Richard Diegues é escritor e fundador da editora "Tarja Editorial" (www.tarjaeditorial.com.br). É autor do livro "Magia - Tomo I" e co-autor dos Livros "Visões de São Paulo - Ensaios Urbanos", "Necrópole II - Histórias de Fantasmas" e "Necrópole I - Histórias de Vampiros". Responsável pelo portal do Círculo de Crônicas (www.circulodecronicas.com) e colaborados de diversos sites pela Internet. Nas horas vagas pode ser encontrado perambulando, lendo e escrevendo, pelos bares de São Paulo.
CRUZANDO O RIO

Todo trabalho fácil acaba mostrando um contraponto pesaroso.
O que dizer de um que nitidamente é fácil demais?
Existem momentos em que nem todo dinheiro do mundo serve de contrapeso ao risco.
Aceitar ou se livrar dos riscos?
Qual escolha nós devemos tomar? Sempre a mais direta.

A garçonete pigarreou e apontou para uma mesa, nos fundos do salão. Sobre a mesa, uma bandeja com ovos mexidos, tiras de bacon e grossas fatias de presunto frito, ao lado, uma cesta com pães e uma jarra de café.
– Não como pela manhã, mas aceito o café – falei, sentando em frente à mulher, apanhando uma xícara. Nunca recuso café. No geral, também não recuso dinheiro fácil.
– É bom estar de estômago cheio – respondeu a mulher, fazendo um buraco em um pão, com suas compridas unhas vermelhas, e enchendo o buraco com os ovos e pedaços de carne – nunca se sabe quando virá a próxima refeição. Nunca teve que fugir? Se esconder?
Pensei um pouco e concordei com a cabeça. Automaticamente peguei uma torrada.
– E você está fugindo agora, certo? E quer minha proteção até a fronteira?
– Me ajude a chegar no Paraguai. Pago o combinado e ainda um extra. Só preciso cruzar o rio. Está perto agora – disse, deixando pedaços de ovo caírem pelo queixo.
Olho para ela e a analiso. Roupa elegante. Jóias verdadeiras e caras. Unhas bem tratadas. Cabelo lembrando salões caros. Rugas visivelmente esticadas em clínicas. Mulher fina. No entanto o ovo pendurado em seu queixo e a gordura nos dedos contradiz isso. Meu instinto diz que devo pular fora. Vejo um furo minando água neste barco.
– Marido? – pergunto, analisando sua expressão por cima de minha xícara de café.
– De certa forma, posso dizer que é isso. E está atrás de mim.
– E o que a faz pensar que ele pararia de persegui-la? A fronteira é livre.
– Escute. Tenho uma fortuna me esperando. Pode me considerar louca ou qualquer coisa assim, mas ele não cruzaria o rio. Pago o triplo do combinado. Preciso cruzar o rio e estarei livre dele – respondeu em tom de confidência. – É dinheiro fácil. Você não tem como rejeitar minha oferta.

Olho para os dois lados enquanto abro a braguilha. Aprendi a duras penas que não dá pra se defender quando se está urinando, por isso sempre me cuido. Não há ninguém no banheiro. Relaxo e deixo o café fazer seu trabalho. Enquanto miro a latrina, vejo minha sombra nela. Ao seu lado, uma outra aparece. Respiro fundo e finjo que não há nada estranho. Quero parar de urinar, mas minha bexiga não concorda com isso.
– Sabe quem eu sou? – voz seca e rouca, combinando com o cheiro de charuto.
– Sim, senhor. Imagino que seja o marido dela. Ou quase.
– Exatamente. Ou quase.
– Entendo. Percebi que algo não ia bem, assim que ela me falou do rio. Não é algo lógico, não é verdade? Digo, um rio não costuma deter as pessoas, não é?
– Sim, mas pouca gente entenderia. Rapaz, você precisa parar de tomar tanto café. Mija mais que um cavalo.
– É bom dar uma boa mijada antes de morrer. Já vi muita gente que se borrou todo depois de morto. É deprimente. As coisas ficam meio que soltas, entende?
Ele dá uma risada baixa. Sinto um arrepio espocando no corpo, sem localização exata.
– Você não vai morrer. Pelo menos, não vou matá-lo. Você foi esperto em não levar minha mulher para além da fronteira. O lugar dela é aqui, desse lado. Do meu lado.
– Sim, senhor – respondi aliviado, ouvindo o barulho do fósforo e sentindo o aroma do charuto se misturando com o fedor do banheiro.
– Bem, é justo que tenha a sua paga.
Ouvi um tilintar de metal e abri os olhos – que nem havia notado ter fechado – fitando a latrina a minha frente. Três moedas douradas – eu tinha certeza que eram de ouro, sem nem precisar tocá-las – reluziam na minha urina. Pensei em dizer algo e então mais três foram jogadas junto as outras, respingando urina em minhas calças.
– E essas são para que limpe a bagunça lá fora decentemente. Da próxima vez, tenha mais sutileza, rapaz. Devia tê-la levado para a estrada. Assim não precisaria ter matado a garçonete e o cozinheiro – ele riu novamente e foi mais desconfortável ainda dessa vez – mas você aprende. Vamos nos dar bem. Foi esperto em se livrar dela antes que eu chegasse até vocês. E acredite: eu chegaria. Lave as mãos quando sair. Enterre os corpos longe da estrada. Quero que a traidora permaneça aqui: deste lado do rio. Do meu lado do rio. A gente se vê.
Ouvi a porta rangendo ao ser aberta e bater após ele ter saído. Nenhum passo, mas eu realmente não esperava que houvesse algum. Permaneci parado, durante vários minutos, segurando meu membro já seco, olhando para o ouro no fundo da latrina. Então acordei, como quem desperta de um sonho ruim. Peguei as moedas, lavei as mãos e corri para enterrar os corpos. Tinha pressa. Precisava atravessar um rio. Afinal, não creio que alguém realmente possa “se dar bem” com aquele sujeito. 


O PAPO DO RICHARD

O Richard Diegues é meu coleguinha de "Necrópole II", uma coletânea de contos de terror muito legal que foi lançada no começo desse ano. É também um escritor que faz literatura fantástica pra leitores inteligentes. Ah! e também é de Santos, o que não o impede de editar agora uma outra coletânea, chamada "Visões de São Paulo", da qual eu modestamente participo. Enfim, o Richard é bala.

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