Se você acha que o masoquismo é uma questão de roupas de couro e correntes, prepare-se para mudar de idéia. Nesse texto, a Escrevinhadora apresenta a história de uma mulher perfeitamente normal, que vive mergulhada num mundo masoquista. Sara, a personagem principal, não tem fetiches, não gosta de chicotes e despreza os "pervertidos" que se excitam com essas coisas. Mas sua vida amorosa não passa muito longe da perversão...
S & M
Essa noite, Miguel voltou à minha cama.
Escuto sua voz, acaricio seu corpo. Aproximo meu rosto do seu. Mas não é mais Miguel quem está aqui; é um homem sem rosto e sem olhos. Ele rola seu corpo sobre o meu. Levanta o braço, e em sua mão há uma faca...
O telefone toca. Estendo o braço, pego o aparelho e resmungo "alô?". Uma voz eletrônica responde.
"São sete horas. Este é o seu serviço-despertador..." De tão tonta, respondo "obrigada" à voz eletrônica, e caio de volta na cama, exausta. Gripe. Estou ainda pior do que ontem... Mas tenho de levantar.
O que vou fazer hoje de manhã, mesmo? Ah, sim, as fotos.
Me arrasto até o banheiro e abro a ducha. Nem preciso me despir: dormi nua. Ultimamente, durmo sempre nua, como na época em que passava as noites com Miguel. E num frio desses... Não é de admirar que a gripe tenha piorado.
Ao entrar no chuveiro, arrepiada pelo frio dos azulejos, me lembro: é hoje. Ele mesmo disse: "Me liga na sexta-feira; sexta vai dar. Tenho certeza absoluta."
Foi assim que ele disse: "certeza absoluta".
Hoje é sexta-feira. Basta telefonar.

Assim que ligo a ducha, surge outro pensamento. O homem na cama. O homem do pesadelo, o homem sem rosto que substituiu Miguel...
O homem era Aparício José.
Deixo a água escorrer pelo meu rosto, imóvel. Mesmo dentro do pesadelo, antes do telefone tocar, eu já sabia que era ele.
Um belo insight para o meu analista; há semanas ele vem insistindo que Aparício José, na verdade, é um símbolo. Simboliza uma série de coisas em minha vida. Cabe a mim descobrir...
"Mas ele não é símbolo de coisa nenhuma", interrompo, irritada. "É de verdade, Ricardo, é real! Quer dizer, o nome deve ser falso, mas existe um homem por trás do nome."
"Tem certeza?"
"E como! Já te contei, o filho-da-puta me telefona três vezes por dia. Telefona e fica dizendo sempre as mesmas coisas: que vai me raptar, me torturar, um negócio de gelar o sangue. Sempre a mesma história, o cara deve ser completamente louco. Mas é real, não é símbolo de coisa nenhuma. Não estou inventando o Aparício José. Ele existe."
"É mesmo? Então, por que você não chama a polícia?"
Calei a boca, contrariada. Ele continuou me olhando com uma cara muito séria, como se estivesse de fato preocupado. Quem sabe goste de mim. A cem paus por sessão, quem não gostaria? Um dia desses ele mesmo chama a polícia. Ele ou o Paulo Renato -- outro que anda preocupadíssimo, achando que o Aparício José vai invadir meu apartamento e sumir comigo.
Quanta besteira.

Lavada e penteada, desço até a padaria. Moro em cima de uma das melhores padarias da cidade. Seu Gregorio, o espanhol dono do lugar, sempre me reserva uma mesinha de canto. Mesmo nos meus piores dias, mesmo morrendo de gripe como hoje, o cheiro fresco de pão é sempre um bálsamo.
Pão e café. Me sinto razoavelmente viva.
Oito horas. Ainda é cedo demais pra ligar. Com sorte, ele deve chegar ao trabalho lá pelas dez e meia, onze horas. Tenho o cronograma da revista na cabeça, tão bem memorizado quanto o meu fechamento. Sei que hoje Miguel terá um dia calmo. E eu? O mundo está caindo na minha cabeça. Ainda tenho de fechar dez páginas; as fotos de hoje talvez precisem ser refeitas; e o grande Lucas Favoretto, nosso escritor convidado, nem começou a escrever seu conto. Mas nada disso importa, eu vou arranjar tempo para ver Miguel. Agora de manhã. No meio do dia, na hora do almoço. No final do expediente. Não importa quando. Assim que ele tiver um tempinho, uma vaga na sua agenda, eu me encaixo. Largo tudo que estiver fazendo.
Olho de novo o relógio da padaria. Graças a Deus inventaram o celular. O que seria de mim sem essa máquina? que eu programei com o toque mais escandaloso possível, para que possa ouvi-la em qualquer circunstância, distraída que sou. E na improvável hipótese de eu não ouvir, o visor mostra a proveniência das últimas chamadas. Também instruí minha secretária, na revista, para me passar todos os telefonemas. Todos. Nunca se sabe. Ele pode ligar a qualquer momento.
Ruminando essas coisas, meus olhos se enchem de lágrimas, e aperto a correntinha debaixo do pulôver.

No caminho para o estúdio do fotógrafo, me convenço: é normal sonhar com Aparício José. Ele é o homem mais presente na minha vida, ultimamente. Mais do que Miguel, por exemplo. Quem me dera que Miguel me ligasse três vezes por dia, como esse tarado!
É normal, portanto, que eu sonhe com Aparício. Tão normal quanto ter um amante casado que nunca me liga, quanto dirigir uma revista de sadomasoquismo, quanto pular da cama às sete da manhã para ver uma moça de dezenove anos ser chicoteada e torturada.
Hoje é dia de rodízio, tive que apelar pro táxi. Jesus, como esse estúdio fica longe... Quanto mais famosos ficam os fotógrafos, mais longe vão se instalar. Levam seus estúdios para lugares inacessíveis, horrorosos -- perto da casa da mãe, ou da amante, vai saber. E como eu odeio essa cidade. Como é feia essa avenida Santo Amaro, com seus edifícios sujos, pichados, abandonados... Os barbantes que pendem dos postes, com os indecifráveis tênis velhos nas pontas. Será que essa gente quer dizer alguma coisa, quando pendura tênis em fios elétricos, ou enche as paredes com caracteres indecifráveis? Só Deus sabe, ultimamente estou ficando religiosa.
São quase nove horas. Se eu ligasse pra casa dele.... Não, nem pensar.

