O que acontece num reduto das mulheres
SENHORAS

Aquela foi a pior noite da minha vida. Ou não. No futuro a gente sempre arranja um buraco mais fundo pra cair.
Entrei na toilette do restaurante, bati a porta do banheiro com força e fiquei lá dentro abafando os soluços. Até que uma voz veio do outro lado da porta:
- Vai demorar, meu bem?
Desenrolei um pedaço enorme de papel higiênico, assoei o nariz, limpei as lágrimas:
- Já vou.
Quando saí, a mulher de meia-idade me lançou um olhar curioso, mas não fez nenhum comentário. Outras mulheres entravam no toilette, conversavam, retocavam a maquiagem. Do lado de fora estavam os jantares de fim de ano, as comemorações obrigatórias da "firma". Eu estava tentando fingir um caso grave de resfriado, quando ouvi um grito:
- Seu porra! SEU PORRA!
As mulheres se entreolharam. Uma moreninha parou o batom a meio caminho da boca e ficou esperando pelo resto.
- Sabe o que você é? - a voz era de homem, um barítono potente. Os dois andares do restaurante deviam estar ouvindo. - VOCÊ É O CARA MAIS ESCROTO DESSA EMPRESA!
Seguiu-se um murmúrio de protesto, logo  abafado pela voz ameaçadora que berrava:
- E outra. VOCÊ TEM CARA DE CU, OUVIU? DE CU, SEU CRETINO!
As mulheres se entreolharam, rindo. "É o que dá encher a cara", disse uma loira  vestida de preto.
A mulher de meia-idade saiu ajeitando as roupas. Lá fora alguém argumentava com o brigão, dizendo que não ficava bem uma coisa dessas; porque ele não se sentava e tomava um café forte; talvez já fosse hora de ir para casa...
- NÃO VOU PRA LUGAR NENHUM! - o grito soou no restaurante inteiro.
- Calma, Deodato...
- CALMA O CACETE! - o bêbado tinha muita energia pra gastar.
- As pessoas estão olhando...
- ELE É UM IMBECIL DO CARALHO! É ISSO QUE ELE É!
- Mas eu tenho que ver esse maluco! - anunciou a loira apagada, que saiu correndo do banheiro. As outras a imitaram. Na toilette ficamos só eu e a mulher de meia-idade, encostada à pia. Olhou pra mim e perguntou, com voz rouca:
- Se importa se eu fumar?
Eu não me importava com coisa nenhuma; se ela botasse fogo no restaurante, pra mim dava na mesma. Acendeu um cigarro e tragou uma baforada.
- Hoje em dia não se pode fumar em lugar nenhum, né?
Olhei-a com curiosidade. Era baixinha, magra, e não tingia os cabelos  grisalhos. Devia ter mais de cinqüenta anos e um ar de tranqüilidade absoluta que me deu inveja. Usava um conjuntinho azul-marinho de tergal de saia plissada e jaqueta, com camisa branca por baixo. Obviamente era sua roupa das grandes ocasiões, e não saía muito do armário - dava para sentir o cheiro de naftalina.
- Me solta, porra, ME SOLTA! - gritava o brigão, lá fora. Foi aí que a baixinha me surpreendeu. Acenando com o cigarro em direção à porta, informou:
- É meu marido. -  Fiquei pasma.
Nesse momento entraram duas moças. Vinham rindo, vermelhas:
- Menina, espera só essa festa acabar. Vou beijar muuuuito!
- Eu também, vou tirar a barriga da miséria!
Uma delas entrou no banheiro. A colega ficou em frente ao espelho, fazendo caras e bocas. Retomei a conversa com a mulher da saia plissada:
- Seu marido mesmo?
- Há trinta anos. Temos três filhos. Minha nora está esperando o primeiro netinho.
- Mas... o que aconteceu com ele?
- Bebeu demais, né? - respondeu ela, com naturalidade. - Sempre enche a cara nas festas.
- Carol, minha meia correu inteirinha! - exclamou a moça lá de dentro do banheiro.
- Tudo?
- Do calcanhar até a bunda. Ninguém merece!
- Mas 'cê vai ficar com a meia rasgada?
- Fazer o quê? As pessoas já beberam tanto, que nem vão reparar. - disse a moça de preto.
