Ana Meyer estudou Letras e Psicologia e é produtora cultural. Está escrevendo um livro de contos.

ENGARRAFAMENTO
Não, nunca. Nunca fugi de casa, nunca roubei um carro, nunca atirei no pianista, nunca fiz sexo com a mulher mais bonita da cidade, nunca com uma prostituta de 135 quilos. Minha vida? Impotência. Ejaculação precoce. Coito interrompido. Minha vida quase. Mas não a ponto de.
Eu só tinha a coleção de garrafas vazias e rolhas em ótimo estado. Se no começo por necessidade, com o tempo fui me aprimorando. O fato é que passei a engarrafá-los. Na primeira vez foi quase sem querer e eu que, não, nunca botei pra fora, botei pra fora, quer dizer, pra dentro da garrafa. Como? Não fiz faculdade de física. Na prova do vestibular tive falta de ar e me levaram pro pronto-socorro. Não, nunca mais prestei pra nada.
Foi bom. Eu vazio, a garrafa cheia. Na segunda vez quando percebi que ia acontecer corri e peguei uma garrafa. Uma semana depois eu não ia pra qualquer lugar que fosse sem levar uma garrafa vazia, a qualquer momento podia acontecer e eu não queria perdê-los.
Depois passei a provocá-los. A primeira vez com um martelo. Com o tempo fui desenvolvendo maneiras mais elaboradas. Eu olhava a minha estante de garrafas, eles lá dentro, eu que nunca. Um orgulho, sabe.
Uma vez me passou pela cabeça: e se além dos meus eu conseguisse engarrafar os de outra pessoa? Não, até ali, eu nunca criei nada, nunca tive idéias boas. Entrei num banheiro feminino, segurei a moça e exibi meu pênis. Não, não estava ereto. Não, não deu certo. Não, nem pensei em outra tentativa, depois disso eu constatei: era uma prática incompartilhável.
Será que dava pra ganhar dinheiro com isso, eu que nunca? Não, não dava. Aquilo era meu meio de vida, arte, religião, quem sabe genialidade.
Esta sala, a maior, era para as minhas estantes. As garrafas se multiplicavam, o senhor deve supor pela quantidade de cacos. Eu que nunca tive uma boa idéia, tive essa, péssima. É que eu sou alérgico a pó, a pó também, minha natureza é estruturalmente alérgica. E a coisa tomou uma proporção, a rinite pesada o sufoco da asma. Então a péssima idéia, chamei a faxineira. De máscara eu supervisionava: coisa rara delicada que se há de tocar com cautela toda minúcia é pouca. Faltavam quatro estantes quando. Por alguns segundos o tempo suspenso eu vi a garrafa escorregar da mão dela, estourou no chão e ele saiu. Foi igual seqüência de derrubar dominó. As garrafas explodiram uma a uma, centenas de gritos de todos os tipos naquele estrondoso e longo berro. Olha isso, nem meus óculos. Num raio de cem metros nenhum cachorro vivo.


O PAPO DA ANA BETH

Basicamente a Ana Beth é uma moça muito fina lá de Marília (SP), que escreve extremamente bem. Seus contos têm "insights" de psicóloga combinados com força poética à la Clarice Lispector, mais uma tremenda imaginação. Ah! Faltou dizer também que basicamente a Ana Beth é muito bonita. Ela vai ficar ótima numa orelha de livro!

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