Amor e bondade, decididamente não combinam...
GRAÇAS A DEUS EU AINDA SOU NOVA

Poliana pegou o namorado com uma amiga. O quê?!! Não! Não era sua melhor amiga. Mais uma conhecida. E Poliana também já andava cheia do namorado, que era o maior galinha.
Mesmo assim foi chato.
Sem namorado, Poliana dedicava seu tempo livre à Internet. Um amigo a colocou numa lista de discussão literária (Poliana estudava Letras). Foi lá que ela encontrou o Toninho.
O rapaz participava de uma discussão sobre Fernando Pessoa. Poliana mandou um e-mail, discordando respeitosamente de alguns pontos. Toninho respondeu puxando conversa. Em pouco tempo já estavam trocando e-mails.
Poliana descobriu que Toninho tinha mais ou menos a sua idade, também estudava Letras e adorava Clarice Lispector. Ora, "Clarice Lispector", para Poliana, era m codinome para “Deus”.
Os dois jovens literatos iniciaram uma correspondência febril, alternada por longas conversas no Msn. Toninho mandou a Poliana alguns versos seus, muito bonitos, embora um tanto parecidos com os de Álvaro de Campos. Os dois amigos também falavam de assuntos pessoais: Poliana contou a história do ex-namorado, que Toninho classificou como “um verme escroto”, e alternativamente, como “anta gaga”.
Tudo muito literário.  Mas Poliana ficou esperta. Na primeira ocasião, perguntou, en passant, se a namorada de Toninho também estudava Letras.
O rapaz disse que no momento não tinha namorada.
E-mails e longos diálogos no Msn se intensificaram. É verdade que, entre as aulas da Faculdade e o emprego de secretária, Poliana nem sempre tinha tempo para esse último meio de comunicação. Já Toninho estava sempre disponível. Explicou que, devido a problemas pessoais, precisara trancar a matrícula da faculdade naquele semestre. Esses mesmos problemas o impediam, naquele momento, de trabalhar. Toninho morava com os pais e irmãos num espaçoso apartamento da Zona Sul do Rio.
Pelo jeito com que falava, Poliana imaginou que estivesse se recuperando de uma depressão. Normal, todo mundo tem depressão hoje em dia, né? principalmente pessoas talentosas e sensíveis como Toninho (e mesmo que imitassem o Álvaro de Campos).
Ansiosa para conhecer o rapaz, escolheu a melhor das suas fotografias e mandou para Toninho. Fez isso com certa confiança, pois sabia que tinha uma aparência no mínimo razoável. Razoável? Ora, a modéstia que se danasse – Poliana era bem bonita!
Toninho demorou um pouco para retribuir. Quando sua foto chegou, veio num arquivo pesadíssimo, que Poliana teve dificuldade em abrir. Conforme a imagem ia se desenrolando na tela, surgiu a decepção: o rapaz era feio pra burro!
Tudo bem que a foto fora tirada na contraluz... e ele estava de costas para uma janela... mas o que dava pra ver não era promissor. Talvez porque a definição não fosse boa. Pensando bem: foto péssima, de amador.
E depois, Poliana nunca dera importância ao físico dos rapazes. O que contava para ela era o intelecto, o senso de humor, a cultura, essas coisas. E isso tudo Toninho já provara que tinha. Escrevia e-mails primorosos! E os dois tinham tantas afinidadeso...
Um dia, o telefone da casa de Poliana tocou; do outro lado da linha, estava Toninho. O coração da moça disparou. Ele tinha uma voz tão bonita... Pena aquela voz de mulher, e os latidos de cachorro ao fundo.

– Poliana, eu quero te conhecer – anunciou Toninho. – Vem me visitar no Rio!

A decisão foi tomada, numa avalanche de entusiasmo. Dali a dez dias, no primeiro feriado, Poliana arrumou a mochila, despediu-se da mãe divorciada, deu um beijo no focinho do cachorro e embarcou num ônibus para o Rio.
A mãe ficou em São Paulo, ansiosa por notícias. Pediu à filha que telefonasse assim que possível.