As pessoas não entendem. Minhas amigas -- as poucas que ainda têm paciência para me ouvir -- não compreendem. Ficam olhando perplexas. Onde estão meu orgulho, minha auto-estima? ou, no mínimo meu simancol? Preciso me tratar. Fazer terapia, sugerem elas.
-- Já estou em tratamento -- observo.
Uma delas, quando contei a história, só faltou me bater: "Mas eu conheço esse cara há anos! É o maior galinha, transou com todas as mulheres que trabalharam com ele! E está casado há quinze anos. Não vai se divorciar nunca. O que você está fazendo com ele?"
Eu nem sabia o que responder. Com trinta e cinco anos, você já sabe quando enfiou o pé na jaca (para usar uma imagem elegante, na verdade não era bem jaca que eu queria dizer...). Já sabe quando está ferrada, seja lá o que faça.
Às vezes faço planos detalhados para romper com Miguel. Não vai ser difícil, ele não parece muito apaixonado ultimamente. Acabo com essa história e começo vida nova. Faço uma viagem. Na volta reformo meu apartamento, vejo mais os amigos, trabalho menos, arranjo um hobby... Já desfiz outros namoros antes. Não sou daquelas que preferem qualquer coisa à solidão.
O problema não é ficar sozinha. É ficar sem Miguel.
-- É aqui, moça?
Olho pela janela do táxi. Uma casa enorme, pintada de amarelo pálido, com um belo jardim... É longe, sim, mas que beleza! O número está certo.
-- Aqui mesmo, obrigada.
Toco a campainha e espero a resposta do porteiro eletrônico. Estou gelando com o vento frio. O casaco parece que não adianta. Nem as meias grossas que coloquei pra andar de saia.
-- Pois não?
-- Eu queria falar com o Sérgio, por favor.
-- Quem é?
-- Sara Becker, da revista S & M.

Todos já chegaram: Paulo Renato, Sérgio -- o fotógrafo que vai fazer a sessão,-- maquiadora, iluminador, e a vítima.
Dezenove anos, disse Paulo Renato; mas agora, olhando pra ela, sinto um calafrio. Serão dezenove mesmo? parecem dezesseis... Mas não, é claro que meu editor de fotografia não me botaria numa gelada dessas.
Cumprimento todos, tiveram a gentileza de esperar por mim. A modelo/vítima sorri, e só então me lembro porque estou preocupada com essas fotos.
-- Paulo, me arranja um café?
Vamos para a outra sala, onde há uma reluzente máquina de café expresso. Não dá pra acreditar. Isso aqui é um palácio.
-- E aí, Sara? O que é que tá pegando?
Meu editor de fotografia me conhece bem, sabe que há algo errado.
-- Paulo... os dentes dela são horríveis! Essa menina não usou aparelho?
-- Faz parte do charme, ela é meio dentucinha... E tem um corpo lindo, você não vai negar.
-- Mas quando sorri é um horror!
-- Ela não vai sair sorrindo.
Tomo um gole do café. Excelente.
-- Paulo, vou ser franca: essa menina aí, sei lá, parece que saiu de um trem de subúrbio!
-- Sara, sabe qual é o seu problema? É essa sua mentalidade de revista masculina tradicional. Você quer tudo bonito, maquiado, impecável, sem celulite... Isso aqui é diferente, minha filha. Os nossos taradinhos não compram revista pra ver mulher bonita.
-- Peraí, meu querido. A S & M é uma revista sadomasô...
-- De luxo, eu já sei, diferenciada, artística, tudo que você quiser. Mas ainda é sadomasô. Não vale mau-gosto, mas também não somos publicidade de lingerie.
-- Ué, não era o senhor o rei dos anúncios de lingerie?
-- Isso mesmo. Por isso me chamaram pra cá. Sara, qual é o problema com você hoje, hem?
Não digo nada. Meus olhos se enchem de água. Paulo Renato balança a cabeça, exasperado.
-- É o babaca de novo?
-- Não! Quer dizer, também é. Mas estou preocupada com essa garota. Parece recepcionista de concessionária, entende?
Ele ri.
-- É um look meio sujo, Sara, mas eu sei o que estou fazendo. Confia em mim. Vai dar certo.
-- Essa menina é muito nova, não é? Coitada.
-- Essa menina é modelo. É uma profissional.
Engulo mais um pouco de café. Olho de novo para ele:
-- Paulo...
-- Que é?
-- Ela tem mesmo dezenove anos?

