Vinícius Canhoto tem 25 anos e vive em Santo André, SP. É estudante de Filosofia e professor da rede pública do estado de São Paulo. Tem uma coletânea de contos inédita - "Inferno riscado a giz" - e outra em elaboração - o "Livro do Esquecimento".
OS DEMÔNIOS DOMÉSTICOS DE MEDÉIA

Oito horas da manhã, o despertador: "Desperta! Desperta! Desperta!" Medéia acorda e cala o anunciador do dia. Os lençóis, o travesseiro e a cama lhe insinuam: "Fica". O criado mudo se contrapõe: "Mulher, erga-te e vivas." Levanta-se. Espreguiça-se. Vai ao banheiro. Senta-se no vaso sanitário que lhe diz: "Bom dia." Não responde, a cabeça está vazia. Gotas d'água do fundo do vaso tocam-lhe as nádegas. Sensação incômoda. Apanha o papel higiênico. Seca-se. Limpa-se. Dá a descarga e ouve do polido sanitário: "Até logo." Resolve tomar banho e o chuveiro num jato de água fria: "Acorda!" Treme e a água cai quente. Ensaboa-se. Enxágua-se. Fecha o chuveiro que lhe pergunta: "Acordou?" Nada diz. Enxuga-se. Vai pentear os cabelos e o espelho a provoca: "Espelho, espelho meu, existe alguém mais bonita do que eu?" Não responde, apenas penteia-se, veste-se e escova os dentes. Quando abre o armário para guardar a escova e observa, distraída, remédios e cosméticos, vem do fundo uma voz: "Não adianta tomar mercúrio-cromo para curar as dores de dentro".

Na sala, o telefone toca. Sai às pressas do banheiro e ao passar pelo corredor ouve dele uma recomendação: "Devagar, não corre!" Chega à sala. Apanha o telefone, já era tarde. Ao atender ouve apenas o som: "Ninguém. Ninguém. Ninguém." O sofá sugere: "Senta!" Não se senta. Perplexa, olha na estante o rádio e a TV que estão desligados, porém falam em coro: "Um mundo todo vivo tem a força de um Inferno". Fixa os olhos num quadro de natureza morta que lhe pede: "Ressuscita-me!" Olha para a outra parede onde se encontra o relógio que lhe diz: "Depressa, a hora está passando! Você está mais próxima do caixão que do berço. Carpe Diem! Carpe Diem! Carpe Diem!"

Medéia refugia-se na cozinha, uma xícara que a espia do aparador sugere: "Que tal um chá para acalmar-se". Estuda a hipótese, mas dá preferência ao café. Na prateleira, pega a chaleira e coador. Ao abrir a torneira para encher a chaleira, escuta: "Não beberás desta mesma água amanhã." Coloca a água para ferver. Abre a gaveta que lhe diz: "Você gostaria de uma colher de chá?" A mulher sequer pensa no sentido, talvez irônico, do que a gaveta quer lhe dizer e, em silêncio, agarra a colher de sopa. A água ferve. Coloca pó no coador e despeja a fervura. Enquanto o líquido desce, o coador lhe fala: "Veja como algumas coisas passam e outras ficam". Concorda com essa constatação e, ao olhar os vasos de plantas, as violetas lhe perguntam: "Como é que se faz pra colher a flor da pele sem dor?" Pensa um pouco e, mais uma vez, não sabe responder. Toma o café sem açúcar ou amargor. Na porta da geladeira se lê: JASÃO E AS CRIANÇAS VIRÃO PARA ALMOÇAR. Sem mais, o fogão traduz os pensamentos dela numa só frase: "O inferno são os outros."

Meio-dia, o arroz cozinha. Por alguns instantes há o silêncio de todos os demônios domésticos, porém esta quietude é quebrada pela panela que diz: "Chama-me Natureza ou Pandora, sou tua mãe e tua inimiga." Medéia abre-a, coloca sal e estricnina na comida. Põe a mesa e aguarda a chegada dos seus.


O PAPO DO VINÍCIUS

O Vinícius Canhoto, além de escritor, é historiador. Deve ser por isso que se inspira na mitologia grega em muitas coisas que escreve. O rapaz mora em Santo André, é professor, escreve muito bem e tem vários planos para dominar o mundo. O tipo de gente que eu gosto. Valeu a colaboração, Vinícius.

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