Fernando de Freitas Leitão Torres escreveu um roteiro que espera ser filmado em breve, uma peça de teatro pela metade, e cerca de cem contos destruídos pelo fogo, pela formatação deliberada de seu computador ou que estão despedaçados em decomposição num aterro sanitário por aí. Também participou da coletânea "Visões de São Paulo
FUGA

       1.

         Todo mundo está louco para fugir de sua patética vida e transcender contas, compras de supermercados, caminho diário para o trabalho, a faculdade, a escola o que quer que seja que as pessoas querem sempre fugir. Mas fugir não é tão simples como se imagina, largar tudo para o alto não é fugir, se esconder, desistir não é fugir, afinal, o suicídio não é uma fuga, é apenas a forma mais covarde de se desistir de tudo. Mas logo você pensa “que esse cara está falando de fugir?”, estou apenas falando, e falar é apenas o que quero, não há motivo para nada nesse mundo. E quem foge de verdade deve fugir também dessa mania insuportável de explicar motivos, caso contrário a rotina de explicar se torna a mesma rotina de cominhos diários de supermercados e pagar contas no banco. Não que quem fuja não pague contas, eu pago, mas é a questão de que se houver explicações a fuga perde o que ela têm de mais honesto, a manifestação de sua vontade máxima de mudar. Se houver explicações, você será “aquele que fugiu porque sua namorada isso, seus pais aquilo, seu chefe assado”. Quem foge, e de verdade foge, foge para ter de recomeçar uma vida não como fugitivo mas como uma nova pessoa, com novos compromissos, liberto de laços que antes o tornavam uma pessoa que se autodefinia ou como patética ou como infeliz, ora estagnado ora encarcerado. A vida é uma prisão que nós mesmos criamos, com certeza alguém já falou essa frase e você já deve ter anotado em seu caderno quando tinha dezesseis anos de idade, mas essa é a maior mentira que você pode ter ouvido depois de um presidente que não fez sexo com uma estagiária, quem disse essa frase nunca esteve em uma prisão, a vida é a plenitude da liberdade e escolhemos cada dia por ela. Mesmo quem não foge é tão livre quanto aqueles que fogem, fugir não é a busca da liberdade, mas a reconstrução máxima do eu.