Paulo Renato tem razão. Eu devia confiar mais nele.
Por que não, afinal? Até agora, nossa dobradinha deu certo. "S & M" é um sucesso absoluto, incontestável. Recebo elogios mensais dos meus patrões - que, embora dirijam a maior editora do país, preferem não se associar abertamente à revista. Criaram um novo selo para ela.
Mas, como eu estava dizendo, todo mês eles - ou os seus representantes -- ligam para me elogiar. "A qualidade está fantástica"; "É a revista mais bem-cuidada do país"; "Já recuperamos o investimento todo, sabia?"; "O conto do....... (preencher o espaço em branco com algum luminar da literatura nacional) estava incrível". Quase digo: "nesse caso, quero uma redação maior, não meia dúzia de cubículos no cantinho mais escondido do prédio".
Mas acabo me calando.
Sei porque me telefonam com tanta freqüência, e me fazem elogios tão pontuais. Eles temem que, mesmo com o salário que ganho (definido por um colega, muito a propósito, como "pornográfico"), eu peça demissão um dia desses. Não por escrúpulo moral, e sim vaidade ofendida: "E então, Sara, me disseram que você mudou de emprego. Onde está trabalhando agora?" "Numa revista sadomasô". "Ah, ah, ah. Puxa, Sara, você não leva nada a sério. Deixa de piada."
"Não é piada. É verdade."
As caras de incredulidade que se seguem são hilárias.
"Você quer dizer, AQUELA revista?" Eles sabem do que eu estou falando: todo mundo já folheou "S & M" no mínimo uma vez. Fico até imaginando a cena.
Jornalista Sofisticado chega à sua banca de jornais favorita, enfia o nariz nas prateleiras, e de repente dá com uma capa doentia, ultrajante, extremamente bem-fotografada. Qualidade gráfica de primeira.
Jornalista Sofisticado hesita. Finalmente -- depois de uma olhada para ver se o jornaleiro está distraído -- espicha a mão e começa a conferir o material.
Não sabe o que o deixa mais horrorizado: se a brutalidade das fotos ou a excelência do papel cuchê fosco, caríssimo. Balança a cabeça e constata que o mundo está perdido, a violência está banalizada, e olha o preço desse troço! Será que tem gente que COMPRA isso? Jornalista Sofisticado hesita. É possível que, depois de longas considerações, acabe levando "aquele lixo" para casa, escondido das crianças, é claro. Mas duvido que a sua curiosidade vá ao ponto de verificar o expediente.
Tudo isso para dizer que, embora eu já esteja no meu segundo ano de "S & M" pouca gente, no "mercado" sabe o que estou fazendo. Não escondo; são eles que não sabem.
Mas meus patrões devem imaginar que me sinto envergonhada.
(Santa ingenuidade. Alguém que é amante de Miguel Arbache ainda tem, por acaso, alguma dignidade a resgatar?)
Ou talvez, quem sabe, eles tenham medo que eu me aborreça com o Taradinho Número Um.
Eu e Paulo Renato colocamos em nossos leitores o apelido carinhoso de "Taradinhos". Taradinho Número Um, entretanto, não é leitor, e sim o pai de S & M -- assim eu como posso ser considerada a sua mãe.
Taradinho Number One - que é considerado um gênio do marketing, não sei, não entendo desses troços - fez todo o projeto. Inteiramente chupado, é claro de uma publicação que viu no exterior.
Para ser justa, ele também bolou um monte de coisas originais para a revista. Começou com o cara que fez o projeto gráfico, um francês que mal fala a sua língua, que dirá a nossa. Mas o cara é bom, muito bom. O projeto é uma beleza. O preto-e-branco das fotos contrasta ousadamente com toques de cor no texto; as colunas são largas, arejadas...
Taradinho Numero Uno bolou todo o conceito do veículo. Tudo. Não interferi em nada. Cheguei a propor, é verdade, uma seção de consumo, coisa mais leve, meio "sex-shop", com correntes, botas pretas, chicotes... Que tal? Não, nada disso - ele balançou a cabeça, impaciente. A idéia não é essa, Sara. Isso banaliza, entende? A gente quer que essa revista dê um arrepio no leitor. Queremos que ele compre, sim, mas com complexo de culpa. Queremos apelar para o lado escuro das pessoas, entende? Se eu boto aí umas algemas à venda por cinqüenta o par, realmente...
Demorou para entendermos - eu e o Paulo Renato - o aspecto visual que ele queria. É explícito? - perguntava o fotógrafo, perplexo. Ele balançava a cabeça, exasperado com a nossa falta de compreensão. "É e não é". Como assim, é e não é? Finalmente, ele disse que não seríamos explícitos. Mas deveríamos deixar o leitor sempre na dúvida. Era bizantino, o nosso taradinho.
Para que entendêssemos melhor, desaguou numa caudalosa discussão conceitual. O sadomasoquista - explicou -- é um ser incompreendido, rejeitado pela sociedade. Todo mundo o considera um pervertido, um criminoso. Tudo que ele quer é exercer as suas preferências sossegado, mas ao mesmo tempo, atenção! se o sadomasoquismo virar um esporte universalmente aprovado, aceito, acolhido, oficializado, perde a graça. Chicotes, correntes e abjeção - esse é o paraíso sadomasô.
E ao mesmo tempo, não esqueçam, o sadoquinha não é qualquer um. Trata-se de um ser refinado, um esteta. Pensem em quantos artistas tinham essas preferências -- a começar pelo Marquês. É um público seleto, não duvidem. Seu bom gosto e refinamento sofrem com essas revistinhas pornô meia-boca que andam por aí. Modelos caídas, fotos de péssima qualidade... Imaginem a intensidade do prazer culpado do sadomasô, ao deparar com nossa revista! Imaginem o delírio! Poderíamos cobrar o preço de capa que quiséssemos - eles pagariam. Anúncios? Apostava que em pouquíssimo tempo, o sucesso de um produto tão caro atrairia anunciantes de produtos para a classe A, la crème de crème. Fabricantes de uísque doze anos, carros de luxo, celulares interplanetários, o cacete a quatro -- todos se digladiariam para conseguir um lugar ao lado das nossas bonecas torturadas.
Quando saiu da sala, ainda vermelho e triunfante da sua argumentação, Paulo Renato olhou pra mim e disse:
-- Ele é.
-- É o quê?
-- Sadomasoquista. Garanto que é chegado num chicote.
Debatemos por muito tempo esse ponto. Taradinho Numero Uno seria um aficionado, ou apenas um marqueteiro inovador? O que posso dizer é que, naquela tarde, tive a certeza que o projeto ia afundar. E me preocupava a idéia de afundar junto, num barco comandado por um louco furioso. Fui pedir demissão.
Mas aí, dobraram meu salário.
O assistente do fotógrafo está apagando os refletores. O fotógrafo armazena os filmes nas latinhas. A vítima já se levantou da sua posição humilhante, e a produtora retira as tenazes que prendiam seus mamilos. Ela suspira de alívio:
-- Nossa, tava chatinho esse troço, viu? - comenta. Mais ou menos, como eu, na idade dela, me queixava da depilação às minhas amigas. Um pequeno sacrifício, mas é preciso sofrer para ser bela.
Já chegaram cartas de feministas à minha redação. Elas dizem que estou estimulando a violência contra a mulher. Sinto um vago incômodo, mas me consolo ao pensar nos filmes que as minhas sobrinhas (oito e dez anos) assistem à tarde, na televisão. Eu estou estimulando a violência contra a mulher? Ora, francamente, irmãs feministas. E outra coisa, vocês não sabem distinguir a fantasia da realidade? Por favor. Mais feminista que eu não tem ninguém, comecei a trabalhar aos dezessete anos. Desde então, nunca dependi de homem nenhum (exceto, é lógico, Miguel. E aí não conta, é dependência emocional).
E depois, "S & M" não têm seção de cartas.
Um último argumento me ocorre, enquanto ajudo a modelo a tirar a roupa de tachinhas. Minha revista também tem homem apanhando! Melhor ainda: apanhando de mulher! Reciprocidade total. É a democracia da pancada: tem pra todos, sacaram?

-- Que corrente bonitinha! -- diz a menina, amável. -- Posso ver?
Relutante, estendo o pescoço. Ela apalpa o pingente.
-- S & M. Que engraçado! -- Dá uma risadinha cheia de dentes tortos -- Fazendo propaganda da revista, hem?
Não é da revista -- quero protestar. Miguel me deu esse pingente. S e M são as iniciais dos nossos nomes.
Como não posso dizer nada, me limito a sorrir.