– E aí, meu amor? Como foi de viagem?
– Tudo bem, mãe... Só passei um calor...
– Ah, mas no Rio é muito quente mesmo. Onde você está hospedada? Ficou em algum hotel?
– Não, a família do Toninho me convidou pra ficar com eles.
– Que gentileza. Mas você não está incomodando?
– Acho que não, tem bastante espaço... 
– E o Toninho, hein? Vocês se deram bem?
– (...)
– Poliana? Poliana, meu bem, você está aí?
– Oi, mãe...
– Que foi? Por que está chorando?
– Não... é que o Toninho...
– Que tem o Toninho?
– Mãe, ele é horrível!
– Horrível? Como assim, Poliana?
– Medonho! Mãe, você não tem noção! Nunca na minha vida vi um cara tão feio!
– Nossa... mas tanto assim? Às vezes, na primeira impressão...
– Que primeira impressão! Ele é horroroso mesmo! De assustar criancinha!

Em São Paulo, a mãe de Poliana não sabia o que dizer:

– Bom, querida... se você não gostou dele...
Não gostei? O cara é um pesadelo!
– Então volte, né? Ninguém te obriga...

Mas Poliana, do outro lado da linha, não parava de fungar:

– Não, mãe, você não entende. A situação é complicada. É tenso, mãe.

E antes de prosseguir esta história, é bom esclarecer ao leitor – caso ele ainda não tenha percebido – alguns fatos básicos da psicologia de Poliana. Ela padecia de bondade terminal. Com oito anos, montara uma enfermaria de cachorros sarnentos no quintal de casa. Com doze, ajudava colegas impopulares a arranjarem namorados. Aos quinze, cuidava da avó com Alzheimer. E agora aos vinte, além de acumular todas essas missões,  também participava de uma ONG que dava aulas de reposição para crianças carentes.
Pois bem: ao chegar ao Rio, essa alma compassiva se deparou com um desastre em forma de gente. Se pessoas pudessem ser comparadas a catástrofes, Toninho seria um tsunami.
Era de fato medonho, e não simplesmente feinho como Poliana tinha imaginado. Orelhas de abano, acne purulenta, óculos fundo-de-garrafa... Isso sem falar na escoliose: o pobre rapaz vivia torto, e usava um colete que não melhorava sua aparência.
Se do lado de fora era esse desastre, por dentro Toninho também estava em pandarecos. Apesar da pouca idade, tinha um longo prontuário psiquiátrico, iniciado aos quatro anos. Sofria de uma série de fobias. Tinha medo de espaços fechados. De espaços abertos também, aliás. Era incapaz de dormir sem uma luz no corredor. Já passara por diversos episódios de depressão e Síndrome do Pânico.
A última crise ocorrera quando sua primeira (e única) namorada o abandonara. Pobre Toninho, ficou um caco. Foi aí que tentou se suicidar...

– Suicídio? – perguntou Poliana, empalidecendo.
– Isso mesmo – confirmou a mãe de Toninho, que desfiava o currículo do filho para a nora em potencial. – Aquela vaquinha largou meu filho e ele ficou um caco. Cortou os pulsos com gilete, foi parar no Miguel Couto... E depois caiu numa depressão horrível, não saía mais do quarto. Trancou a matrícula da faculdade...

– E o Prozac?
– Não funciona no caso dele – disse Dona Selma, abanando melancolicamente a cabeça.

Lágrimas vieram aos seu olhos. Logo em seguida, entretanto, reanimou-se  e afirmou que uma moça como ela substituiria com vantagem a fluoxetina.
Poliana suava frio. A família de Toninho contava com ela para “salvar” o infeliz. O garoto não saía de casa há meses. Por mais que insistissem, não queria nem dar uma volta no calçadão. Vivia trancado no quarto, lendo ou navegando na Internet. Estava fazendo terapia, mas quem disse que adiantava?
Outra pessoa sairia dali correndo. Mas, como já expliquei, nossa heroína sofria de bondade em estágio avançado.
Ficou.

Poliana passou quatro dias no Rio. No segundo dia, conseguiu convencer Toninho a dar uma volta pelo bairro.
Toninho foi, mas protestando que ainda tinha uns sites ótimos de literatura para mostrar à moça. Na verdade, Poliana inventara aquele passeio exatamente para sair do quarto, onde os dois estavam fechados desde que ela chegara (a família, compreensiva, deixara os pombinhos à vontade...). E por mais deprimido que Toninho estivesse, seus hormônios estavam em perfeita ordem. Tentara beijar Poliana várias vezes.

– Calma, Toninho. Vamos com calma – suplicava ela, escapulindo do rapaz.