         Chegar em um lugar novo nunca é fácil, eu mesmo quando imprimi minha fuga me abalei ao chegar, o mais difícil não é empacotar as coisas e ir embora, mas encarar o terreno limpo para a reconstrução do eu. E olha que eu não escolhi uma cidadezinha pequena no interior do fim do mundo em que as pessoas todas se conhecem e sabem de cor e salteado cada passo da vida alheia, eu escolhi fugir para uma grande cidade de um grande país em que todos, teoricamente, não tem identidade nenhuma, e mesmo assim todos me perguntaram motivos, e eu, de praxe disse que não há motivos apenas a finalidade de estar ali, viver ali, ali estar eu, simplesmente eu. E enganasse que tudo isso é causa de uma personalidade babaca e egocêntrica de uma pessoa egoísta, e se você já pensa assim de mim é por pura incompreensão do que disse até agora. Mas enfim chegar em um lugar você enfrenta o desconhecido, a dúvida e as paredes em branco, essas paredes podem te sufocar até a morte e te apavorar a ponto de te levar à mais pura e delirante loucura de Morfeu. Chegar é o segundo passo da fuga e está quase tão relacionado a ela como a saída do útero está para a infância, pois a fuga é um processo duradouro e lento que se completa quando você finalmente encontra o novo eu na ponta de sua busca.
         E todos temos uma rota de fuga. Não adianta dizer que nunca pensou nisso, todo mundo já sabe para onde ir quando fugir, essa história, ou estória, como prefiro, Holden Caulfield de fugir quase de mentirinha, sem plano, apenas abandonar é pura balela, embora Holden seja o exemplo máximo de transgressão social em forma de fuga. Enfim, todo mundo sabe para onde ir, ou imagina, na sua rota de fuga, para o campo, para a cidade, para outra cidade, país, praia, sabe o que fazer o que não fazer, pelo menos imagina. É só passar em um lugar que te mostre algo possível e plausível que você marca como ponto de fuga, ou mesmo descobrir um lugar que admira. O importante é que esse lugar represente algo para que você inclua nos seus planos. Os meus já estavam traçados há uma eternidade, tão bem traçados que me assentei quando e onde quis com uma facilidade tremente, mas claro que passei por uns lugarzinhos antes, para despistar aqueles que queriam me seguir. Não que alguém realmente se importe em me encontrar, mas claro que deixei um vazio em algum lugar, sempre existe a ex-namorada carente que quer manter “amigos” por perto. Amigos o caralho, ex-namoradas são es namoradas, eu nunca quis ficar amigo delas, se quisesse elas como amigas não teria namorado. Então se você fixa logo residência, logo alguém te descobre, assim você precisa assentar o sentimento de perda e deixar o luto inicial inconformado se tornar aceitação, só depois disso existe tranqüilidade para se fixar.
         Hoje mesmo me questionei sobre meus vizinhos, nada é por acaso, a enfermeira do décimo andar me perguntou onde havia comprado um determinado colar que uso. Claro que quer saber minhas origens e ser simpática. Muitas vizinhas se esforçam para serem simpáticas com o novo rapaz solteiro que se muda. Se eu fosse um velho rabugento seria diferente. Bom, me esforcei para contar uma bela estória  de uma viagem a Cuba, tudo mentira, é um presente de uma ex-namorada, mas isso não se conta para as jovens enfermeiras que te encontram no elevador, ela pediu, em seguida, para eu passar mais tarde na casa dela para tomar um café. Cafés são a formas mais clara de mostrar que você aprovou uma certa pessoa. Um café em casa significa boas vindas e acolhimento, café em um lugar público demonstra interesse sexual. Não que um exclua o outro, é apenas a orientação essencial do encontro que se define. Enfim, acho que vou aparecer por lá depois. Mas vou levar um doce. Sempre levo doces.

2.

         Acordar de manhã é o momento em que medimos ao máximo nossa liberdade. Quando se respira pela manhã respiramos nosso estado de espírito, eu mesmo respirei bem dessa manhã o cheiro da vizinha me preparando um café. Não que ela estivesse literalmente preparando o café, não para mim, imagino, mas a idéia de que ela podia estar preparando um café para mim me inundou os pensamentos, acho que vou aceitar o café que ela me ofereceu ontem a noite. Ela pediu com toda sinceridade que olhos azuis podem pedir algo. Eu sempre duvidei dos olhos azuis, eles têm algo de vidro, algo de “fake” que me faz acreditar que seus pedidos são dissimulados, olhos azuis têm uma superficialidade pálida, assim como o mar aberto te esperando para lhe engolir pela correnteza. Olhos azuis vêm acompanhados de um sorriso de menina moça, aquele com uma inocência aparentemente intacta, largo com a expressão impar da felicidade mais púbere, podem te levar ao inferno.

3.