Depois as duas saíram rindo do banheiro. Minha companheira de refúgio continuava fumando e olhando o teto. Eu queria que ela falasse:
- Mas a senhora não liga... dele beber desse jeito?
- Se ligasse estava frita. Quando percebo que vai começar, saio da mesa, só isso.
- E como a senhora percebe?
- Ele esfrega o olho assim, ó - imitou. - Vai bebendo, ficando vermelho... e aí começa a esfregar o olho. É batata. Vou dando o fora.
- Mas... na empresa dele... não pega mal?
- Que nada, já estão acostumados. Se eu pudesse, dava um jeito nele. Mas não adianta, quando bebe não ouve ninguém.
Duas mulheres um pouco mais velhas entraram juntas. Uma delas tinha feito chapinha no cabelo; fios rígidos e pretos emolduravam seu rosto marcado pela acne. Falava baixo com a outra, uma ruiva anêmica:
- É joguinho dele, Marlene. A gente sabe muito bem...
- Não, é claro, ele está jogando verde pra...
- Você viu o interesse dele no departamento?
- Não parava de falar no assunto.
- Quer puxar  o meu tapete, isso sim.
- Você fique esperta - disse a ruiva, sacando um celular da bolsa - Não dê espaço. Aqueles relatórios... - Apertou alguns números no telefone e esperou, murmurando entredentes: - Nunca atende na hora, a folgada.
- Vai ver já foi dormir - disse a morena, abrindo a embalagem de aspirina, e engolindo dois comprimidos a seco. - Fechou os olhos - Ai que dor de cabeça. Odeio essas festas de fim de ano.
- Psiu - comandou a outra. Falou no telefone - Adelise? É Carmem. A Mariana já foi dormir? Ainda não? Mas o que ela está fazendo?
Longa pausa.
- Eu te disse pra não deixar ela grudada na televisão! A essa hora só passa porcaria.... Desliga e bota na cama. Amanhã é dia de visita do pai dela, esqueceu? - Outro silêncio - Não interessa se ela chorar. Bota na cama e pronto. Faça o que eu mandei. - Fechou com um estalo o celular, recolocou-o na bolsa e disse: - Não, mas é impressionante. Você fala, fala, fala, e parece que elas não absorvem. Deixa eu ir um pouco no banheiro - e entrou, fechando a porta.
- TIRA ESSE CRETINO DA MINHA FRENTE! - berrou de novo o barítono lá fora. Voltara com força total.
- Nossa, quem é esse palhaço? - comentou a morena, lá de dentro.
- Um desses caras que não sabem beber. - respondeu a ruiva. - Meu pai era assim. Bebia e dava vexame, a gente morria de vergonha. Fiquei com trauma.
- É horrível mesmo. - concordou a outra, lá de dentro.  Deu a descarga - Será que o imbecil é casado? Nossa, já pensou o vexame da mulher dele?
Olhei para a minha amiga da saia plissada. Estava fumando o resto do seu cigarro, com o mesmo ar de tranqüilidade budista.

Quando elas foram embora, tirou da bolsa uma escova de aço, deu uma ajeitadinha no cabelo e retocou o batom.
- Acho que agora já dá pra levar ele pra casa - disse, olhando para o relógio. - Foi um prazer conversar com você.
- Obrigada, igualmente.
 - E olha... Não fica assim, não. Homem nenhum merece isso.
Disse e saiu. Foi então que me lembrei do que tinha acontecido, e caí em prantos de novo.

No vagão do metrô para casa, vários bêbados dormiam. Mas só um me alarmou: um sujeito  com a cabeça derrubada sob os joelhos. "Aposto que vai chamar o Hugo", pensei, morbidamente satisfeita. Seria um fecho perfeito para a pior noite da minha vida. Mas quando o desastre aconteceu, saí do trem.
Não podia ficar no mesmo vagão com aquele bêbado e seu vômito.
Não passou mais nenhum trem naquela noite. Fui sozinha para casa, e no caminho quebrei um salto e tive que pegar táxi. O motorista que me deixou na porta do meu prédio, depois de cobrar um absurdo,  me desejou feliz natal e um próspero ano novo.

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