-- Vou pegar um táxi.
-- Táxi? Aqui? Tá delirando, Sara? Você vai é piorar essa gripe, de pé aí na calçada... Entra no carro.
Não tem jeito, Paulo Renato é inflexível. Entro, contrariada. Queria ficar sozinha para tentar de novo - pela terceira vez essa manhã - falar com Miguel.
-- Posso usar sua bateria pra carregar o celular? - pergunto, assim que entro.
-- Se for pra falar com aquele cretino, não - responde ele, fechando a cara.
Não digo nada, só o olho com ar suplicante.
-- Tá bom, liga, vai - ele se resigna - Você não toma jeito...
-- Você é que é superprotetor, Paulo Renato. Eu estou bem. Não precisa se preocupar comigo.
Olho o relógio. Faz quinze minutos que liguei pela última vez. A mulher que me atendeu disse que ele estava na reunião de pauta. É estranho. Não sabia que eles faziam reunião de manhã.
Vou esperar mais um pouquinho. Quando cruzarmos a Brigadeiro, eu ligo.
O telefone toca, atendo imediatamente, sem nem olhar o visor:
-- Alô.
Silêncio do outro lado. Sinto um pressentimento, repito o "alô", nenhuma resposta chega. Quando já estou para desligar, ouço a voz. Ele tem a língua presa, seu sussurro é inconfundível:
-- Vosssê essstá aí?
-- Estou. Sou eu mesma.
Paulo Renato, conversando com a mocinha que lhe oferece folhetos, no cruzamento, nem percebe a ligação. Eu poderia desligar. Mas ele ligaria em seguida...
-- Ficou com sssaudades de mim?
-- Pára com isso, cara.
-- Um dia eu vou te busssscar.
É agora, oh, meu Deus, lá vai ele de novo.
-- Um dia vou te bussscar na tua casa. De noite. Na sssua cama. Você vai gossstar, Sara. - Começa a ofegar e vai enumerando todas as etapas, são sempre as mesmas, com pequenas variações.
Ele segue um padrão: três a quatro ligações por dia. Sempre uma delas, a primeira, é mais detalhada. As outras são só para dizer obscenidades rápidas.
Se eu cortar a ligação, ele liga de novo. E de novo, de novo e de novo, até cansar, impedindo Miguel de ligar para mim. Se eu desligar o celular, Miguel não vai conseguir falar comigo. E depois eu vou ouvir os recados na caixa postal, mais arrepiantes ainda, porque não é possível argumentar com uma voz gravada. O melhor é ouvir agora, até o fim. Depois, quem sabe, ele me dá uma trégua de algumas horas.
-- Aparício, você precisa se tratar - falo, com voz paciente. Voz de mãe, de enfermeira, de psicóloga. - Você está doente, entende?
-- .... e depois te rasgo aos pouquinhos com uma faca que eu tenho aqui em casa. É uma faca boa, custou bastante dinheiro, só que está um pouco enferrujada. Então eu vou ter de rasgar devagarzinho, entende? mas de um talho só, um talho bem grande, dos peitos até a ....
E continua, excitadíssimo. Sei, mas não quero imaginar o que ele está fazendo do outro lado. Sei que se interromper antes que ele chegue ao gran finale - minha morte depois de uma agonia crudelíssima, que dura dias - ele volta a ligar, mais cedo ou mais tarde, para retomar a história. Retoma exatamente do ponto em que parou, tem uma memória fantástica.
A história é sempre a mesma. Variam algumas circunstâncias, e o grau de crueldade. Me lembro que das primeiras vezes ele me deixava morrer com um misericordioso tiro na cabeça. Depois foi piorando, piorando, até chegar ao ponto atual, em que leva dias me torturando. Estou ouvindo essas histórias, diariamente, há três meses.
-- Aparício, vamos conversar...
-- ... vossê vai pedir pra morrer, mas eu não vou te deixar morrer tão fássil....
Que tipo de louco será esse, meu Deus? Esquizofrênico? Psicótico? Se ao menos eu entendesse um pouco de psiquiatria... Paulo Renato dá um solavanco brusco na direção, vira à direita.
-- Que é isso? O que você está fazendo? - pergunto.
-- A gente vai pra delegacia agora - diz ele. - Vamos pegar esse cara. Você não tem olho mágico?
Desligo o celular.
-- Não adianta, meu querido, ele liga de orelhão. Dá pra ver pelos números, cada vez é um número diferente.
-- Pois eles vão até o orelhão e prendem esse cara.
-- Paulo Renato, você anda vendo muito filme americano. Acha que a polícia vai se interessar em prender um maluco desses? Eles têm mais o que fazer!
-- Imagina se o cara descobre onde você mora, vai na tua casa e faz um décimo do que está prometendo!
Cometi o erro, uma vez, de deixar Paulo Renato ouvir o cara no viva voz. Ele tem certeza de que Aparício José fala a sério:
-- Sara, você está brincando com fogo. O cara descobriu o número do seu celular! A polícia precisa fazer alguma coisa!
-- Como? A gente já foi atrás do endereço dele, era falso...
-- Não sei como, Sara. Alguma coisa eles precisam fazer.