         A primeira vez que tentei fugir eu tentei o escapismo para dentro de mim, durante algumas semanas eu isolei toda realidade e deixei minha mente longe do tangível. Eu não usei nada para isso, nunca fui muito afeito a nenhum tipo de drogas, exceto a cafeína. Mas o problema é que quando escapei para dentro de mim percebi que havia algo que me faltava e que eu nunca ficarei satisfeito apenas comigo mesmo, eu queria sentir alguma coisa diferente e naquele momento eu não sentia nada, exceto solidão, mas eu já me sentia só dentro de multidões, eu não estava mudando, apenas me tornando algo menor. Um dia levantei, avaliei o branco das paredes do meu quarto, fiz um café e bebi lentamente, passei então a planejar uma nova forma de fugir que me levou para onde estou.
         Desço alguns andares no elevador com uma torta de amêndoas à casa da vizinha loira, Ângela é nome dela, espero que ela goste da torta, café com amêndoas é uma combinação divina, se há algo de divino em minha vizinha além do nome ela há de apreciar a minha torta de amêndoas. Ao chegar ela me recebe com um sorriso aberto, um sorriso quase sincero, eu acreditaria se ele tivesse alguns milímetros a menos, são os olhos azuis que não me deixam acreditar no sorriso. Ela me apresenta a casa e enquanto conversamos sobre quem somos, ou na verdade quem dizemos que somos, eu reparo em cada detalhe de uma casa cuidadosamente decorada para parecer acidental. Eu falo um pouco sobre meu trabalho, eu sempre fui escritor, sempre com pseudônimos, provavelmente nem meu editor sabe meu nome, apenas uma conta bancária, uma caixa postal e um endereço eletrônico para falar comigo. Eu vendo bem, escrevo contos eróticos, historietas de amor para revistas de quinta categoria e outras coisas sem valor. Sua história é servida entre o café e um pedaço de torta, eu consigo ver  o momento que ela sente o sabor das amêndoas, é o maior prazer que alguém lhe proporciona em muito tempo, por alguns momentos seus olhos se tornam para o alto entre o prazer e a imagem de um orgasmo que há muito ela não sente. Ela estudou Enfermagem mas queria a Faculdade de Arquitetura e trabalhar com decoração, é fascinada por temas orientais e cuida do espírito, medita duas vezes ao dia, ela me diz, parece uma pessoa sem rumo tentando impressionar sem contar vantagens, ela se exime de contar cada um dos namorados que a levaram até aqui. É claro para mim que ela procura proteção e os olhos dela se tornam tristes em poucos momentos depois de tamanho prazer, a torta a lembrou de que todos os homens que lhe deram prazer a abandonaram, ela desistiu de tudo isso, ela quer um protetor preterindo o prazer, seus olhos se tornam tristes demais para um primeiro contato, eu tomo um gole do meu café e me despeço.

4.
         Andar pelas ruas ainda é meu maior prazer e laboratório, eu gosto de ver como as pessoas se portam nos lugares, jamais sento de costas para a entrada de um restaurante ou área de circulação e não importa onde eu esteja eu sinto prazer em reparar nos detalhes mais minimalistas como pessoas tomando um suco comprando uma revista. Quando eu era pequeno eu li um livro sobre um menino que podia ficar invisível, aquilo me marcou, talvez eu gostasse de ser invisível. Andar pelos becos escuros sem me preocupar, conhecer a escória pela qual sempre tive admiração mas mantive à distância segura de ler em livros e ver em filmes o que as pessoas tiveram mais coragem que eu de conhecer ou pelo menos imaginaram com maior clareza do que eu consigo. Eu ainda penso nas putas e cafetões dos anos 30, os viciados em drogas são astros do cinema e glamurosos, não importa quanto eu saiba que qualquer menina de quatorze anos em um colégio particular conheça dois traficantes, fume maconha regularmente e consiga ecstasy e cocaína sem grandes dificuldades, eu sei também que existem milhares de pessoas jogadas por aí sem mais nenhuma dignidade, como existem executivos que freqüentam festas regadas de drogas e bebidas inimaginavelmente caras e garotas com corpos esculturais contratadas para satisfazê-los em suas sociedades secretas, usando máscaras ou não, sabendo seus nomes ou não, vivendo a luxúria que eu mal consigo descrever enquanto minha imaginação é ainda dos cafetões e prostitutas da década de trinta.
         Eu sento em um café, observo uma mulher chegando com os olhos fundos e um olhar profundamente marcado pela noite. Ainda estamos longe do meio-dia e eu escrevo notas em um esboço para um trabalho enquanto como meu desjejum quieto no canto de um café, ela tem os cabelos ruivos penteados mas longe de estar cuidadosamente preparados para o trabalho, ainda há traços de uma maquiagem pesada feita muitas horas antes, e nada demonstra que ela tenha alguma intenção de ter contato com algum ser humano nas próximas horas. Em plena terça-feira essa personagem que me chama atenção ao cruzar meu olhar não entrará nas rotinas que se espera de uma pessoa dentro do que socialmente se chama de normalidade; me faz pensar em ser invisível e segui-la durante uma noite. Meus pensamentos se perdem e eu me recolho nas palavras mais uma vez.

