Astolfo Araújo é cineasta e escritor. Seu segundo romance, 'Devoradores' foi publicado esse ano pela Editora Musa, e combina uma densa trama policial com uma viagem pela trajetória da esquerda brasileira desde os anos 60
DEVORADORES

1. O Dossiê

Sozinho, em sua sala, Dr. Marques folheia mais uma vez as velhas páginas do dossiê que o vêm desafiando há anos. Detestava a idéia de arquivar um processo sem solução. E agora vinha mais essa morte  no condomínio Mutirão. Ainda os indícios são frágeis, mas na sua cabeça obcecada, essas mortes tinham forte ligação, apesar da defasagem de tantos anos. A sua cabeça alterna o interesse na investigação do novo caso que veio às suas mãos com as velhas páginas do dossiê.

 Vítima: Rúbio Delgado
Data do falecimento: 10/abril/1964
Designação: Homicídio
Pasta: 1245/64
Dia 10/4/64

A vítima, Rúbio delgado, um homem de 22 anos, branco, cabelos curtos, louro, medindo aproximadamente 1,67m. A vítima morava na rua Aurora, 1345, quinto andar, apartamento 51. O apartamento é pequeno  – quarto, sala, cozinha e banheiro – e o corpo estava na sala, perto da  porta da cozinha. A vítima foi morta com um tiro na cabeça. O local é conhecido pelo tráfico de drogas, prostituição e zona de grande incidência de delitos.

A vítima era solteira, morava sozinha e foi encontrada morta pela testemunha, sua vizinha, Fátima Martins, às dez e meia do dia 1o de abril de 1964. Afirma a presente testemunha, fátima martins, que a porta do apar tamento da vítima se encontrava semiaberta; que a vítima havia se mu dado para o citado endereço há uns três meses; que conhecia pouco a vítima; que era “bacana com ela e com todas as mulheres do prédio que trabalhavam na rua Vitória”; que nunca soube de nada que desabonasse a vítima; que não sabia quem poderia ser o criminoso; que trabalhava na noite; que ela viu a vítima, no dia 31 de março, entrar no prédio às 20 horas. Deu o nome do namorado e não soube indicar a profissão do mesmo, nem seu endereço atual. Expedi um mandato, convocando severino abrantes, que será entregue pela testemunha.

Dia 15/4/64

Severino Abrantes nos recebeu no apartamento de Fátima Martins. No interrogatório, o homem informou que não possuía Carteira de Trabalho e vivia de biscates; inquirido, revelou-se um explorador de mulheres. Afirmou que a vítima não freqüentava a vida noturna; que sempre o cumprimentava; era simpático e se dava com todos; que não viu nada de estranho na noite de 31 de março; que nada ouviu na região sobre o assassinato. tem certeza de que o assassino não era da redondeza.

Dia 20/4/64

Voltei a interrogar a testemunha, baseado em informantes que disseram tê-lo visto com a vítima no bar situado na rua Vitória, 1267. A testemunha Severino afirmou que sabia que a vítima era um estudante pobre e que uma noite convidou-o a dividir um prato feito; que estava com sua amiga Fátima; que a vítima bebeu guaraná; que, no dia seguinte, trouxe uma chupeta para a filha de Fátima; que, perguntada sobre o que conversaram naquela noite, a testemunha deixou escapar que o estudante parecia um comunista. Pressionado, Severino mudou sua versão sobre a vítima, pois, se ele fosse um comunista, seria o primeiro a denunciá-lo.

Dia 20/4/64

Encontrei a testemunha Marcos Paranhos, aposentado da prefeitura municipal, morador no prédio da rua aurora, 1357.Vive no quarto andar, cuja janela da sala dá de frente para a janela da vítima. a testemunha afirmou que viu a vítima às duas horas da manhã do dia 1o de abril; que era a primeira vez que observara a sala da vítima, que estava iluminada; que um vulto ficou durante alguns segundos encarando-o, mas logo sumiu de sua visão; que, no dia seguinte, percebeu a movimentação da polícia, mas imaginou que estavam atrás de comunistas. Perguntado sobre o tipo físico da vítima, disse que parecia um jovem de cabelos longos. A descrição não confere com a da vítima. Presumo que se trata do assassino.

Dia 5/11/65

A pasta 1245/64, referente ao assassinato de Rúbio Delgado, passou para o arquivo de assunto não resolvido. Aguardam-se novas investigações a serem conduzidas em sigilo, pelo DOPS. Marques hesita, mas guarda mais uma vez o antigo dossiê na gaveta. O escrivão vem se despedir.

– O doutor não quer mais nada?

– O ladrão já foi engaiolado?

– Cagou nas calças! Gostei como o doutor destravou sua boca.

– É experiência de vinte anos de janela. Já chegou o laudo da morte daquele gordo do mutirão, o Raposo?

– Chega hoje pelo fax.

– Tá certo, bom descanso.

Marques abre o livro de Afonso Achmidt e assobia a Internacional Comunista; como que assolado pelo poeta, apanha um papel e escreve umas  imagens poéticas.

 


O PAPO DO ASTOLFO ARAÚJO

Por acaso, topei com esse intrigante livro do Astolfo Araújo, escritor que ainda não conhecia. Gostei, e pedi para publicar o primeiro capítulo, embora o livro já esteja nas prateleiras das livrarias. Astolfo e sua editora, graciosamente, me deram a permissão.

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