A vida de perto é uma tragédia, de longe é uma comédia.
Charles Chaplin, ator e diretor de cinema
ENIGMÁTICO RECADO

Garcia não era sargento, mas ganhou esse apelido por causa da avantajada barriga que o tornava bastante parecido com o personagem do gibi e dos filmes. Estava mal-humorado, talvez porque fosse sexta-feira, dia treze. Já passava de dezenove horas, quando chegou em casa. Ele trabalhava bem próximo. Encontrou a mulher emburrada. Não deu muita importância a esse detalhe. Tirou o uniforme de frentista de um posto de gasolina perto de sua residência e vestiu uma roupa esporte. Trocou o tênis por um sapato social.
- Aonde você vai? Perguntou a mulher, ríspida e com cara de poucos amigos.
- Não interessa! Respondeu Garcia no mesmo tom de voz, desafiando a mulher, que permaneceu em silêncio. Porém, refletiu melhor e resolveu explicar-lhe, com uma ingênua mentira:
- Vou encontrar com alguns amigos para tomarmos uma cerveja. Um companheiro foi demitido e vamos fazer uma despedida. Está desanimado e pretende retornar à sua cidade natal, no interior de São Paulo. Mas volto logo.
A mulher continuou calada.
Ouvia-se ao longe um som alegre de chá-chá-chá. Garcia apressou o passo, entrou no salão de baile e ali ficou, dançando, até às vinte e duas horas. O baile ia até as quatro da manhã, mas resolveu voltar para casa, tentar fazer as pazes com a mulher. Quem sabe até poderia rolar um pouco de sexo, a sensual morena com quem dançara o deixara excitado. No entanto, uma bela surpresa foi o que encontrou.
A luz da cozinha estava acesa. Ao entrar não encontrou ninguém. Dirigiu-se ao quarto que estava iluminado apenas pelo abajur, porém, podia ver claramente, não era ilusão de ótica: seu vizinho, que por sinal tinha o apelido de Zorro, e não era por acaso, estava pelado na sua cama, e usava uma indefectível máscara negra cobrindo parcialmente o rosto. Dessas que vendem no sex shop.  Sua mulher, para seu espanto, também estava nua, deitada na cama do casal e, não podia acreditar, ela também usava uma sensual máscara feminina.
Garcia, meio atrapalhado e nervoso, não sabia o que fazer, que atitude tomar. Pensou em uma arma, mas não tinha nenhuma. Sua vontade era gritar e pular em cima do Zorro, ou da mulher-gato. Esmurrá-los!
Na dúvida, preferiu não tomar nenhuma atitude. Já que os dois não perceberam sua presença, entretidos que estavam com as brincadeiras e safadezas sexuais, de costas, afastou-se em direção à cozinha.
Abriu a primeira gaveta do armário e pegou uma faca grande, bem afiada, daquelas que são utilizadas para fatiar picanha. Por longos minutos observou o brilho da lâmina.
Simulando esfaquear alguém invisível, começou a fazer gestos teatrais. Como um psicopata alisou o corte com o dedo indicador provocando um ferimento. Uma mancha de sangue ficou na lâmina.
O pobre Garcia nada disse, nem poderia, estava sozinho na cozinha. Tampouco estava louco, ainda, para conversar com ele mesmo. 
O que se passa na mente de um homem traído? Ainda mais se a traição vem pelos atos de sua própria mulher, em sua própria casa? Por mais força que fizesse, seu cérebro não respondia, estava letárgico.
Tentando parar o curso das grossas gotas de suor, passou a mão pela testa. Uma idéia acabou surgindo espontaneamente: precisava deixar um claro e transparente recado ao traidor, ou talvez até um enigmático aviso. Nem sabia o porquê do apelido Zorro. Haveria alguma relação com o seu próprio apelido, Sargento Garcia? Há quanto tempo estava sendo traído? 
Largou a enorme faca manchada com seu próprio sangue sobre a mesa da cozinha e saiu às pressas, retornando ao baile onde ficaria até às quatro horas da madrugada, dançando com a mesma dama, a bela e sensual morena.

  Hildebrando Pafundi é escritor e jornalista, autor dos livros
Tramas & dramas da vida urbana
(contos), entre outros.
Membro da Academia de Letras da Grande São Paulo.


O PAPO DO HILDEBRANDO

Conheci o Hildebrando quando fui dar uma oficina lá em São Bernardo, no Espaço Troca-Livros da Prefeitura Municipal. Quietinho, quietinho, o Hildebrando é ótimo contista e gente fina, podem crer. Além do mais, jornalista veterano, é fonte de primeira para quem quiser recuperar o passado do ABC.

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