Vários quarteirões depois, consigo que ele desista da polícia - em troca da promessa de mudar o número do celular. Suspirando, ligo de novo o aparelhinho, e telefono imediatamente para Miguel. Direto no celular dele.
-- Alô?
-- Miguel, é Sara.
Silêncio nervoso. "Um minutinho", resmunga ele. Ouço seus passos, se encaminhando, presumivelmente, para o canto mais discreto da redação.
-- Sara, meu amor, eu pedi para você não ligar no celular.
-- Eu sei, mas é que...
-- E se a Taís estivesse comigo? Eu já te disse, ela vigia todos os meus telefonemas, todos.
-- Eu sei - limpo a garganta. Preciso me livrar dessa voz de menininha amedrontada. -- Mas é que já liguei três vezes aí na redação e não consegui falar com você...
-- Eu estava numa reunião, meu amor - já posso sentir um toque de impaciência na sua voz.
É quando ele fica mais impaciente, de saco cheio, que abusa do amor e do querida. Amor e querida, para Miguel Arbache, são pronomes impessoais depreciativos, pelos quais ele trata todas as mulheres que estão abusando da sua paciência. Às vezes, elas têm a ousadia de se opor a ele, de recusar as suas explicações cheias de vaselina. Então ele as trata de minha querida e meu amor, nessa voz onde se misturam, ao mesmo tempo, a mais extrema delicadeza e a mais irreprimível impaciência com a burrice, insensibilidade e cegueira do sexo feminino. Minha querida, meu amor, você não se enxerga?
Miguel Arbache é um cavalheiro.
-- Mas hoje é sexta-feira, vocês já fecharam a revista...
-- Estávamos fazendo a pauta pra semana que vem.
Reunião de pauta: foi bem isso que a mulher disse. Portanto, ele não está mentindo.
-- Você disse pra ligar hoje, lembra?
É só uma fração de segundo. A hesitação seria imperceptível para alguém que não o conhecesse:
-- Claro que pedi. - Ele esqueceu.
Uma dorzinha aguda começa a me triturar o peito. Mesmo assim prossigo, corajosamente:
-- ... pra ver se a gente podia sair, ou sei lá, você passar em casa hoje à noite.
-- Lógico, meu bem, estou lembrado.
Mentira. Mentiroso. Mentir, para ele, é tão natural quanto respirar. Mas quem ouve essa voz confiante, sonora, acredita em tudo. "Quando eu preciso conseguir alguma coisa de mulher, boto o Miguel no telefone", me confessou uma vez o chefe dele. Ele mente com essa voz tão sexy, e todo mundo acredita.
-- Então? Passa em casa de noite?
-- Passo, passo. - Meu peito se enche de felicidade, meu coração se expande, os pássaros cantam no meio-dia cinzento.
-- Vou ficar te esperando.
-- Claro. Mas... me liga lá pelas duas horas, só para confirmar.
-- Você não tem certeza?
-- Não, eu tenho, é só para acertar umas coisas... Eu até disse para a Taís que tinha uma reunião hoje. Não se preocupe.
-- Então a gente se vê, né? - a voz da menininha insegura retorna.
-- Claro. Mas me liga mais tarde.
-- Um beijo, então.
-- Outro.
Desligo o telefone, e enfrento a cara de reprovação de Paulo Renato.

Eu realmente gostaria de ir ao restaurante e pedir um almoço completo. Mas não há tempo. A revista está fechando. O melhor é pedir um sanduíche na lanchonete.
Paulo Renato, que almoça religiosamente todos os dias, corta minhas explicações, antes de descer ao restaurante:
-- Fechamento coisa nenhuma, Sara. Você não quer é sair de perto do telefone.
É verdade, confesso. E se Miguel ligar para a redação? Preciso pedir à companhia um daqueles serviços onde a ligação de um determinado número é encaminhada ao celular. Seria muito prático.
Começo a me organizar para as tarefas do dia. Pedir mais modelos à agência, Taradinho Número Um tem exigências complexas quanto às modelos. Têm que ser bonitas, claro, mas ele não quer tipos muito comuns, "gênero comercial de pasta de dente". (Por isso Paulo Renato me apareceu com a dentuça de hoje). Sempre uma beleza meio intrigante, mas com um detalhe algo estranho. Só um detalhe: ele também não quer tipos exóticos demais, com o cabelo azul ou tatuadas da cabeça aos pés.
Taradinho Número Um exige, basicamente, dois tipos de modelos. As dominadoras devem ser mulheres opulentas, de preferência com peitos generosos, coxas fantásticas, etc. Já as dominadas ele prefere que sejam anoréxicas, à la Kate Moss, com um ar famélico e desamparado. O efeito é fantástico. A gente olha aquelas mulheres nas fotos, e realmente imagina que ficaram meses numa cela escura, amarradas por correntes. Nem é preciso caprichar na produção.
Taradinho quase baba ao falar no assunto. Foi uma luta impedi-lo de acompanhar a produção das fotos. A essa altura, nossa única dúvida -- minha e de Paulo Renato -- se resume numa pergunta: ele curte bater ou apanhar? Pelo que vimos até hoje, parece que as duas situações o excitam igualmente....
Próxima tarefa: cobrar o conto de Lucas Favoretto, meu luminar da literatura desse mês. Está atrasado, eles sempre atrasam. E tenho até medo de cobrar. Com certeza vou ouvir de novo as suas queixas: ele está se separando, a mulher levou tudo do apartamento -- tudo, tudo, tudo... Pelo menos deixou o computador para você escrever? Perguntei da última vez, alarmada. Houve um silêncio do outro lado da linha; depois o luminar respondeu secamente que sim, ela deixara o computador. Suspirei de alívio, mas agora ele me acha uma insensível.
Quando estendo a mão para o telefone, ele toca. Atendo e nem sinto surpresa ao ouvir a voz do outro lado. A voz ciciante de sempre:
-- Por que você desssligou aquela hora?
-- Tive que sair... (Eu não acredito: estou dando explicações a um maníaco furioso).
-- Quando eu te pegar, nunca maisss você vai poder sssair. Nunca maisss vai pra lugar nenhum.
Não posso negar que existe algo de poético -- de lírico, por assim dizer - nos delírios dele. "Nunca mais você vai pra lugar nenhum". Esse não é o sonho de todo amante, de todo apaixonado? É o que eu gostaria de dizer para Miguel. Não, Miguel, você não vai mais pra lugar nenhum. Vai pra cama comigo, acorda comigo, toma café-da-manhã, vê televisão à noite, de mãos dadas comigo... Nunca mais vai sair, nem voltar pra tua mulher.
Normalmente, os homens casados contam às suas amantes que a mulher é uma chata, uma neurótica, que só estão juntos por causa dos filhos, etc. Miguel não. Miguel nunca fala mal da mulher. Ela é uma artista plástica brilhante, segundo ele -- parece que a crítica também acha a mesma coisa. Brilhante, generosa, boa mãe; mas instável, sujeita à terríveis depressões. "Quando ela está deprimida não consegue fazer nada. Fica jogada na cama, você nem imagina." E é difícil para o coitado cuidar da casa e dos filhos, quando ela está deprimida. E numa situação daquelas, nem pensar em divórcio. Taís não suportaria. O psiquiatra avisara que casos como o dela, às vezes, terminavam tragicamente...
Eu ficava perplexa, é verdade, quando às vezes encontrava os dois em festas, ocasiões sociais. Ela era bonita, vestia-se bem, parecia alegre. Quando comentava com Miguel, ele suspirava e dizia: "É... Ontem, graças a Deus, ela estava num dia bom."
Que saudade daquela época em que eu engolia tudo, sem um pingo de descrença. Ficava impressionada, balançava a cabeça gravemente, fazia todos os ruídos adequados de compreensão e simpatia. Miguel dizia que era preciso tomar cuidado com Taís. Ela era frágil. Muito frágil.
Eu não sou frágil. Eu agüento tudo. Não estou aqui, ouvindo Aparício José?
-- Eu vou te matar, Ssssara, você vai ver como eu vou te matar. -- ele está ofegante mas feliz. Fico olhando para a parede, com o olhar perdido, brincando com um lápis, enquanto ele dá o toque final -- Eu sssei a cor e o modelo do ssseu carro, sabia? E a placa também, viu? -- Aparício José canta os números, triunfante -- Ssssei onde você mora... Eu vou pegar você.
Talvez eu devesse ficar preocupada. Ultimamente, ele está fazendo ameaças mais concretas. Talvez seja melhor chamar a polícia. Mas a verdade é que não faço nada. Depois que ele desliga, continuo sentada no mesmo lugar, olhando a parede, imóvel.
Não consigo acreditar nas ameaças de Aparício José. E se não consigo acreditar, é porque acho que ele não existe. É isso! No fundo, vejo Aparício José como uma personagem que eu criei.
E, na verdade, não é um pouco assim?

