Há commodities que o dinheiro não pode comprar

TRADE

Explorei várias possibilidades. Explorei mulheres, crianças, deficientes físicos. Até um cachorro coloquei no trottoir do Bois de Boulogne. Neste negócio, aliás, maximizei meus lucros. Uma veterinária apaixonou-se por ele e comprou-o por milhares de euros. Ela se chamava Marianne. Linda, clara, implacável. Não estava interessada em seres humanos.
Eu estava. Trafiquei gente de todos os continentes, viajei para garantir a segurança de minhas cargas, investi em preferências exóticas. Nichos de mercado. Comércio, tudo é comércio. Entre uma negociação e outra, ligava para a mulher dos meus sonhos:
- Tudo que você quiser. Vai ficar milionária. Juro. Monto um bordel para você. Cobro só cinco por cento...
Ouvia seu riso do outro lado da linha. Cristal e pérolas. Ela. A mais bela mulher do universo. Commoditie rara, quase inexistente: caviar de Beluga, Chateâuneuf du Pape, Ferrari vermelha. Morando de favor na quitinete da irmã. Na primeira vez em que a vi, fazia feira. Comprava brócolis, se bem me lembro. O vendedor gaguejava, tentava dizer alguma coisa, enfiar o brócolis no saquinho. O brócolis caía e ela ria esse mesmo riso que ouço agora.
Tão deslumbrado quanto o vendedor, computei milhares na cabeça. Uma mulher com esse tipo de beleza você não bota num lupanar vagabundo da Eslovênia, num inferninho à-toa da Boca do Lixo. Nem bar de luxo, freqüentado por universitárias deslumbrantes, era digno dela.
Talvez um fechado bordel de magnatas que eu conhecia em Londres... não, nem mesmo isso.
Fui atrás dela, nervoso, suando. Dei-lhe meu cartão. Expliquei francamente meu negócio: quem sou eu para mentir para essa mulher? Ela sorriu. Me vi bilionário.

Nove da noite num bar de Istambul. Espero um vendedor de heroína. Vou comprar uma grande quantidade, espero que me faça abatimento. Não estou interessado no tráfico de drogas: a mercadoria é destinada aos meus funcionários de ambos os sexos. A heroína garante trabalhadores silenciosos e dóceis, sem reivindicações nem idéias de fuga.
Ligo para ela:
- Quanto você quer? Diga uma quantia.
Outra risada, ao fundo a novela das seis. Ah, sim! devem ser seis horas na quitinete da sua irmã, na metrópole suja de Terceiro Mundo onde ela mora. Uma cidade apinhada e vulgar, que nada fez para merecer esta divindade.
E o pior é que ela está contente nesse fim de mundo... Mas tenho uma fórmula pronta para tirá-la desse buraco. Um cliente por semana, no máximo, pagando fortunas, quantidades obscenas.
- Estou fazendo um cachecol pro meu sobrinho.
- Cachecol? De que cor?
- Era amarelo, mas agora a lã acabou... Ainda tem um restinho de vermelho. Vermelho e amarelo fica bonito, você não acha?
- Trabalhando para mim, você poderia comprar todos os cachecóis do mundo.
- Não estou interessada. Quer que te faça um gorro?
Vive sem tostão, faz uma faxina de vez em quando. Não liga para dinheiro. Gosta da vida doméstica, de crianças e de cozinha. Cansei de lhe prometer um apartamento em Paris. Ela, nem aí.
- Você tem namorado, é isso?
- Não.
De madrugada, enquanto me livro do corpo do traficante, ligo de novo para ela.
- Você não precisaria fazer nada de esquisito. Sexo normal, comum. Só uma vez por semana, já te expliquei. E as minhas taxas...
- Não quero. E olhe, estou com sono. Já coloquei meu pijama, vou estender o colchonete no chão.
- Uma deusa como você, dormindo no colchonete!
- Não tem importância, eu não ligo...
- Pelo menos tem um bom travesseiro?
Ela me assegura que sim, e eu volto a me ocupar do traficante. Tentou me passar a perna na transação. Quanto à heroína, a essa altura, já foi despachada para os vários países onde tenho negócios, segura nos estômagos de minhas mulheres. Algumas estão apaixonadas, outras foram ameaçadas. Outras ainda estão apaixonadas e ameaçadas. A melhor combinação, pela minha experiência.

Outro telefonema. Dessa vez estou em frente ao meu computador, dirigindo meu negócio de pedofilia online. Não me interesso por crianças, apenas as vendo.
- Este seu sobrinho. Com o dinheiro que você ganharia, ele não precisaria dessa escolinha vagabunda onde você o leva. Poderia ir estudar na Suíça.
Pausa. Ouço o ruído dos carros na rua, ela leva o moleque pela mão:
- Ele seria feliz na Suíça?
- Todo mundo é feliz na Suíça!
(Mentira. Já estive lá, e quase morri de tédio).
- Não acredito. Vou desligar.
- Não, não desligue! – com um clique, mando uma garotinha de dez anos para um bordel na Tailândia. – Por favor, não desligue.  Faça uma proposta, então. Me diga...
- Dizer o quê? Artur, cuidado com o carro!
- Em que condições aceitaria vender esse corpo maravilhoso. Peça o que quiser. O céu. A lua. As estrelas. Você escolhe os clientes. Impõe todas as condições. Eu baixo minha porcentagem. Me ligue quando estiver pronta.
Uma pausa. Desligou? Não:
- Vou pensar no caso. Um dia te ligo.

Pensei que estava me enrolando, que nunca ligaria. E de fato, vários meses se passaram, antes que eu veja seu nome no visor de meu celular. Atendo imediatamente:
- É você, minha deusa?
- Eu mesma. Pensei na sua proposta.
- Pensou? Radzik, enfie a cabeça desse desgraçado na água!
- Sim, pensei. Vou aceitar. Mas tenho minhas condições.
Enquanto observo distraidamente a cabeça do policial sérvio entrar e sair da água, ela me diz o que queria.
Escolhe o dia.
A hora.
O preço.
As condições.
E o cliente.

Só consegui impor o lugar. Dois dias depois, eu a espero no Hotel Crillon de Paris. Na hora marcada, ela surge. Sorri para mim, e o hotel se ilumina até os últimos andares.
- Trouxe o pagamento? – pergunta.
- Sim – respondo, engasgado de emoção. Tiro do bolso um pacotinho de lã amarela, e lhe entrego os novelos.
- Então vamos para o quarto – ela diz, me pegando pela mão. Atravessamos o saguão, seguidos pelos olhares de inveja assassina de outros homens, que nunca vão dormir com ela.
Eles não podem pagá-la.

Voltar Subir