Felipe Moreno é de São Paulo, tem 49 anos e três livros publicados: "Alforria" (1988), "A B Surdo" (1993) e "Dupla Personalidade para um Roteiro", (a ser lançado no próximo dia 5 de novembro, na FNAC/ Pinheiros, em São Paulo). Tem também um romance e uma novela inéditos. Trabalhou no SBT como colaborador de Doc Comparato, na feitura da minissérie "O Palácio" e na adaptação de uma novela. Escreveu também dois curtas, peças teatrais e outros roteiros. O conto "Cachola de Sementes" recebeu Menção Honrosa no II Concurso de Histórias Infantis "Crianças do Mercosul".

CACHOLA DE SEMENTES

Ninguém me escutava, nem estavam interessados em ouvir o que eu pensava, mas eu, sim, eu me escutava e me ouvia direitinho. Só eu.
Todo dia era a mesma coisa: a perua escolar do tio Alfredo nos pegava e nos trazia do colégio, no mesmo horário de sempre. Minha cabeça começava a funcionar no instante em que sentava naquele mesmo banco de sempre. Ou melhor dizendo, no momento em que tio Alfredo acelerava a perua para sair. Acho que ela era movida a gasolina, a minha cabeça, igual à perua do tio Alfredo. Meus pensamentos começavam a vir de tal maneira que sentia o motor da perua roncando dentro de mim. Não acho que sabiam que eu pensava assim. Eu sabia que todo mundo pensava, mas do jeito que acontecia comigo, eu duvido.
Mas naquele dia alguma coisa diferente aconteceu na perua do tio Alfredo. Estávamos voltando da escola e minha cabeça já estava pensando sem parar. Só que não era só a cabeça; eu estava com uma coceira desgramada no olho. Não dava para parar de coçar. E os pensamentos que agora eu ouvia diziam para eu parar de coçar se não meu olho ia furar. Deu medo. Este foi o primeiro pensamento que pensei. Não, eu sei, medo é sentimento, todo mundo sente e ninguém pensa que está com medo. Mas meu olho furado vazava óleo do meu pensamento. Ai, que nojo! Olho vazando óleo que não parava mais. E se fosse pelo número de pensamentos que me vinham, ia virar uma fritura só. Detesto cheiro de fritura! Minha mãe sabe que não gosto de ovo frito. Só cozido. Miserável, o olho não parava de coçar. Por falar em minha mãe, ela sempre reclamava e chamava de miserável quando não gostava de alguma coisa. Um olho não pode ser tão miserável assim, mas agora ele estava me deixando de cabelo em pé. Eu queria arrancá-lo de uma vez e ficar só com o outro. Mas daí, sim, o miserável seria eu.
Na perua, eu sempre ficava quieto no meu canto. Gostava de sentar na última fileira e ficar olhando pela janela. Sozinho. Não tão sozinho assim, porque tinha a companhia dos meus pensamentos. Acho que ninguém pensava tanto quanto eu. Ou ouvia mais que eu. A culpa eu já sabia de quem era: da perua escolar do tio Alfredo.
Resolvi descer desta vez. Todo mundo estranhou, mas fazer o quê: não agüentava mais coçar aquele olho e ouvir os meus pensamentos. Tio Alfredo perguntou-me o motivo. Mas explicar tudo a ele o que eu pensava - do motor da perua que ligava os meus pensamentos, ao olho que deu de não parar de coçar, era uma coisa que ia dar um trabalhão e ele, no fim, não ia entender. Disse a ele que ia voltar andando, que sabia ir para casa, que estava perto, aquelas coisas. Isso tudo coçando o olho e ouvindo meus pensamentos. Claro que ele não deixou. Eu só tinha oito anos e quatro meses e já era um pensador! Só que ele não sabia disso e, como disse, não adiantaria explicar-lhe. Se eu fosse mais esquentado, ou pior, mal-educado, teria falado um nome feio para o Tio Alfredo, mas também não ia adiantar nada. Ao contrário, iria piorar. Ele falaria para a minha mãe e ela ficaria bronqueada comigo. No fim, eu iria ficar brigado com o Tio Alfredo e minha mãe brigada comigo. E o meu olho e meus pensamentos coçando. Tudo junto. Imaginou?
Então desisti de descer da perua do Tio Alfredo. Como ele me viu coçando o olho, não agüentou:
— Tá coçando o olho, Arturzinho. Isto é sinal de mente fértil.
Eu nunca tinha ouvido falar nisso na minha vida: mente fértil.
— O que é isto, Tio Alfredo? – perguntei.
— Mente fértil? É que nem a terra. Todo mundo não planta nela pepino, tomate, banana e tudo aquilo que precisamos comer? Os pensamentos são para a cabeça a mesma coisa.
— Mas que tem a ver o meu olho coçando com isto? – Tornei a perguntar, muito curioso.
— É sinal de que tem uma terra boa aí dentro da cachola – respondeu ele, rindo. — Quando a mente é fértil, o olho coça. Aproveite e plante bons pensamentos.
Por um momento esqueci-me de pensar e fiquei vendo a imagem de terra sendo plantada. Do outro lado do campo, cresciam um pé de mamona e um pé de couve. “Mamãe, a senhora está vendo como minha mente é fértil?”
Naquele dia, eu fiquei sabendo de muita coisa sobre a mente fértil e do olho que coça. Não só eu, porque a turma toda que estava na perua se juntou ali na frente para ouvir do Tio Alfredo umas histórias engraçadas de um lugar de nome mais engraçado ainda: Muzambinho. Ouvi tanta coisa interessante que meu olho até parou de coçar e eu, claro, parei de ouvir só os meus pensamentos. 
Assim que pus o pé em casa, comecei a falar para a minha mãe um monte de coisas que ouvira do Tio Alfredo. Ela ficou ouvindo sem falar nada. Disse a ela que eu tinha mente fértil onde bons pensamentos iam brotar pepino, tomate, banana e que ela podia colher tudinho. Claro, depois que crescessem. Esqueci-me de falar da coceira desgramada que deu no meu olho. Mas, se falasse isto, tenho certeza que ela falaria que ouvido é para ouvir, mente é para pensar e olho para enxergar. E isto, lógico, eu já sabia; só ela que não sabia que a minha mente era fértil; uma coisa a mais que ela não sabia que eu sabia. No fim, não disse nada para a minha mãe sobre a perua do Tio Alfredo, que ela me atiçava a mente, os ouvidos e, agora, até o olho. Senão era capaz de minha mãe chamar de “miserável” a perua do Tio Alfredo. E eu não ia gostar. Bom mesmo foi quando vi um ovo cozido no meu prato. Do jeito que eu gostava. Uma fumacinha subindo e um estalar molhado bem no meio do meu rosto.


O PAPO DO FELIPE

Dou a maior sorte com essa página, já encontrei muita gente talentosa por aqui. Esse mês foi o Felipe Moreno, que não conheço, nunca vi mais gordo, e ainda não sei se gosta de coxinha de frango ou empada de palmito. O Felipe, como vocês já viram por esse texto, escreve para criança feito gente grande. Assim que li "Cachola de Sementes", quis publicar nesse espaço, e dividir com os leitores dessa página.

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