Agora, estavam passeando na praia, abraçados debaixo de um sol escaldante. Poliana tinha perfeita consciência dos olhares curiosos que seguiam o par: a moça bonitinha e o rapaz esquisito de orelhas de abano. 

– Você nunca vai na praia? – perguntou ela.
– Ah, eu não. Poluída.
– Mas...
– E mesmo que não estivesse, detesto calor. E aquela areia que entra no calção? E os bichinhos? Sem falar no papo das pessoas... Detesto praia, sabia?

Poliana suspirou, pensando no biquíni novinho na sua mala.

Na hora do almoço, a família de Toninho em peso (pai, mãe, dois irmãos e uma irmã, mais avós paternos e uma tia muito simpática que veio da Barra da Tijuca) levou Poliana para comer no Porcão. Toninho não quis ir. Disse que as churrascarias, freqüentadas por uma pequena burguesia ignorante e vulgar, lhe davam aflição.
Na sobremesa, a candidata a sogra, falando ao ouvido da moça, lhe assegurou que podia dormir no quarto do Toninho. Ela entendia perfeitamente a situação. Era uma mãe moderna e sem preconceitos.
Poliana sorriu amarelo e recusou a sobremesa.
Cochilou a noite inteira, sobressaltada, no sofá da sala; morria de medo que Toninho viesse visitá-la. Felizmente o rapaz tomava um tranqüilizante tarja preta para dormir.
No terceiro dia, a irmã de Toninho e seu namorado convenceram o intelectual a sair com eles para um barzinho. Afinal, a coitada da Poliana não ia ficar o feriado todo trancada no apartamento!
Foi uma das piores noites da vida de Poliana. O lugar tinha pista de dança, e a irmã de Toninho ficou a noite inteira dançando com o namorado na pista, enquanto a pobre moça tentava repelir os avanços do pretendente. Que aliás a essa altura já se considerava namorado oficial.

– Vamos com calma, Toninho – implorava ela. – Também não é assim. A gente precisa se conhecer melhor...
– Conhecer pra quê? A gente combina em tudo, não tem mais o que conhecer – afirmava o rapaz, apaixonado.

Parecia um polvo, cheio de tentáculos e ventosas. Sem falar no sotaque, credo! No fim da noite, encurralou Poliana no banco de trás do carro e conseguiu beijá-la.

– Foi horríveeel! – gemia a coitada, de volta para São Paulo, contando o episódio. Sua melhor amiga, Carol, rolava de rir.
– Você vai me desculpar, Poli, mas é hilário...
– Hilário porque não foi com você! Nossa, quase morri! Parecia...
– Parecia o quê, criatura?
– Parecia uma ostra me beijando, juro por Deus! A sensação deve ser a mesma!

Carol não parava de rir.

– Tinha litros de cuspe naquele beijo! – gemia Poliana – E a língua então? O cara deve ter uns dois quilômetros de língua! Quase alcançou minha amídala!
– Pára, Poli, que eu passo mal de tanto rir... Mas me diz uma coisa: como ficou, no fim?
– Sei lá! No quarto dia inventei que minha mãe estava doente e saí correndo pra São Paulo!
– Mas vocês estão... namorando?
– Nada disso! Deus me livre,  não quero compromisso com aquele cara!
– Mas ele sabe disso? Ou está lá no Rio, crente que você é namorada dele?

Poliana abriu a boca para responder. Depois fechou de novo.

Pois ali começava a pior parte da história: Toninho estava convencido de que estavam namorando. Mandava uma enxurrada e-mails, telefonava na casa de Poliana, no celular... Um pesadelo.
Poliana queria esclarecer as coisas. Mas não era fácil. Sempre que pensava no assunto, lembrava-se da ex-namorada que levara o rapaz ao suicídio. Com certeza ela não queria ser responsável por uma coisa dessas! Por isso aceitava todas as declarações de amor do rapaz, sem retribuí-las, é claro - mas também sem contestar. E de longe, sem que precisasse ver sua cara, ele era uma gracinha. Tinha descoberto uns autores portugueses fantásticos, e assegurava a Poliana que Saramago já era coisa do passado. Dava indicações, palpites nos seus trabalhos escolares.
Um telefonema daqui, um e-mail dali, e ela foi levando a situação durante um mês. Foi então que dona Selma telefonou, exultante, para lhe dar a boa notícia: Toninho destrancara a matrícula, voltaria à faculdade no semestre seguinte. E esse progresso, sem dúvida, se devia à menina.

