ISAIAS EDSON SIDNEY, assim mesmo, o nome completo, de três nomes formado. Sem erro de cartório. Coisa de mineiro, em Lavras nascido. Do colegial, a paixão pela poesia. Da Faculdade de Letras (USP), a compulsão por escrever: contos, crônicas,poemas, romances e peças de teatro. Da missão de professor, a obsessão, às vezes inibidora, pelo texto, pela forma, mas também pelo inusitado. Só.
OS SEIOS DE SHARON STONE

Cinéfilo de carteirinha, não perdia um só filme de Hollywood. Lia, recortava, guardava tudo sobre Hollywood. História, atores, atrizes, diretores, roteiristas, produtores, técnicos. No cinema, era o último a
sair, a ler a longa ficha técnica de cada filme. Vida social, nenhuma: era emprego, casa e cinema. Do salário, cada centavo jogado na paixão. O engraçado, no caso de Rodolfo (o nome desde o batismo a antecipar a tara porcinema, por Hollywood), o engraçado é que não sonhava ir aos Estados Unidos ou encontrar seus ídolos. Recobria as paredes do velho sobrado, herança dos pais, com fotos e cartazes dos filmes, dos astros, das estrelas, numa cidade de papel e sonho. E lá vivia.
Mas ficou realmente maluco, de quase ser internado, quando assistiu Basic Instinct, com  Sharon Stone. Já a conhecia, claro. Já havia visto outros filmes com ela, claro. Mas esse o deixou fora de si, totalmente ensandecido pela beleza da moça.. Não tanto o impressionara a famosa cruzada de pernas, o entrevisto triângulo que deixara, mundo afora, muito marmanjo a estrebuchar de desejo. Não. Impressionara-o aquilo que o filme apenas insinuara e ele apenas imaginara: os seios de Sharon Stone. 
A ver e rever o filme, perdeu a conta das vezes em que mergulhou naquele colo. Em sonhos e alucinações de quase não voltar. Ganhou ares de Norman Bates com olhos fundos do Vampiro Lestat. Sonhava acordado e acordava sonhando com os seios de Sharon Stone.
Drogas, diagnosticaram os colegas; vai  perder o emprego, concluíram os poucos amigos. E internaram-no numa clínica de recuperação de drogados. Mas eles não sabiam nem podiam nunca imaginar, e ele jamais confessaria, que sua droga eram os seios de Sharon Stone.
Sarou. Ou melhor, superou. Voltou à vida normal. Continuava, no entanto, tarado por filmes de Hollywood. Só de Hollywood. Com um detalhe: nunca mais viu outro filme com a atriz de seus sonhos e pesadelos, recusava-se a ler qualquer matéria em que ela estivesse, não falava nunca em seu nome. Mas, em nenhum dia, nesses últimos catorze anos depois que vira Basic Instinct, em nenhum momento, ele deixou de sonhar com os seios de Sharon Stone.
Envelhecia, mais do que os outros. Com trinta e seis anos, cabelos brancos, rosto macerado, mãos enrugadas, articulações endurecidas, andar trêfego, olhos baços, era velho, muito velho. Amigos, os poucos que ainda falavam com ele, insistiam: vá ao médico, vá ao médico. Mas Rodolfo sabia que seu mal era incurável: morria a cada dia um pouco por obsessivamente imaginar como seriam os seios de Sharon Stone.
E então, numa manhã, arrastando-se para o trabalho, andar cabisbaixo, num átimo de sonho, os olhos iluminaram a foto enorme, capa central da revista: Basic Instinct 2. E lá estava ela, a inominada, o sorriso amplo, e os seios, os seios brancos claramente delineados sob a camisa preta e transparente, os
seios enfim na tela de cinemascope, em technicolor. Os seios de Sharon Stone.
As pernas tremeram, os olhos nublaram, o chão se abriu. E Rodolfo mergulhou nos seios de Sharon Stone.
Acordou na cama de um hospital público, numa enfermaria lotada. Gente de branco acudia gemidos, estancava hemorragias, auscultava corações, engessava pernas, limpava feridas. E ele ali, só, inútil, trapo jogado ao leito, pedaço de película rasgada,. Mal sentia o próprio corpo, os membros frágeis.
Tentou um gesto, tentou uma lembrança: nada. A mente, tela vazia, oca, filme sem diretor, sem atores, sem enredo, sem efeitos especiais. Nada. Tentou gritar, mas o filme era mudo. Só lhe restavam os olhos a filmar em vinte e quatro quadros por minuto aquela gente estranha. Desistiu de entender, desistiu de si. Olhou para cima, o teto de sombras e luzes. Aos poucos, formaram-se nuvens, depois rostos, em seguida cenários. E de repente, a visão, como noite americana: as paredes do esquecido e distante sobrado, ali. Projetados, cartazes e mais cartazes e, entre cowboys, guerreiros, anões, figurantes de mil filmes, anônimos e loucos, o contorno de um seio, depois o outro. Os bicos róseos, a auréola suave sobre a pele alva, levemente arqueados, arfantes e belos, seios de deusa ou ninfa. E mostravam-se para ele, e ofereciam-se para ele, duas taças transbordantes de sonho e néctar, os seios de Sharon Stone.
Mas Rodolfo não se lembrava mais de quem seriam e não tinha a mínima idéia de porque, ali, naquele ambiente confuso e difuso, de dor e desamparo, ele, um desconhecido até para si mesmo, desvalido e desgraçado, via, ali, naquela tela branca, em cinemascope e technicolor, como a mais bela visão que um homem pode ter na hora derradeira, no fotograma recuperado e nítido, a imagem de um par de seios.


O PAPO DO ISAÍAS

Conheci o Isaías na época em que pretendia escrever pra teatro. Desisti logo, porque no teatro não posso fazer o que mais gosto: contar histórias. O Isaías sim, é um grande teatreiro (já ganhou até prêmio de dramaturgia). E além disso sabe contar histórias. Um prodígio, o homem!

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