No princípio era o verbo. Ou mais exatamente, no princípio eram as cartas.
Taradinho Número Um era contra a seção de cartas, alegando, mais uma vez, que "banalizaria" S & M. Eu era a favor. Chegava tanta coisa! Além das feministas, havia legiões de taradinhos agradecendo, sôfregos, nosso trabalho. Cartas ponderadas elogiavam a "sofisticação" da revista. Cartas mais sinceras eram impublicáveis.
Era gratificante ver meu trabalho reconhecido pelos leitores.
Taradinho Número Um acertara em cheio; tínhamos descoberto uma verdadeira mina de ouro, um filão escondido. Edição após edição se esgotava ao chegar às bancas. A tiragem aumentou. E, como tinha previsto nosso gênio do marketing, logo surgiram os primeiros anunciantes.
Vieram exatamente do cobiçado segmento de luxo. Chegaram ressabiados, tímidos, mas logo foram tranqüilizados pelo papel cuchê, o preço de capa, etc. A direção da editora promoveu Taradinho Número Um e aumentou meu salário.
Foi nesse contexto que chegou a carta de Aparício José -- uma verdadeira obra-prima.
Paulo Renato ficou horrorizado com a carta. Para falar a verdade, eu mesma me senti um pouco chocada. Mas a essa altura já estava começando a me sentir melhor no emprego, a ter idéias, a querer melhorar a revista; e foi aí que me ferrei.
A introdução era modesta e razoável. Aparício José (assinava assim mesmo, com endereço e RG -- que depois descobrimos serem falsos) se dizia um leitor entusiasmado. Elogiava a qualidade da revista, e principalmente a seção de contos. E, já que gostava tanto dessa parte, resolvera nos mandar uma pequena contribuição. Ele também tinha uma certa inclinação literária, escrevia "ficção erótica"...
E aí vinha o conto: a mesma história que ele me conta todas as manhãs pelo telefone, um pouco mais refinada, com os detalhes menos escabrosos. Mas a idéia básica era a mesma: mulher raptada por um homem apaixonado (por assim dizer) sofre os piores horrores nas suas mãos para aprender a "retribuir" o seu amor. A maior diferença é que havia um happy end: ela se apaixonava pelo seu torturador, e os dois viviam felizes para sempre.
Ele batendo, e ela apanhando.
Eu sei: falando assim, parece uma baboseira irrecuperável. Mas tinha estilo. Não era pior que a produção média dos nossos luminares da literatura. Um pouco mais violenta, talvez... Mas era bem escrito. Taradinho Número Um também gostou do conto.
-- Muito bom. Material de primeira.
Aprovou integralmente a minha idéia, porque não abrir espaço na seção de contos ao nosso leitor? Tanto mais que o próximo escritor convidado estava nos enrolando. Tinha viajado à Cuba; até que voltasse do paraíso do socialismo, dificilmente nos mandaria algo.
E foi assim que publicamos o conto.

Paulo Renato está de volta do almoço, com um ar satisfeito.
-- Hoje tinha bacalhau.
Me sinto feliz por não ter descido. Bacalhau e depressão não combinam.
-- O babaca ligou?
-- Ele não é babaca, Paulo...
-- E o Aparício José?
Minto que não. Ele então pega o telefone e inicia uma longa confabulação com a mulher. Paulo Renato é casado e feliz. Do gênero que não fala seis palavras sem enfiar no meio o cônjuge. "A Lenita disse.... a Lenita acha... outro dia mesmo a Lenita..." e assim por diante. Do alto da sua felicidade conjugal, Paulo Renato olha para mim - e para o meu sórdido caso com Miguel Arbache -- cheio de reprovação.
Fácil pra ele, que à noite chega em casa e encontra uma cama quente.
Enquanto ele telefona, entro na Internet e começo a procurar sites especializados. É interessante, de vez em quando a gente tem uma boa idéia. A tarde se arrasta; Paulo Renato vai ao laboratório; Michel, nosso programador visual, diz que precisamos nos reunir ainda hoje.
Eu e Paulo Renato trabalhamos sozinhos nessa sala. Não há outros jornalistas, o trabalho de edição é todo feito por mim. A redação é pouco visitada. Ficamos aqui nesse ambiente monástico, lidando com perversões, fetiches, crueldades...
Antes, eu dizia a mim mesma que, afinal, era tudo mentirinha. Produzíamos fantasias masturbatórias, que mal poderia haver nisso? Tudo de mentira. Aparício José destruiu essa ilusão.

Ele mandou o primeiro conto e publicamos. Aí, ele mandou o seguinte.
Antes que alguém me acuse de destruir um talento literário em botão, devo informar que o segundo conto de Aparício José padecia de um problema grave: era igualzinho ao primeiro. Quer dizer, mudavam os nomes dos personagens, algumas circunstâncias; mas a história, basicamente, era a mesma. Homem apaixonado rapta mulher, tranca-a numa casa, etc, etc.
Não publiquei, óbvio. Como também não publiquei o terceiro, o quarto, o quinto, etc. No total ele mandou uns oito contos. Todos eram iguaizinhos, juro, tenho as cópias para provar. A única diferença significativa era no grau de violência, nos detalhes cada vez mais escabrosos, que -- quando eu me dava ao trabalho de ler -- me davam calafrios. A coisa foi ficando tão doentia, tão cruel, que quando chegou o oitavo conto, nem sequer li.
Quinze dias depois, começaram os telefonemas.
Não adiantava desligar. Ele voltava a ligar. Tentei não dar muita importância ao caso, mas Paulo Renato, apavorado, foi imediatamente contar a história à direção. A direção, cautelosa, preferiu chamar o Setor de Segurança da empresa. Contrataram um investigador particular, que até agora só conseguiu descobrir que todos os dados de Aparício José eram falsos. Tudo. E que ele só liga de telefones públicos.
A direção hesita em chamar a polícia; prefere que eu tome a iniciativa. Têm medo que um incidente desses atraia atenção indevida para a revista, e pior ainda, para a própria editora.
E assim as coisas se arrastam, há três meses.