– Ele está outra pessoa, Poliana, você nem imagina!
– Que bom, Dona Selma... – dizia a moça, sentindo correr pelas costas um suor frio.
– E acho que agora convencemos o Toninho a fazer o tratamento!
– Tratamento? Mas ele já não está em terapia?
– Não, bobinha! O tratamento de ortodontia! Desde pequeno o dentista diz que ele precisa fazer. Além do problema da arcada dentária, dá excesso de salivação, entende?
– Ah, sim claro...
– E tudo graças a você, Polizinha.

Para completar a felicidade de Dona Selma, só faltava a menina voltar ao Rio. Dessa vez, é claro, para uma visita mais prolongada. Trabalho? Estudo? Ora, bobagens! Tirasse uma licença.

– Não posso porque semana que vem começam as provas.
– Não posso porque meu cachorro vai dar à luz. Ahn, quer dizer, minha cachorra.
– Não posso porque minha mãe está doente. É, de novo. Coitada, anda péssima de saúde.
– Não posso porque estou gripada. Muito gripada.
– Não posso porque esse fim-de-semana é aniversário da minha melhor amiga.
– Não posso porque...

Os fins-de-semana seguintes puseram à prova a criatividade de Poliana. Haja desculpa furada! Haja família doente, professores implacáveis, chefes carrascos, amigos exigentes! Dois meses depois, já tinha esgotado todas as desculpas minimamente críveis, e estava quase cedendo aos e-mails chorosos de Toninho, quando este - talvez para inflamar sua paixão - mandou-lhe uma nova foto.
Essa tinha ótima definição. Dava pra ver perfeitamente o sorriso do rapaz, emoldurado por um aparelho de dentes novinho.

– Não posso porque no sábado começam as aulas na academia!
A desculpa era idiota, mas verdadeira. Vida de intelectual junta gordura na barriga, e Poliana andava cheia dos seus pneuzinhos. Matriculou-se numa ótima academia e foi lá que conheceu Rogério.
Rogério não tinha a mínima idéia de quem fosse Clarice Lispector ("essa mina aí é da tua faculdade?") e achava que Fernando Pessoa fosse integrante da equipe econômica do governo ("Tô ligado. Banco Central, nénão? Vejo sempre ele no Jornal Nacional..."). Em compensação tinha olhos verdes, músculos definidos e um sorriso avassalador. Nunca pegava num livro, só visitava sites pornôs e era o maior baladeiro.
A princípio, Poliana não queria se envolver com ele. Claro que não! "Nada contra, Carol, mas é outra tribo, né?", explicou à amiga, que a olhava com ar cético, enquanto as duas bebericavam seus sucos de laranja no saguão do Espaço Unibanco. Mesmo assim, logo na primeira semana foram para um motel.
– E aí? - perguntava Carol.
– Show de bola, menina! - dizia Poliana, revirando os olhos, extasiada.
– E o beijo?
– Incrível!
– Por acaso não lembra uma ostra? - perguntava a outra, explodindo em risinhos incontroláveis.
– Cala a boca, Carol! Cruz Credo! Quer me brochar, é?
As semanas passavam e Poliana não enjoava de Rogério. Longe disso. Foi descobrindo suas qualidades. Ele adorava animais. Tinha uma irmã gracinha, fonoaudióloga. Um bom senso de humor. E nem era tão burro, tinha lido O apanhador no campo do centeio. Gostou, achou "um bagulho muito forte".
De tão entusiasmada, Poliana se esquecia de responder os e-mails de Toninho. Até que um dia, quando chegou em casa, a mãe a avisou:
– Sua sogra acabou de ligar.
– Que sogra?
– Sua sogra do Rio, oras. Parecia nervosa...
Poliana ligou para o Rio imediatamente. Dona Selma estava de péssimo humor:
– Poliana, o que aconteceu? Você e o Toninho brigaram?
– Não, Dona Selma, é que...
– Olha, ele anda péssimo. Péssimo. Voltou a se trancar no quarto, está faltando na faculdade, falou até em largar o curso de novo. Eu não sei o que está acontecendo entre vocês, né, Poli? você sabe que odeio me meter nessas coisas. Mas você precisa ter  responsabilidade, menina. Meu filho é um rapaz sensível. Ele teve problemas...
Para encurtar a história, neste mesmo fim-de-semana Poliana desmarcou uma balada com Rogério e embarcou melancolicamente para o Rio, de avião mesmo, para encurtar a chateação. Já no Santos Dumont, só de ver Toninho abrindo para ela o sorriso metálico, teve vontade de sair correndo. Mas fazer o quê? Foi para o seu apartamento com ele, reencontrou sua família - que a olhava com ar zangado - e submeteu-se à programação do "namorado". Visita a sites literários portugueses. Uma passadinha no Gabinete Real de Leitura, ela conhecia? lugar belíssimo. Ah, e também uma conferência do Ferreira Gullar sobre a Clarice Lispector, à noite, no Fundão. Imperdível.
Toninho estava todo animado, bem diferente da ruína humana que Dona Selma tinha descrito. Contou à moça que planejava uma mudança. Estava cansado de morar com a família, muito controladora.
– Mas pra onde você vai?
– Estava pensando em mudar de cidade. Quem sabe até São Paulo.
– Não!
– Não por que?
– É horrível lá! Você vai detestar, Toninho!
Quando voltaram da conferência, Poliana descobriu que o sofá tinha sido retirado da sala. 
Não teve jeito senão dormir no quarto de Toninho - que passou a noite tentando consumar a relação. Poliana teve direito, não a um, mas a vários beijos de ostra. Pensou que ia vomitar. Mas agüentou firme, alegando que estava no seu dia fértil.
– Mas com camisinha...
– Ah, não, Toninho, sou muito preocupada com essas coisas. Nem pensar.
Mas Toninho era infatigável e criativo. Propôs outras soluções, e Poliana acabou tendo de concordar com uma delas.
Depois, o rapaz adormeceu, exausto porém feliz. Poliana foi até o banheiro, lavou cuidadosamente as mãos e caiu em prantos. Pensou na pele perfumada de Rogério. Pensou na balada que tinham perdido. Pensou na possibilidade de ter de voltar outras vezes para o Rio. Pensou em outra possibilidade pior ainda: a tal mudança de Toninho para São Paulo.
Ah, não. Isso não. Tudo, menos isso.
Quando deu por si, Poliana estava na rua, de mochila às costas, procurando um táxi. Saiu de fininho, deixando Toninho e sua família inocentemente adormecidos. E, já no táxi, jurou que nunca mais botaria os pés no Rio. Nunca. Jamais. Não importava quando nem pra quê.
Cidade Maravilhosa, pois sim! O cacete!

