Aam... Sim, é verdade... Essa minha paixão avassaladora não é desse mundo! Não me deixa em paz! Ah! Como a amo!
Da realidade tinha poucos traços. Por exemplo, sabia que tinha que alimentar seu bichinho de estimação, a quem amava muito, muito mesmo, sem restrições. E que ela, a amada... Ela... Imagine se ela soubesse que era um rato! Ela, tão delicada! Sim, um rato branco e faminto. He, he! Teria uma crise histérica. Ainda mais frágil e louca como era! Louca não, amalucada, coitadinha, mas ao mesmo tempo tão doce, tão macia, tão branca... Era como se ela... se ela... também fosse um rato branco!
Era talvez por isso que havia tanto encanto entre eles! Mais que isso, uma união, um amor enlouquecedor... Uma paixão avassaladora, sem limites, sem limites... Ah! Como a amava... Não era desse mundo, ele morria...
Deixava de comer e dormir... pensando nela... Ficava horas sentado, acariciando aquele serzinho delicado! Seu ratinho branco! Tão macio! Não, ontem comi... Não, esqueci foi de dormir ou de mudar de roupa? Não sei... Mas, foi só dessa vez, ratinho! Agora vou... Sim, se alimentaria, e daria aquela porçãozinha deliciosa para seu querido ratinho, perdão ratinho, não vou esquecer mais de você... só não posso mais é soltá-lo, ela odiaria isso e a mim também. E se ela enlouquecesse de vez? Eu enlouqueceria também, me esqueceria do ratinho e você poderia até morrer... Não, não e não!
Que fazer? Não ela não poderia saber de seu querido bichinho. Ele o esconderia dela. Naquela gaiola no sótão! Sim! Quando ela viesse em casa, como ela quase fez naquela tarde... Ele cobriria a gaiola e a colocaria perto da janela, no quarto escuro do sótão, somente com uma pequena fresta, para aliviar a sua solidão. E ele, ao olhar lá fora, o luar imenso, e apetitoso... aquele luar luminoso onde só o amor existe... Sorriu.
E foi pensando em tudo isso que com passos trôpegos ele se aproximou da casa da amada e dando-lhe as mãos puxou-a para si, e para mais um passeio amoroso no parque. E naquele banco de jardim, todo envolvido em luar, aquele luar tão branco... e ela... muito branca, e esquecido de tudo e de todos, aquele mundo mágico de puro e sublime amor... Um torpor gostoso, envolvente...
Pensava vagamente... Luar... Único contato com a realidade era aquela lua branca, enorme, como um grande queijo saboroso! Então... lembrou-se arrepiado! Não tinha alimentado seu ratinho!
Mas... e agora não seria tarde demais? O luar piscou! Estupefato ficou observando... observando... O luar piscou novamente! Será que a lua, tão branca estava simplesmente desaparecendo... desaparecendo? Sim! Irregularmente... como se mordida aos bocados por boca voraz, e mais e mais... até que se apagou de vez. Escuridão!
Com um grito apavorante correu tateando para casa.
No fundo da gaiola, um ratinho branco, branco... com uma barrigona branca... brilhante...
Na solidão de um banco de jardim, uma jovem tão doce, tão macia, tão branca..
O
PAPO DA CARMEN
A Carmem Rocha é um furacão literário com epicentro no Butantã. Está sempre me puxando para aventuras como a participação no seu grupo de contistas, ou até no júri de concursos literários (empreitada que acabou se revelando muito mais divertida do que eu esperava.)
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