Estou parada em frente à tela do computador, quando o celular toca de novo. Me precipito para atender, e dessa vez, meu Deus, que coisa maravilhosa, dessa vez é Miguel!
-- Sara?
-- Oi!
-- Amor, é o seguinte. Sobre hoje à noite... Surgiu um probleminha.
-- Não vai dar pra você passar em casa?
Todo o desconsolo do mundo transparece em minha voz.
-- Não, não é isso. Mas é que estou com muito trabalho aqui na redação... Acho que só vai dar depois das dez.
-- Só depois das dez?
Não vai ficar nem uma hora. O tempo para uma rápida trepada, um banho de chuveiro -- tomando cuidado para não molhar o cabelo -- e a retirada apressada, que deixa um sabor amargo.
-- Pois é, meu amor, é chato, mas fazer o quê? O clima aqui na redação anda péssimo...
O clima em todas as redações é sempre péssimo, mas Miguel não precisa se preocupar com isso. Miguel é um emérito bajulador, sempre foi. A última pessoa no mundo que os chefes demitiriam: afável, serviçal, sempre engolindo os sapos com um sorriso. Um vaselina de primeira ordem.
-- A gente fica com medo de recusar serviço. Se eu não tivesse família, juro por Deus que já estava longe daqui.
Os colegas também gostam dele. Com eles, Miguel também é amável. Mais do que amável. Solidário, companheiro. O editor é um filho-da-puta? dizem todos, revoltados, na redação. Miguel concorda, e ainda acrescenta alguns adjetivos: sem contar que é incompetente. E ignorante, já peguei erros de Português no texto dele. Erros crassos.
Fala sem inibições, o que se diz em mesa de bar não se escreve. O importante é ficar bem com todo mundo. Quem é de esquerda jura que Miguel é petista; os de direita ouvem, comovidos, seus elogios à robusta inteligência dos articulistas da Página Dois. Sem problema.
-- Mas você me espera à noite em casa, não espera?
-- Espero...
-- Faz pra mim aquele bolo de passas que você fazia lá em Trancoso. Lembra? Você ainda tem a receita?
Meu coração se derrete todo. Ele lembra! Ele ainda se lembra de Trancoso!
-- Claro que eu tenho, amor. -- arrulho.
-- Então, não vai ser ótimo? -- Estou até vendo a piscadinha de olho dele, o jeito apressado de acenar com uma amabilidade e ir cuidar logo dos seus negócios. -- A gente se vê lá. Beijinho.

Trancoso. O bolo de passas. Impossível não recordar o início do meu caso com Miguel. Foi há dois anos; quanta coisa mudou, desde então!
Se hoje em dia a depressão da mulher não permite que ele vá até a esquina comprar cigarros, naquela época Miguel não viu problema em tirar quinze dias de férias sozinho. Para espairecer. E foi me encontrar no litoral baiano, onde passei as duas semanas mais felizes da minha vida, sozinha com ele numa casa minúscula.
Como é que as coisas mudaram tanto? -- penso. Naquela época, ele parecia tão apaixonado! Mas mesmo então -- me corrige a memória -- ele nunca falou em separação. Nunca prometeu nada. E depois...
Na minha relação com Miguel, sempre existiu algo de triste e doloroso. Desde o começo, o êxtase se misturava com a dor. No fundo eu não me enganava. Sabia que a felicidade seria pouca, e a dor, infinita.
Ele está longe de ser o homem dos meus sonhos. Nem nos momentos de maior ilusão deixei de ver seus defeitos, sua pequenez. Desde o começo, repito, sabia que a felicidade seria pouca. E que acabaria com muito sofrimento. Aos pouquinhos. Doendo bastante.
Miguel não tem sequer a coragem de dizer: "Acabou, não gosto mais de você". Isso levaria a um rompimento, talvez até a uma briga. Miguel não gosta dessas coisas. Mas eu percebo tudo. Ele quer deixar a história morrer aos poucos.
Os telefonemas são mais esparsos. Os encontros rareiam. E, mesmo quando está comigo, ele às vezes fica distraído, ausente.
Talvez haja outras. Já houve muitas outras. Fiz essa descoberta humilhante investigando por aí, me aproveitando da indiscrição de uma ou outra amiga. Desde que se casou (e ele está casado há muitos anos), Miguel teve muitas amantes. Às vezes, várias ao mesmo tempo.
Não, não me surpreenderia se ele tivesse outra.
Preciso comprar passas. Lá em casa não tem.

