Os pés de
Mariana eram só bolhas - quando estouradas viravam dança.
As pernas de Mariana eram músculos rígidos - dedicados à
delicadeza do balé clássico. O rosto, o olhar, a postura,
tudo - ela se ensaiava calmamente numa tarde de chuva. Naquela tarde seca
de rotina, as mãos de Mariana eram pose - mesmo fora da aula de
dança.
- Um dedinho
assim de açúcar. Pode ser?
Tomava o suco
pelo canudinho, mordia o pão de queijo sem pressa. "Podia
ser mais açúcar. Mais doce. Mais doce... Mais doce...".
- Não
precisa gritar comigo!
- Você vai ficar quieta? Eu te fiz uma pergunta...
- Eu não quero responder.
- Só quero saber onde você estava. Não posso saber?
Você sai sem avisar. Volta tarde. Onde você foi? Com quem?
- Eu não quero responder.
- Mas eu sou sua mãe! Será possível! Ninguém
me respeita mais nessa casa?
Mordia o canudinho
do suco, tomava mais um pão de queijo. "Pão frio e
sem gosto. Frio e sem gosto... seco...".
- O que você
quer ouvir?
- Como assim "o que você quer ouvir?!" Hein?
- Eu não quero responder.
- Eu te fiz uma pergunta! Exijo uma resposta!!
- Eu não quero responder.
O suco já
estava na metade. Mordia o resto do pão de queijo com papel e tudo.
Tirou pacientemente o guardanapo babado de dentro da boca.
- Mais açúcar,
por favor. Pode ser?
- Tá saindo do regime, né?
- Pode ser...
- Aproveita e come um chocolate!
- Pode ser...
Ela colocou
duas colheres e misturou com o canudinho. "Mistura, mistura, mistura...
bem docinho... bem docinho...".
- Eu vou buscar
o cigarro.
- A sua irmã não está fazendo nada. Ela tem que ir!
- Ela não quer ir.
- Mas ela tem que ir! Ela, não você!
- Ela não quer ir.
O garçom
depositou um bombom na mesa de Mariana. Ela continuava mordendo o canudinho.
O copo cheio de açúcar no fundo. O Bombom esperava ainda
embrulhado. "Abrir ou não abrir? Não... não...
não preciso de doce...".
- Mas eu quero.
- Hoje você não sai.
- Mas eu quero.
- Não discuta comigo.
- Mas eu quero.
- Pra quê? Você não precisa disso.
A porta de
entrada da lanchonete já estava fechada. Alguns clientes ainda
bebericavam café. Mariana apenas decorava o ambiente. Faltava um
cliente. Mariana respirou fundo. "Abrir ou não abrir? Não...
não... não preciso respirar...".
- Mas eu tenho
apresentação no fim do ano!
- Só vinte dias. Passa rapidinho. O médico falou...
- Eu quero sair!
- Eu trouxe uns pijamas pra você.
- Eu quero sair!
- Vai ter que ficar calma. Você é paciente agora.
O pêlo
da vassoura dançou no pé de Mariana. O pêlo não
viu as bolhas. Nem a dança. Mas o Garçom viu a luz.
- Menina.
- Tudo bem. Eu já estou indo. Eu já estou indo...
- Fique mais um pouco.
- Pode?
- Não comeu o bombom? É por conta da casa.
O Garçom
começou a abrir o bombom.
- Posso te
fazer uma pergunta?
- Que pergunta?
- Por que uma menina bonita assim como você se veste de preto?
- É meu uniforme.
- As outras bailarinas se vestem de branco, de lilás, de amarelo,
de azul...
- Não. Não foi isso o que eu quis dizer... Eu disse que
é o meu uniforme, entende? Eu só tenho preto no meu guarda-roupa.
É isso.
- Hum... Sei. Mas você ainda não me disse porque usa preto...
- Porque eu gosto. Não é um bom motivo?
- Mas preto é triste. Não combina com você.
- E então o que combina?
- Você devia usar roupa branca.
- É?
- Você já experimentou usar roupa branca?
- Olha... Faz muito tempo que eu não compro roupa branca. Muito
tempo...
- Se eu te der uma camiseta branca de presente você usa?
- Talvez.
- Agora me diz: estava esperando alguém?
Mariana olhou
pra porta fechada da lanchonete. O Garçom continuou falando. Ela
permaneceu muda. Engoliu em seco. O Garçom continuou falando e
ofereceu o bombom já desembrulhado para Mariana. Ela sorriu para
a porta, colocou todos os olhos no bombom e... Abaixou a cabeça
para não ser vista e nem ver ninguém. Segurou a testa para
que os pensamentos não caíssem. Acabou virando o copo com
açúcar no fundo e só então o Garçom
pousou o bombom aberto na mesa e, com as mãos e os braços
livres, abraçou Mariana com força.
- Se você
quiser continuar usando preto, sem problemas.
Mariana sorriu.
- Nem adianta
se esconder, menina. Olha aqui. Olha pra mim.
Mariana olhou.
- Não
adianta disfarçar. Eu te conheço dos tempos de infância,
das brincadeiras de esconde-esconde. Você se escondia nos lugares
mais difíceis, e eu te encontrava menina, eu te encontrava antes
de achar todas as outras crianças. Então eu piscava pra
você, e ia procurar os outros amigos. Você eu encontrava por
último sempre. Sempre. Esse era o nosso segredo. Certo?
Mariana tudo
sentiu compreendendo apenas o suficiente. Recebeu com muita satisfação
o outro abraço. Depois se rendeu ao bombom que o Garçom
voltou a oferecer. Comeu com alguma dificuldade e terminou por lamber
o embrulho de alumínio.
- Quando é
que você vai me trazer a camiseta branca?
O Garçom
estava arrumando as últimas cadeiras. Parou por um instante.
- Como é
o seu nome menina?
- Mariana.
- Mariana, você é luz.
Os pés
de Mariana eram só bolhas - quando estouravam, doíam. As
pernas de Mariana eram músculos rígidos - prontos para chutar
o que estivesse na frente. O rosto, o olhar, a postura, tudo - ela estava
disposta a abandonar todos os ensaios. Naquela noite úmida que
era o avesso da rotina, as mãos de Mariana se tornaram apenas as
mãos de Mariana. Fora das aulas de dança, Mariana ousou
planejar férias, inspirada numa camiseta branca que nunca viu e
que nem sequer esperava receber.
O
papo da Amandinha
Escritora,
paulistana, 23 anos. Acredita em muitas coisas, menos em propaganda. Trabalha, mas nem sempre é remunerada. Já pintou
o cabelo de azul, mas nunca passou um esmalte nas unhas. Enfim, ela é um sucesso! |