Romancista e contista, Fernando Oria é autor do romance “A Tróia de Aquiles”, lançado pela editora Person no final de 2004. Acredita que a realização reside no prazer de surpreender e ser surpreendido, na desconstrução das formas e num processo de renovação sem fim.
HORROR

Vou lhe contar como tudo aconteceu. Refrescarei sua memória quantas vezes for necessário. Você não ficará imune aos fatos. Agora que somos apenas nós dois, você não irá me deixar pela via da insanidade. Pode sustentar essa cara de débil, pois não irá me sensibilizar. Passarei o resto da minha vida lembrando-lhe, se for preciso, porque você acabou aqui onde estou.

Sua casa tem três andares. Você está no térreo. Sua esposa, no último.

E você a ouve gritar quando ela se depara com um intruso no quarto. Você sabe desse detalhe apenas pelo tom do berro. Crianças choram e esperneiam dias, semanas, anos inteiros, por bobagens; elas querem nos ludibriar, chantagear, nos dominar, contudo um dia elas caem e quebram a cabeça ou o pescoço e emitem um grito diferenciado. Jamais conseguiremos descrevê-lo, mas sabemos identificá-lo. Nascemos sabendo. Nossa pele enruga quando os pelos querem se soltar, quando um inverno súbito arrasa nossa zona de conforto.

Tudo começa no grito. Você o ouve e antevê o que ela está passando e quanto a situação ainda irá se agravar. O intruso pode causar danos severos à sua mulher, irreparáveis, irreversíveis, no entanto nada comparado aos danos que sua imaginação lhe apresenta. Ela vai muito mais longe e mais baixo que a dele.

Eu sei o que eu faria.

E você? Lembra-se do que fez?

Você se lembra de quando, uma semana antes, foi até a janela espiar a face do vizinho assim que ele foi assaltado, no momento em que recebia a polícia, poucos minutos após os assaltantes deixarem a casa?

Sua face não mais transparecia marcas de medo ou ansiedade, mas de um descrédito perante a vida que transferia o medo e a ansiedade para aqueles expostos a ela. O horror chega pelos flancos, uma trepidação gélida que anseia em se multiplicar, turvar o lampejo da razão. Não o descrevemos, não nos libertamos, mas o levamos para casa, nos fragmentamos em mais e mais criaturas que não imaginávamos ser.

Você retrocedeu, trancou todas as portas e janelas, e disse para si mesmo, "Isso aconteceu com ele, não comigo, nunca e jamais comigo."

Agora que o terror é um evento em progresso, você não vai até ela, salvá-la. Está ancorado ao chão, tentando agarrar-se ao carpete baixo e fino, arrastando-se para detrás da cortina, onde pode ouvir com maior clareza os dentes tilintarem, sentir os joelhos se chocarem por causa dos espasmos nas coxas, a adrenalina correndo por dutos enrijecidos, passagens em desuso, comprimindo o calor no ponto central do peito, afastando as costelas, obstruindo todas as vias de acesso à mente. Você se tornou o que sente. Os pensamentos, os julgamentos, a moral, a fé, não exercem mais influência sobre seus atos.

Eu não faria o que você fez, apesar de ter acabado no mesmo lugar que você.

Ainda atrás da cortina, no térreo, você não ouve mais ruído algum, tampouco sua indefesa esposa berrar, ou chorar, ou gemer. O silêncio o faz lembrar que você tem uma filha, uma menina de sete anos que está supostamente dormindo no quarto adjacente ao seu, no último andar, próximo demais de onde ouviu sua mulher gritar pela primeira vez.

Foi o silêncio que arrematou a transformação.

Desse momento em diante você não se lembra mais de nada, mas eu vou lhe contar tudo o que precisa saber, incluindo os detalhes em que você não irá acreditar. Vou contar devagar para que sua memória seja reavivada, para que você enriqueça a descrição.

Quando você sobe as escadas - é seguido por uma sombra monstruosa, duas vezes do seu tamanho -, visualiza o intruso fazendo, com sua mulher, coisas que nem passam na cabeça dele. Coisas com a sua filha. Com as duas juntas. Você precisa dessas imagens. As piores. É surpreendente e repugnante o que você consegue imaginar.

O sujeito não tem a mínima chance. Sua esposa está apenas trancada no banheiro. Ilesa. Ele queria dinheiro, jóias, coisas pequenas e valiosas, ainda assim, você arranca os olhos dele, amarra-o na cama e arranca-lhe os globos oculares com uma espátula de cimento. Ele urra de dor, mas você não ouve. Sua mulher berra, mas você não ouve. Quando você defere a terceira martelada nos dentes do intruso, sua filhinha de sete anos entra no quarto e não o reconhece. Você não a considerou. Talvez nem percebeu a sua presença. Foi ela quem ligou para o polícia. É a polícia quem abre a porta do banheiro e livra sua esposa. É a polícia quem afasta sua filha de suas pernas enquanto ela grita, "Pare pai, pelo amor de Deus, ele já está morto", soluçando, à beira de um ataque de asma, limpando o sangue do seu rosto com a manga do casaquinho. Você não lhe dá ouvidos, assim como agora quer virar o rosto e fingir que não estamos conversando. Fingir que sou eu o personagem irreal.

Pode fazer essa cara de "esse não sou eu", "é tudo mentira". Pode fingir que você não está aqui. Que eu não existo. Que sou apenas um espectro de sua consciência dissimulada. Espere até você ouvir tudo de novo num tribunal de justiça, com pessoas dilatadas e desbocadas, trajando ternos repetidos, acusando-o de tudo o que lhe contei. Eu quero apenas prepará-lo para o pior.

Sou seu único aliado neste inferno.

*

Os policiais olham o assassino falando com um boneco sem rosto, com letras grandes e resolutas escritas onde deveria haver olhos, nariz e boca. "O verdadeiro eu". Um boneco feito de farrapos da roupa de cama, enchimento em plumante, sem costura, unido por grampos, desengonçado, que pouco se assemelha a um ser humano, um boneco que não sai da mão do detento, agora um ventriloquista.

Quanto mais ele conta a sua história para o boneco, quanto melhor relata os fatos, quanto mais detalhes insere na história, mais se afasta da verdade, mais próximo está da liberdade pela insanidade.

Um policial diz ao outro: "Esse cara não merece o veredicto que recebeu da justiça. Esse cara não merece o veredicto que deu a si próprio."

O outro responde: "Esse cara merece algo pior. Vou providenciar que uma navalha chegue até ele para que se cale para sempre. Mal dormi ontem à noite. Não suporto mais ouvir essa história horrível."


FIM


O PAPO DO FERNANDO

Há alguns meses, fiz parte do júri do Concurso de Contos do Clube Pinheiros, que premiou "O Horror". Como recebemos os contos em envelopes anônimos, só depois descobri que o Fernando - que eu já conhecia - era autor dessa ótima história. Conselho aos leitores da Escrevinhadora: acompanhem a carreira do moço.

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