dávamos
tapas em suas costas, o aplaudíamos, acho que no fundo ele até
gostava. E virou doutor agora.
Primeiro foi um que teve a licença da loja cassada, um segundo
que foi despejado por aparecer uma dívida de imposto que ele nem
sabia existir, depois outro que baixou fiscal e mandou demolir metade
da casa, que estava irregular, e quando foi subornar, polícia e
prisão. Eu fui despedido sem mais, e eu tinha 20 anos de empresa.
Um a um caímos todos. Quando a secretária do patrão
me disse, à boca pequena, no dia em que fui buscar uns papéis,
que a prefeitura pedira a minha cabeça, aquilo do que desconfiávamos
tornou-se uma certeza. Armandinho armou contra nós, nós,
que o acolhemos na infância, nós, que tanto o defendemos
dos garotos que queriam roubar ele de nós, Ele é nosso!,
nós, que deixávamos ele jogar futebol, ainda que no gol,
nós, que nunca batemos muito nele, nós, seus amigos! É
menos, é menos, disse outro de nós, que parecia não
prestar atenção, ensimesmado que estava, e todos nós
calamos a boca no copo de chope, sem coragem de nos encararmos. Fizemos
dele finalmente um homem, um de nós quebrou o silêncio, e
brindamos a Armandinho. Orgulhosos.
Mês seguinte, quando nos encontramos no bar, cada um trazia em mãos
o convite para um jantar na casa do prefeito. Era para ir de smoking,
e até dava o endereço onde poderíamos pegar os trajes,
alugados por cortesia do anfitrião. Era armação do
Armandinho, sabíamos todos, porém ninguém nada disse
e todos aceitamos. Achávamos que devíamos isso a ele. Um
homem tem o direito de se vingar, e o Dr. Armando, prefeito e candidato
cotado para disputar o governo do Estado, o fazia com competência.
Sempre respeitamos gente competente, confesso que até me arrependia
de nunca ter votado nele. Talvez não, e tivéssemos aceito
o convite seduzidos pelo que tinha se tornado, esperançosos que
nos perdoasse e nossas vidas, cada vez mais na merda, voltasse ao normal.
Porém ninguém nada disse e todos aceitamos.
Que chegássemos às 22:00 hs, e todos juntos, o prefeito
gostaria de rever velhos amigos. E fomos, com nossas mulheres, nossas
esperanças escondidas, nossa curiosidade. Estavam todos de roupa
casual, camisas com mangas dobradas, exceto nós, e os garçons.
Nossas mulheres estavam à casamento, um dinheiro que não
tínhamos gasto no cabeleireiro boiola, no costureiro efeminado.
Éramos nós, e todos nos olhavam de lado, fingindo não
olhar. Nossas mulheres tentavam se consolar, pedindo-nos para que fossemos
embora. Um minuto de atenção, um minuto, oi, eu reuni vocês
aqui hoje para um agradecimento, não ao senhor, nem ao senhor,
nem à senhora, que tanto me ajudaram nesses anos todos, queria
agradecer a esses senhores aí, abram um pouco a roda, sim, eu devo
a eles tudo o que sou, não fossem eles que me abusaram, me maltrataram,
que fizeram da minha infância um tormento, eu não estaria
aqui hoje... E Armandinho continuou a falar, a falar, que até nossas
mulheres começavam a nos olhar diferente. Dava pra ver que estavam
com nojo de nós. Eu pensava apenas que ele podia ter deixado a
cena pra depois do jantar, que devia ser chique à beça.
Rico come bem. Armandinho tinha ficado rico. Comia bem, dava pra ver a
morenaça que estava a seu lado. Se bem que corria por aí
que era só pra fazer pose, não era chegado. Eu queria pedir
desculpa aos senhores pelo desprazer de ter essas pessoas, que não
foram convidadas, aqui na minha casa, e vocês sabem que não
sou homem de levar desaforo pra casa, se bem que estou em casa - um ou
outro senhor e senhora riram - e a presença deles, certamente para
pedir algum favor, é um desaforo, por obséquio, retirem-se.
Todos olhavam para nós, nossas mulheres escondiam o rosto umas
nas outras, lágrimas sujavam a maquiagem. Quem quebrou o silêncio
foi um de nós, ou outro de nós, já não me
lembro bem. Mija Armandinho, Mija Armandinho, Mija Armandinho, Mija Armandinho.
Coitado do Armandinho, começou a gaguejar, Mija Armandinho, Mija
Armandinho, e não éramos só nós, e nossas
mulheres, que nos repetiam com raiva, não, pude perceber outras
vozes que não as nossas no coro. Mija Armandinho, Mija Armandinho,
até que ele se mijasse, coisa que aconteceu mais rápido
do que quando criança. Deve ter perdido a prática.
Chegamos em nossas casas rachadas cheias de dívidas e goteiras,
com nossas mulheres já gastas, despimos elas daqueles vestidos
chiques, molhamos seus corpos já deselegantes com as champanhes
francesas das garrafas que nós levamos da festa. Bebemos e trepamos
até pouco antes dos nossos filhos se levantarem. E rimos até
distender o esôfago.
18
de junho de 2003
O
PAPO DO CARLOS EDUARDO
Conheci
o Carlos Eduardo quando ele deu um curso na Oficina da Palavra. Naquela
época eu era cem por cento inédita, e tinha até medo
de escritor publicado. Mas o Carlos Eduardo é gente fina e logo
botou os alunos à vontade. A oficina foi uma delícia. Como
escritor, ele sabe como poucos mostrar a estranheza contida nas coisas
mais "normais" do mundo. É só ver o texto acima.
E quando forem publicados, prestem atenção em "Dora"
e no "Próximo Inimigo". Eu já tive o privilégio
de ler, e recomendo.
|