5.
         Existem basicamente dois tipos de bloqueios para um escritor. O primeiro e mais famoso é aquele onde não saem as palavras, não se formam as frases, parágrafos então são como o sonho de uma ilha paradisíaca que não existe sequer em sonho. Esse é o bloqueio que um escritor pode superar, ele sai, procura novas idéias nas ruas, nas idéias dos outros, na própria falta de idéia, mas ele pode superar. Mas há para o escritor o bloqueio mais perigoso, o bloqueio metafórico, tudo que ele escreve é simplesmente ruim como uma metáfora desgastada pelo uso. Nada mas nada mesmo parece original chegando a parecer que outra pessoa escreveu isso antes e que já era ruim quando outra pessoa escreveu isso antes. Quando esse bloqueio acontece as palavras se repetem demais e não parece ter nenhuma outra forma de escrever de outra forma o que está escrito, e não há como sair disso senão por um surto de inspiração, pois você dá toda sua expiração para o texto e ele ainda parece simplesmente ruim. O telefone toca, não pode ser uma boa notícia porque ninguém, absolutamente ninguém, tem meu telefone e eu estou no meio do meu bloqueio metafórico mais denso que já tive, meus contos eróticos parecem pornografia barata escrita por uma prostituta de rua analfabeta que entende tanto de desejo quanto de atuação, afinal dizem todas elas serem atrizes. O telefone está no seu quinto toque quando resolvo atender, é minha vizinha enfermeira, olho em um calendário de mesa e lembro que é domingo e que é horário de almoço para maioria dos mortais, sinto um pouco de fome, e sem fazer a menor idéia de como ela conseguiu esse número aceito o convite para comer em sua casa, quando ela diz que tomou a liberdade de cozinhar para dois. Na realidade ela não tomou liberdade nenhuma ela simplesmente cozinhou esperando que eu aceitasse o convite, afinal, ela deve deduzir que não há motivo algum para duas pessoas solitárias ficarem sozinhas no almoço de domingo, e vêm à minha cabeça muitas questões que eu não me permito fazer sobre a vida pregressa de minha vizinha.
         Eu penso um pouco antes de pegar um vinho, escolho um branco, bem simples, algo para não impressionar, mas falta um doce, eu sempre levo doce, e na despensa nada há de interessante. Por um momento travo e lembro de um pote de sorvete de meio litro que comprei há alguns dias e não tomei, comprei com medo de me sentir triste, sempre que fico triste como sorvete, chocolate, mas não fiquei, de fato o mundo parecia mais interessante naquele dia que o usual e não tomei sorvete. Desço para a casa dela e toco a campainha gentilmente, ela abre um pouco despenteada e vestida com um certo descaso, de forma que me pergunto se o excesso de comida não foi um mero acidente, me desarma do vinho e do sorvete, me dá um beijo muito rapidamente no rosto, coloca a garrafa sobre a mesa guarda o pote no freezer e se desculpa pois o molho está num ponto delicado e não pode passar do ponto, o cheiro é maravilhoso. Ela definitivamente está ainda de pijama, não propriamente pijama, mas roupa de dormir, uma calça de moletom vermelha já muito desbotada por ter sido lavada durante anos semanalmente e uma blusa sem mangas que é curta demais para ser uma camiseta e larga demais para ser uma blusinha, é provavelmente mais uma daquelas peças de roupa que as pessoas guardam desde a adolescência pois um dia acharam que usariam, por cima de tudo está um avental promocional de uma marca de azeite e por alguns segundos ela parece irresistível nesse desleixo, enquanto ela cozinha, deixa a blusa subir alguns centímetros ao abaixar para pegar algo revelando uma meiga tatuagem de um coelho na parte baixa de suas costas, e, com isso, quando eu estava quase voltando à realidade de minha última visita ela me prende novamente a atenção ao oposto de tudo que eu havia visto antes. Nesse momento ela é irresistível.
         A conversa é agradável, falamos de quase tudo menos do passado e do futuro, e na maior parte do tempo esquecemos de lembrar do presente, ela cozinha com pimentas leves, nada é exagerado em sua cozinha e seus lábios partilham um prazer orgástico cada vez que ela os serve de mais uma pequena porção e eu vejo minha musa inspiradora naqueles lábios. Eu pergunto do coelho, ela dá risada e diz que é perda de tempo explicar, mas diz que o adora e olha para o relógio. Quando ela se levanta para tirar os pratos, a beijo, surgem metáforas e alegorias imediatas em minha mente. Quando me levanto horas mais tarde me tranco em meu quarto e escrevo horas a fio.

