Cumprindo a promessa ao seu público, nesta edição de outubro a Escrevinhadora inaugura uma nova seção, o "Escritor Convidado". Na estréia, chamamos a Amanda Vieira. A Amanda é dona do blog "Foi Engano" (http://engano.blogger.com.br/) e basicamente ela escreve bem pra xuxu. Leiam, comentem etecétera. Em edições posteriores traremos outros escritores amiguinhos da Escrevinhadora.

VOCÊ É LUZ

Os pés de Mariana eram só bolhas - quando estouradas viravam dança. As pernas de Mariana eram músculos rígidos - dedicados à delicadeza do balé clássico. O rosto, o olhar, a postura, tudo - ela se ensaiava calmamente numa tarde de chuva. Naquela tarde seca de rotina, as mãos de Mariana eram pose - mesmo fora da aula de dança.

- Um dedinho assim de açúcar. Pode ser?

Tomava o suco pelo canudinho, mordia o pão de queijo sem pressa. "Podia ser mais açúcar. Mais doce. Mais doce... Mais doce...".

- Não precisa gritar comigo!
- Você vai ficar quieta? Eu te fiz uma pergunta...
- Eu não quero responder.
- Só quero saber onde você estava. Não posso saber? Você sai sem avisar. Volta tarde. Onde você foi? Com quem?
- Eu não quero responder.
- Mas eu sou sua mãe! Será possível! Ninguém me respeita mais nessa casa?

Mordia o canudinho do suco, tomava mais um pão de queijo. "Pão frio e sem gosto. Frio e sem gosto... seco...".

- O que você quer ouvir?
- Como assim "o que você quer ouvir?!" Hein?
- Eu não quero responder.
- Eu te fiz uma pergunta! Exijo uma resposta!!
- Eu não quero responder.

O suco já estava na metade. Mordia o resto do pão de queijo com papel e tudo. Tirou pacientemente o guardanapo babado de dentro da boca.

- Mais açúcar, por favor. Pode ser?
- Tá saindo do regime, né?
- Pode ser...
- Aproveita e come um chocolate!
- Pode ser...

Ela colocou duas colheres e misturou com o canudinho. "Mistura, mistura, mistura... bem docinho... bem docinho...".

- Eu vou buscar o cigarro.
- A sua irmã não está fazendo nada. Ela tem que ir!
- Ela não quer ir.
- Mas ela tem que ir! Ela, não você!
- Ela não quer ir.

O garçom depositou um bombom na mesa de Mariana. Ela continuava mordendo o canudinho. O copo cheio de açúcar no fundo. O Bombom esperava ainda embrulhado. "Abrir ou não abrir? Não... não... não preciso de doce...".

- Mas eu quero.
- Hoje você não sai.
- Mas eu quero.
- Não discuta comigo.
- Mas eu quero.
- Pra quê? Você não precisa disso.

A porta de entrada da lanchonete já estava fechada. Alguns clientes ainda bebericavam café. Mariana apenas decorava o ambiente. Faltava um cliente. Mariana respirou fundo. "Abrir ou não abrir? Não... não... não preciso respirar...".

- Mas eu tenho apresentação no fim do ano!
- Só vinte dias. Passa rapidinho. O médico falou...
- Eu quero sair!
- Eu trouxe uns pijamas pra você.
- Eu quero sair!
- Vai ter que ficar calma. Você é paciente agora.

O pêlo da vassoura dançou no pé de Mariana. O pêlo não viu as bolhas. Nem a dança. Mas o Garçom viu a luz.

- Menina.
- Tudo bem. Eu já estou indo. Eu já estou indo...
- Fique mais um pouco.
- Pode?
- Não comeu o bombom? É por conta da casa.

O Garçom começou a abrir o bombom.

- Posso te fazer uma pergunta?
- Que pergunta?
- Por que uma menina bonita assim como você se veste de preto?
- É meu uniforme.
- As outras bailarinas se vestem de branco, de lilás, de amarelo, de azul...
- Não. Não foi isso o que eu quis dizer... Eu disse que é o meu uniforme, entende? Eu só tenho preto no meu guarda-roupa. É isso.
- Hum... Sei. Mas você ainda não me disse porque usa preto...
- Porque eu gosto. Não é um bom motivo?
- Mas preto é triste. Não combina com você.
- E então o que combina?
- Você devia usar roupa branca.
- É?
- Você já experimentou usar roupa branca?
- Olha... Faz muito tempo que eu não compro roupa branca. Muito tempo...
- Se eu te der uma camiseta branca de presente você usa?
- Talvez.
- Agora me diz: estava esperando alguém?

Mariana olhou pra porta fechada da lanchonete. O Garçom continuou falando. Ela permaneceu muda. Engoliu em seco. O Garçom continuou falando e ofereceu o bombom já desembrulhado para Mariana. Ela sorriu para a porta, colocou todos os olhos no bombom e... Abaixou a cabeça para não ser vista e nem ver ninguém. Segurou a testa para que os pensamentos não caíssem. Acabou virando o copo com açúcar no fundo e só então o Garçom pousou o bombom aberto na mesa e, com as mãos e os braços livres, abraçou Mariana com força.

- Se você quiser continuar usando preto, sem problemas.

Mariana sorriu.

- Nem adianta se esconder, menina. Olha aqui. Olha pra mim.

Mariana olhou.

- Não adianta disfarçar. Eu te conheço dos tempos de infância, das brincadeiras de esconde-esconde. Você se escondia nos lugares mais difíceis, e eu te encontrava menina, eu te encontrava antes de achar todas as outras crianças. Então eu piscava pra você, e ia procurar os outros amigos. Você eu encontrava por último sempre. Sempre. Esse era o nosso segredo. Certo?

Mariana tudo sentiu compreendendo apenas o suficiente. Recebeu com muita satisfação o outro abraço. Depois se rendeu ao bombom que o Garçom voltou a oferecer. Comeu com alguma dificuldade e terminou por lamber o embrulho de alumínio.

- Quando é que você vai me trazer a camiseta branca?

O Garçom estava arrumando as últimas cadeiras. Parou por um instante.

- Como é o seu nome menina?
- Mariana.
- Mariana, você é luz.

Os pés de Mariana eram só bolhas - quando estouravam, doíam. As pernas de Mariana eram músculos rígidos - prontos para chutar o que estivesse na frente. O rosto, o olhar, a postura, tudo - ela estava disposta a abandonar todos os ensaios. Naquela noite úmida que era o avesso da rotina, as mãos de Mariana se tornaram apenas as mãos de Mariana. Fora das aulas de dança, Mariana ousou planejar férias, inspirada numa camiseta branca que nunca viu e que nem sequer esperava receber.


O papo da Amandinha

Escritora, paulistana, 23 anos. Acredita em muitas coisas, menos em propaganda. Trabalha, mas nem sempre é remunerada. Já pintou o cabelo de azul, mas nunca passou um esmalte nas unhas. Enfim, ela é um sucesso!
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