Vou lhe contar como tudo aconteceu.
Refrescarei sua memória quantas vezes for necessário. Você
não ficará imune aos fatos. Agora que somos apenas nós
dois, você não irá me deixar pela via da insanidade.
Pode sustentar essa cara de débil, pois não irá me
sensibilizar. Passarei o resto da minha vida lembrando-lhe, se for preciso,
porque você acabou aqui onde estou.
Sua casa tem três andares. Você está
no térreo. Sua esposa, no último.
E você a ouve gritar quando ela se depara com
um intruso no quarto. Você sabe desse detalhe apenas pelo tom do
berro. Crianças choram e esperneiam dias, semanas, anos inteiros,
por bobagens; elas querem nos ludibriar, chantagear, nos dominar, contudo
um dia elas caem e quebram a cabeça ou o pescoço e emitem
um grito diferenciado. Jamais conseguiremos descrevê-lo, mas sabemos
identificá-lo. Nascemos sabendo. Nossa pele enruga quando os pelos
querem se soltar, quando um inverno súbito arrasa nossa zona de
conforto.
Tudo começa no grito. Você o ouve e antevê
o que ela está passando e quanto a situação ainda
irá se agravar. O intruso pode causar danos severos à sua
mulher, irreparáveis, irreversíveis, no entanto nada comparado
aos danos que sua imaginação lhe apresenta. Ela vai muito
mais longe e mais baixo que a dele.
Eu sei o que eu faria.
E você? Lembra-se do que fez?
Você se lembra de quando, uma semana antes, foi
até a janela espiar a face do vizinho assim que ele foi assaltado,
no momento em que recebia a polícia, poucos minutos após
os assaltantes deixarem a casa?
Sua face não mais transparecia marcas de medo
ou ansiedade, mas de um descrédito perante a vida que transferia
o medo e a ansiedade para aqueles expostos a ela. O horror chega pelos
flancos, uma trepidação gélida que anseia em se multiplicar,
turvar o lampejo da razão. Não o descrevemos, não
nos libertamos, mas o levamos para casa, nos fragmentamos em mais e mais
criaturas que não imaginávamos ser.
Você retrocedeu, trancou todas as portas e janelas,
e disse para si mesmo, "Isso aconteceu com ele, não comigo,
nunca e jamais comigo."
Agora que o terror é um evento em progresso,
você não vai até ela, salvá-la. Está
ancorado ao chão, tentando agarrar-se ao carpete baixo e fino,
arrastando-se para detrás da cortina, onde pode ouvir com maior
clareza os dentes tilintarem, sentir os joelhos se chocarem por causa
dos espasmos nas coxas, a adrenalina correndo por dutos enrijecidos, passagens
em desuso, comprimindo o calor no ponto central do peito, afastando as
costelas, obstruindo todas as vias de acesso à mente. Você
se tornou o que sente. Os pensamentos, os julgamentos, a moral, a fé,
não exercem mais influência sobre seus atos.
Eu não faria o que você fez, apesar de
ter acabado no mesmo lugar que você.
Ainda atrás da cortina, no térreo, você
não ouve mais ruído algum, tampouco sua indefesa esposa
berrar, ou chorar, ou gemer. O silêncio o faz lembrar que você
tem uma filha, uma menina de sete anos que está supostamente dormindo
no quarto adjacente ao seu, no último andar, próximo demais
de onde ouviu sua mulher gritar pela primeira vez.
Foi o silêncio que arrematou a transformação.
Desse momento em diante você não se lembra
mais de nada, mas eu vou lhe contar tudo o que precisa saber, incluindo
os detalhes em que você não irá acreditar. Vou contar
devagar para que sua memória seja reavivada, para que você
enriqueça a descrição.
Quando você sobe as escadas - é seguido
por uma sombra monstruosa, duas vezes do seu tamanho -, visualiza o intruso
fazendo, com sua mulher, coisas que nem passam na cabeça dele.
Coisas com a sua filha. Com as duas juntas. Você precisa dessas
imagens. As piores. É surpreendente e repugnante o que você
consegue imaginar.
O sujeito não tem a mínima chance. Sua
esposa está apenas trancada no banheiro. Ilesa. Ele queria dinheiro,
jóias, coisas pequenas e valiosas, ainda assim, você arranca
os olhos dele, amarra-o na cama e arranca-lhe os globos oculares com uma
espátula de cimento. Ele urra de dor, mas você não
ouve. Sua mulher berra, mas você não ouve. Quando você
defere a terceira martelada nos dentes do intruso, sua filhinha de sete
anos entra no quarto e não o reconhece. Você não a
considerou. Talvez nem percebeu a sua presença. Foi ela quem ligou
para o polícia. É a polícia quem abre a porta do
banheiro e livra sua esposa. É a polícia quem afasta sua
filha de suas pernas enquanto ela grita, "Pare pai, pelo amor de
Deus, ele já está morto", soluçando, à
beira de um ataque de asma, limpando o sangue do seu rosto com a manga
do casaquinho. Você não lhe dá ouvidos, assim como
agora quer virar o rosto e fingir que não estamos conversando.
Fingir que sou eu o personagem irreal.
Pode fazer essa cara de "esse não sou eu",
"é tudo mentira". Pode fingir que você não
está aqui. Que eu não existo. Que sou apenas um espectro
de sua consciência dissimulada. Espere até você ouvir
tudo de novo num tribunal de justiça, com pessoas dilatadas e desbocadas,
trajando ternos repetidos, acusando-o de tudo o que lhe contei. Eu quero
apenas prepará-lo para o pior.
Sou seu único aliado neste inferno.
*
Os policiais olham o assassino falando com um boneco
sem rosto, com letras grandes e resolutas escritas onde deveria haver
olhos, nariz e boca. "O verdadeiro eu". Um boneco feito de farrapos
da roupa de cama, enchimento em plumante, sem costura, unido por grampos,
desengonçado, que pouco se assemelha a um ser humano, um boneco
que não sai da mão do detento, agora um ventriloquista.
Quanto mais ele conta a sua história para o
boneco, quanto melhor relata os fatos, quanto mais detalhes insere na
história, mais se afasta da verdade, mais próximo está
da liberdade pela insanidade.
Um policial diz ao outro: "Esse cara não
merece o veredicto que recebeu da justiça. Esse cara não
merece o veredicto que deu a si próprio."
O outro responde: "Esse cara merece algo pior.
Vou providenciar que uma navalha chegue até ele para que se cale
para sempre. Mal dormi ontem à noite. Não suporto mais ouvir
essa história horrível."
FIM
O
PAPO DO FERNANDO
Há alguns meses, fiz parte do júri do Concurso
de Contos do Clube Pinheiros, que premiou "O Horror". Como recebemos
os contos em envelopes anônimos, só depois descobri que o
Fernando - que eu já conhecia - era autor dessa ótima história.
Conselho aos leitores da Escrevinhadora: acompanhem a carreira do moço.
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