 

6.

         Escrevo sem parar, rapidamente tenho material para me sustentar por todo um ano, escrevo pela madrugada, depois de chegar em casa dos meus encontros com  Ângela. Meu texto mudou, está ágil, escrito a doses monumentais de café, fico acordado toda a madrugada escrevendo para não perder a excitação dessas noites com minha enfermeira. Durmo sempre perto das dez horas da manhã quando a claridade entra em meu quarto e o sol me ofusca os olhos já lacrimejando das longas horas em frente ao computador. Tenho um sono pesado, sem sonhos, e acordo no fim da tarde, já na hora de ter mais um encontro com minha enfermeira.
         Noite após noite escrevo compulsivamente, e o silêncio da noite quebrado por carros eventuais e sirenes inevitáveis da polícia pouco me interrompem, mas formam uma trilha sonora a qual os leitores dos meus contos poderiam identificar na cadência do texto. No silêncio todos os sons ficam mais nítidos, dá para ouvir a água fervendo em cômodos diferente enquanto escrevo e preparo o café s. Levanto para coar quando ouço passos cambaleantes da madrugada pelo corredor que nunca havia escutado antes, os passos precedem um som surdo no chão. Sem mais passos fico assustado e abro lentamente a porta da casa. No solo está o corpo de uma mulher, vestida de preto e longas botas em um tom de vinho, pálida e inconsciente, reconheço a imagem da mesma mulher impressionante que me chamou a atenção semanas atrás em um café por perto. Nunca havia cruzado com ela  neste corredor, pouco cruzei com qualquer pessoa nesse corredor, de fato conheço quase ninguém além de Ângela por aqui. Verifico, assustado, sua respiração, está normal, mas sua aparência é de quem além de beber mais do que devia passou muitos dias sem dormir. Levanto o corpo dela e um pouco de consciência retorna aos seus olhos que sequer fazem menção de reconhecer algum objeto mais distante do que um palmo de seu rosto, como se tivesse em minha noite do meu casamento coloco seu corpo em meus braços e atravesso a porta do meu apartamento, as núpcias  terminam aí, pois depois de colocá-la no sofá sirvo um café especialmente forte, coado no pó duas vezes, esperando que ela possa fazer algum sentido, o efeito é inverso e perco meu tapete. Apesar do cansaço eu decido vigiar seu sono, ela adormece.

7.
         Pelas manhãs, lá pelas cinco horas, eu ouço sempre o som caído de um baque do jornal caindo ao chão em frente à minha porta, é como se ele fosse displiscentemente atirado de uma pequena distância para que eu fosse acordado, nas noites de sono leve ou insone, para que comece um dia de impreterível transe . Uma vez que eu acordo não durmo.
         Quando minha ilustre convidada acorda fica claro nos olhos dela que ela se vê num lugar estranho, mas fica claro também  que isso não a assusta, tendo um toque de rotina em seu despertar. Fico curioso observando seus movimentos, de uma poltrona, eu sentado em posição de lótus, vejo uma mulher tão desconhecida para mim quanto eu para ela despertar em meu sofá. Ela balbucia palavras sonolentas carregadas pela dor da ressaca a respeito de onde ela está, como ela chegou lá e o que se passou entre nós, por um momento penso em enganá-la, contar uma estória quase fantástica envolvendo elementos que eu pouco conheço da noite, mas sou traído pela minha bondade, maldita bondade, como quero ser um escritor se não tenho a coragem, e talvez a frieza, de enganar alguém cujo maior feito, esquecendo sua beleza incomensurável, foi vomitar no meu tapete. Ela sequer pede desculpas e levanta andando em direção à minha porta, num movimento rápido ela a destranca e sai sem ao menos olhar novamente para mim. Seus passos, cerca de dez, continuam reto até o corredor, destrancam uma porta que eu ouço abrir e fechar. Eu deito cansado em minha cama.