Já em São Paulo, Poliana escreveu um longo e-mail para Toninho, explicando que não era possível continuar aquele relacionamento. Sentia que eram incompatíveis. Tinham perspectivas diferentes. Ela lhe desejava tudo de bom, mas realmente não deviam continuar. Estava num momento complicado da vida. Gostava muito dele como amigo, blá, blá, blá....
O pior nem foi a enxurrada de e-mails que Toninho mandou para ela depois disso. Poliana, covardemente, deletava as mensagens sem ler. Se ele estivesse ameaçando suicídio, não queria nem saber.
O pior foi o dia em que, inadvertidamente, atendeu o telefone e enfrentou a fúria de Dona Selma. A coisa mais gentil que ela disse à menina foi que ia processá-la. Danos morais e psicológicos. Seu filho estava um caco. Abandonara a faculdade. Não falava com ninguém, passava o dia trancado no quarto. Ela, Selma, tirara todos os instrumentos cortantes do apartamento. Toninho tinha ataques de fúria, coisa que até ali nunca lhe acontecera - ele era tão meigo! Até em internação o psiquiatra já tinha falado. Poliana tinha idéia do que sofria uma mãe num momento desses?
– Mas eu...
Claro, não tinha, porque era uma fedelha mimada e egoísta. Mas ficasse atenta. Se alguma coisa acontecesse com o seu filho, a culpa seria inteiramente dela. Só dela, entendia? E o tal processo não era só ameaça. Ela ia ver uma coisa.
– Mas...
Nesse momento a ex-futura sogra de Poliana bateu o telefone na sua cara, deixando a ex-futura-nora culpadíssima e em pânico.
Pobre Poliana! Desde o divórcio dos pais, sempre tivera muito medo de advogados.

