Oito horas da manhã, o despertador: "Desperta!
Desperta! Desperta!" Medéia acorda e cala o anunciador do
dia. Os lençóis, o travesseiro e a cama lhe insinuam: "Fica".
O criado mudo se contrapõe: "Mulher, erga-te e vivas."
Levanta-se. Espreguiça-se. Vai ao banheiro. Senta-se no vaso sanitário
que lhe diz: "Bom dia." Não responde, a cabeça
está vazia. Gotas d'água do fundo do vaso tocam-lhe as nádegas.
Sensação incômoda. Apanha o papel higiênico.
Seca-se. Limpa-se. Dá a descarga e ouve do polido sanitário:
"Até logo." Resolve tomar banho e o chuveiro num jato
de água fria: "Acorda!" Treme e a água cai quente.
Ensaboa-se. Enxágua-se. Fecha o chuveiro que lhe pergunta: "Acordou?"
Nada diz. Enxuga-se. Vai pentear os cabelos e o espelho a provoca: "Espelho,
espelho meu, existe alguém mais bonita do que eu?" Não
responde, apenas penteia-se, veste-se e escova os dentes. Quando abre
o armário para guardar a escova e observa, distraída, remédios
e cosméticos, vem do fundo uma voz: "Não adianta tomar
mercúrio-cromo para curar as dores de dentro".
Na sala, o telefone toca. Sai às pressas do
banheiro e ao passar pelo corredor ouve dele uma recomendação:
"Devagar, não corre!" Chega à sala. Apanha o telefone,
já era tarde. Ao atender ouve apenas o som: "Ninguém.
Ninguém. Ninguém." O sofá sugere: "Senta!"
Não se senta. Perplexa, olha na estante o rádio e a TV que
estão desligados, porém falam em coro: "Um mundo todo
vivo tem a força de um Inferno". Fixa os olhos num quadro
de natureza morta que lhe pede: "Ressuscita-me!" Olha para a
outra parede onde se encontra o relógio que lhe diz: "Depressa,
a hora está passando! Você está mais próxima
do caixão que do berço. Carpe Diem! Carpe Diem! Carpe Diem!"
Medéia refugia-se na cozinha, uma xícara
que a espia do aparador sugere: "Que tal um chá para acalmar-se".
Estuda a hipótese, mas dá preferência ao café.
Na prateleira, pega a chaleira e coador. Ao abrir a torneira para encher
a chaleira, escuta: "Não beberás desta mesma água
amanhã." Coloca a água para ferver. Abre a gaveta que
lhe diz: "Você gostaria de uma colher de chá?"
A mulher sequer pensa no sentido, talvez irônico, do que a gaveta
quer lhe dizer e, em silêncio, agarra a colher de sopa. A água
ferve. Coloca pó no coador e despeja a fervura. Enquanto o líquido
desce, o coador lhe fala: "Veja como algumas coisas passam e outras
ficam". Concorda com essa constatação e, ao olhar os
vasos de plantas, as violetas lhe perguntam: "Como é que se
faz pra colher a flor da pele sem dor?" Pensa um pouco e, mais uma
vez, não sabe responder. Toma o café sem açúcar
ou amargor. Na porta da geladeira se lê: JASÃO E AS CRIANÇAS
VIRÃO PARA ALMOÇAR. Sem mais, o fogão traduz os pensamentos
dela numa só frase: "O inferno são os outros."
Meio-dia, o arroz cozinha. Por alguns instantes há
o silêncio de todos os demônios domésticos, porém
esta quietude é quebrada pela panela que diz: "Chama-me Natureza
ou Pandora, sou tua mãe e tua inimiga." Medéia abre-a,
coloca sal e estricnina na comida. Põe a mesa e aguarda a chegada
dos seus.
O
PAPO DO VINÍCIUS
O Vinícius Canhoto, além de escritor, é
historiador. Deve ser por isso que se inspira na mitologia grega em muitas
coisas que escreve. O rapaz mora em Santo André, é professor,
escreve muito bem e tem vários planos para dominar o mundo. O tipo
de gente que eu gosto. Valeu a colaboração, Vinícius.
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