8.
         Pessoas são poços de segredos. Pessoas têm mais segredos que poros a transpirar numa noite de sexo deliciosamente perverso em noites de verão daquelas que abrimos as janelas deixando todos os vizinhos ouvir cada momento dos atos libidinosos praticados sem memória do pudor que nos foi pregado na escola dominical e nos manuais do escoteiro mirim, não por vontade de demonstrar a ferocidade da euforia carnal mas para evitar problemas causados pelo calor excessivo sobre o corpo humano, como a desidratação, queda de pressão, elevação de temperatura. Mas os segredos não são como os dias de calor e sexo com janela aberta ouvindo e fazendo os vizinhos ouvir as quase sinfônicas explosões orgásticas de uma noite de verão especialmente boa para todos. Segredos são surpresas desagradáveis como pêlos pubianos não aparados ou barulhos esquisitos que deveriam parecer como gemidos de prazer porém nem de longe são excitantes, mas sim causam estranheza refrigerante ao que não parecia ter como desaquecer. Claro que todos temos segredos, todos temos mais segredos que poros a suar, que memórias a contar. De fato o grande esforço de se parecer interessante a uma pessoa em um encontro é montar uma barreira de segredos impenetrável pelos quais você se demonstraria irremediavelmente humano (queremos ser todos super homens, ubber homens, alem de homens, com medo de ser macacos) tornando nossas relações amorosas a busca eterna pela coerência nas falhas do discurso que tem mais buracos que as minas de nitrato no deserto do Atacama. Segredos temos de todos os tipos mas quando vejo um homem vestido de verde oliva com flores em uma das mãos e uma mala descendo no andar de Ângela já entendo tudo. Desconfio que ela não me procurará por algum tempo.
         Não sei se sinto ciúmes, não sei mesmo se me permito sentir alguma coisa depois do incidente com minha vizinha ilustre desconhecida que caiu na minha porta tão de repente quanto seu sumiço de minha vida mas não de minhas fantasias nem tão secretas. Por sinal nada secretas pois não tenho segredos se não convivo com absolutamente ninguém a menos por necessidades passageiras, a pessoa com quem mais tive contato nos últimos tempos está agora trepando em frenesi um com militar de merda que estava sumido em algum serviço de força de paz em algum país longínquo e paradisíaco (apenas para turistas endinheirados e não para seu próprio povo) entre putas púberes e traficantes apoiados em seus status de um regime totalitário derrubado por uma meia democracia imposta. Ela deve estar fodendo como se ela não fodesse  todo esse tempo, fingindo sentir a falta da rigidez masculina e pensando como ela precisa fazer aquilo para não perder aquele homem que a abandona periodicamente e não se sentindo culpada nem por um instante em me trair ou a ele. Ela nem sequer pensa em tudo isso dissimuladamente.
         Fecho minha janela e me fixo novamente na imagem gravada em minha retina antes de ver aquele matador de crianças entrar no apartamento de minha amante que eu julgava inocente, penso, sem o menor esforço, e recolho todos meus desejos para a figura que estava caída em minha porta e vejo que esta é minha saída no momento, procurá-la e satisfazer as dúvidas que povoam meus sonhos intermitentes nas distrações de minha solitária (e voluntária) rotina. Faço centenas de planos de detetives noir e vejo que nada é mais sábio que esperar atento pelos passos cadenciados pelo álcool a passar pela minha porta, e decido centralizar minha atenção nesses passos e para matar o tédio encomendo garrafas de vinhos e livros para consumir em um poltrona que a partir de agora se localizará mais perto da entrada de minha sala.


O PAPO DO FERNANDO

O Fernando é advogado, participa comigo do blog "Novas Visões de São Paulo" (http://nvsp.tarjaeditorial.com.br/), e pretende me processar assim que seu texto sair nessa página. Uso indevido da imagem, essas coisas.

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