Demorou para se recuperar da bronca. Mas com o tempo, como não tivesse mais notícias, foi esquecendo o assunto. O importante é que toda a história estava encerrada. A mãe de Poliana consultara um advogado, que dissera que aquela história de danos psicológicos era palhaçada.
Rogério voltou de uma viagem para Miami, e a convidou para uma festa na casa de um colega. Depois da festa, os dois, no maior atraso, foram parar num motel. Tiveram uma noite incrível.
No dia seguinte o casal estava tomando o café-da-manhã numa padaria perto da casa de Poliana. De repente, reparou que Rogério fixava uma figura atrás dela. Voltou-se e quase teve um infarto:
– Toninho! O que você está fazendo aqui?
– Sua mãe não quis dizer onde você estava... Eu fui te procurar!
O rapaz tinha um aspecto ainda mais assustador do que o normal. Emagrecera. O cabelo estava despenteado. Vestia um velho agasalho amassado, e Poliana, com um arrepio de horror, imaginou que ele tinha viajado direto do seu quarto embolorado, lá no Rio, para as ruas da Zona Oeste paulistana. Pronto para estragar uma manhã deliciosa.
– Seus pais sabem que você está aqui?
– Poliana, quem é esse cara?
– Toninho, se acalma, por favor!
– Poli, que história é essa? - disse Rogério - Quem é esse mané?
– Ele é... bom....
– TIRA AS MÃOS DA MINHA NAMORADA!
– Poli, você é namorada desse cara?
– Não! Não! Não é isso! é que....
No momento seguinte, Toninho empurrou Rogério para um lado. E um milésimo de segundo depois, estava no chão, derrubado por um murro fulminante.
– Puta cara folgado! - exclamou Rogério, ainda sacudindo o punho.
– Não bate nele, Rogério, pelo amor de Deus! - chorava Poliana, no auge da aflição.
– Não bate por quê? O cara chega aqui, me empurra, diz que estou com a namorada dele, e eu não posso bater?
Toninho, já de pé, cambaleava, com um filete de sangue escorrendo da boca. Tentou avançar de novo em Rogério. Poliana, aos prantos, o segurava. Rogério preparou outro murro.
– NÃO BATE NELE! - repetiu a moça, desesperada.
– Ah, é? Me dá uma boa razão pra eu não bater nesse cretino!
– Rogério! Pelo amor de Deus! ELE É DOENTE!
A mão do rapaz baixou:
– Doente?
– É... Doente da cabeça, entende? Autista! Eu fui pro Rio, conheci ele, e o coitado ficou imaginando coisas...
– Ah... - disse Rogério, já arrependido. - Não sabia. Você devia ter explicado. Desculpaí, cara. Foi mal - e, muito cavalheiro, estendeu a mão ao deficiente.
Toninho não dizia nada. Só olhava para Poliana, com uma expressão de dor inexprimível. Depois, virou as costas e foi embora, sem dizer uma palavra.

No dia seguinte, a mãe de Poliana, corajosamente, enfrentou a mãe de Toninho, e se assegurou de que o rapaz já estava no Rio. Um verdadeiro milagre, segundo Dona Selma. Um amigo da família o encontrara vagando no Aeroporto de Congonhas, sem dinheiro para voltar ao Rio. Viajara sem avisar a família. Voltara para casa, em péssimo estado, com um lábio inchado, como se tivesse apanhado. Estava enrolado na cama, em posição fetal. Dona Selma queria comunicar apenas uma coisa à mãe de Poliana:
– A senhora criou um monstro!
E bateu o telefone.
Nunca mais tiveram notícias de Toninho.

Claro que Poliana voltou ao Rio - muitos anos depois. Veio em lua-de-mel, inclusive. Andou no bondinho do Pão de Açúcar. Passeou pela Floresta da Tijuca. Foi ao Cristo Redentor. E passou dias e dias na praia, de biquíni. Depois de duas semanas, o marido  sugeriu - por que não? - um passeio diferente. Poliana já tinha ouvira do Gabinete Real de Leitura? Claro que não era o programa típico de turista no Rio, mas podiam tentar uma variadinha, quem sabe....
Poliana, que se esturricava ao sol do meio-dia, de olhos fechados, levantou o pescoço, abriu um olho para o marido e perguntou:
– Gabinete Real de Leitura?
– É. Um lugar bonito, diz que fica no Centro... Quer ir lá hoje à tarde?
– Nem fodendo - disse Poliana.

E fechou de novo os olhos.

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