A tarde está caindo. Mais chuva, mais frio, mais escuro. Quero sair daqui, mas não posso. Michel acabou de trazer as primeiras páginas do próximo número.
-- Você não vai embora? -- pergunta Paulo Renato, olhando pela janela. Otimista, como sempre, anuncia: -- É uma chuvinha de nada. Pára logo.
-- Não posso, preciso acabar essa página...
O celular toca. Aparício José faz sua primeira aparição noturna.
-- Vou te pegar, Sssara -- repete ele, numa voz cheia de satisfação. -- Eu vou te pegar.
Paulo Renato agarra o telefone e esbraveja:
-- Escuta aqui, seu filho-da-puta. Eu vou chamar a polícia, entendeu? Cai fora! Vou te botar na cadeia, seu tarado!
Continua vociferando por vários minutos. Fico feliz que se preocupe comigo; mas ao mesmo tempo, me sinto humilhada. Não era ele que devia estar no telefone, gritando. Era Miguel. Por que Miguel não me protege desse louco? Não valho nada, nem meu homem quer me defender...
As lágrimas começam a descer pelo meu rosto.
-- Vamos pra casa, Sara -- diz Paulo Renato, já de casaco. Olha para mim, compadecido, do alto do seu metro e oitenta. Metro e oitenta! Deve encher a cama toda, o quarto todo. Que sorte a da Lenita. Dorme com ela, acorda com ela, toma café-da-manhã com ela. No fim-de-semana faz feira, volta reclamando do preço do tomate.
Ah, a agonia de ver a felicidade dos outros, de nariz colado na vidraça!
-- Ainda não terminei aqui...
-- Amanhã você termina.
Me pega pelo braço e vai me escoltando até o estacionamento, sem parar um minuto com a bronca. Quem eu penso que sou? Alguma super-mulher, capaz de vestir um escudo impenetrável, no dia em que Aparício José sair das trevas? E mesmo que ele nunca saia -- como insisto em afirmar -- olha só o que o cara está fazendo comigo. Mais algumas semanas, e estarei um caco, imprestável. Mas não, prefiro bancar a poderosa, a onipotente, não é?
Me sento ao lado dele, sem retrucar. É claro que ele tem razão. Mas eu não chorei por causa de Aparício José. Aparício José é um conto de fadas, comparado à minha história com Miguel.
-- ... o mais importante agora é chamar a polícia, mas tem outras coisas que você pode fazer. Vender o celular, por exemplo. Te deixa estressada, e é um número a mais pra ele ligar. Depois você muda o telefone de casa...
Paulo Renato fala, fala sem parar, até que finalmente chegamos à minha rua. A três quarteirões do neu prédio, peço para descer. Ele me olha, surpreso:
-- Ué, você não vai pra casa?
-- Preciso comprar umas coisas no supermercado.
-- Eu te espero.
-- Não, imagina, de forma alguma -- já estou saindo do carro. -- Vai logo pra casa, senão a Lenita fica preocupada.
Ele me dá um beijo rápido, fecha a porta. De repente, num súbito impulso, bato no vidro:
-- Paulo Renato!
Ele abre prontamente a porta. Me olha com atenção, pronto para ouvir.
Fico ali, parada, olhando para ele. O que dizer a esse homem? "Obrigada, você é maravilhoso. Me faz mais um favor? Venha pra casa comigo, e não me deixe abrir a porta pra ninguém. Está tão frio, Paulo Renato...."
-- Não esqueça das fotos da dentucinha, amanhã.
-- Claro -- diz ele, fechando a porta.
Um minuto depois, já está longe. Entro desconsoladamente no supermercado, para comprar as passas.

O celular toca de novo no pior momento possível -- quando estou chegando em casa, carregando uma enorme sacola de supermercado, e usando a mão livre para extrair a chave de dentro da bolsa. Na aflição de atender, quase deixo cair as compras.
-- Amor.
-- Sou eu, Miguel.
-- Que pena, minha querida...
A voz dele tem nuances de simpatia e compreensão, mesclados com a tristeza mais profunda, uma melancolia irremediável...
-- Pelo amor de Deus, Miguel...
-- Não vai dar, meu bem. Hoje não vai dar.
Fico um minuto em silêncio, absorvendo o choque, olhando para a porta fechada do meu apartamento. A sacola de supermercado começa a pesar, a doer em meu braço.
-- Mais trabalho na redação, imagino... -- ouço o sarcasmo na minha voz, não é ironia, é sarcasmo. Sarcasmo é a ironia dos desesperados.
-- Não, meu amor, não é isso. Não seja injusta. Termino aqui correndo e vou pra casa, a Taís me ligou dizendo que não está bem. Ela já estava meio ruim hoje, de manhã nem quis se levantar. É a depressão de novo. Vou passar a noite em casa, tenho medo de deixar ela sozinha...
Vou ouvindo o que ele fala e, pela primeira vez desde que o conheci, não acredito em uma só palavra. Nem uma. É tudo mentira. E mentira mal-alinhavada, ele nem se preocupa em elaborar. Se Taís estava tão deprimida, por que ele não me contou de manhã? E de repente me lembro daquela mulher que vi em festas, risonha, alegre, bonita... Depressão? Como fui idiota.
Respondo apaticamente, ele desliga depois de mais algumas amabilidades, oh, querida, sinto tanto... Finjo que acredito em tudo, dói menos do que ficar discutindo com ele.
Entro em casa, fecho a porta, me jogo no sofá e começo a chorar.

São sete horas. Ainda é cedo. Essa vai ser uma longa noite. Sei que não vou comer, nem dormir. Sei que vai ser difícil reunir energia até para sair desse sofá e tomar um banho.
Não é nada demais, só um encontro cancelado. Ele já cancelou tantos, nos últimos meses... Mas hoje é diferente. É como se só agora a solidão tivesse se tornado insuportável. E a verdade também, a verdade que vai subindo à tona devagarinho, ocupando espaços, destruindo resistências.
Ele tem outra. Agora não é mais uma suspeita, é uma certeza. Eu já deveria ter percebido antes, em tantos pequenos indícios: esse afastamento lento, esses encontros desmarcados, esse ar absorto... Pensei que estivesse simplesmente enjoado de mim, mas a verdade é bem pior: ele arranjou outra.
De repente, tomo uma decisão. Não vou ficar aqui passiva, feito um carneiro. Não vou passar a noite chorando, deitada no sofá.
Desço até a garagem e pego o meu carro. É dia de rodízio, mas que se dane a multa. Vou à revista, sei que ele nunca sai antes das oito.
Contrariando as previsões de Paulo Renato, a chuva apertou. Vários quarteirões depois da minha casa, começo a notar um carro branco atrás de mim. Sempre atrás. Se viro, ele vira; se diminuo a velocidade, ele também diminui... Na chuva torrencial, não consigo distinguir os contornos do carro. Mas não há dúvida, está me seguindo.
Mas o que importa, agora, é chegar à revista antes que Miguel saia.
O trânsito está horrível, mas por milagre consigo cortar caminho. Em meia hora estou na sede da revista. Quando estaciono na calçada em frente à entrada principal, o carro branco sumiu, e a chuva parou.
Ligo para a redação.
-- Alô, por favor, o Miguel está?
-- Está sim, quem quer falar com ele?
Desligo o celular. Ele ainda não saiu. Continuo parada no meu posto, rígida, imóvel, tremendo de um frio que não tem nada a ver com a temperatura exterior.
Felizmente está escuro, ninguém pode ver que estou aqui. Vários conhecidos saem do jornal, e eu me afundo em minha poltrona. E se eles me vissem desse jeito? Aflita, despenteada, com o rosto manchado de choro? Alguns sentiriam pena, outros dariam uma risadinha irônica... Apesar de todas as precauções de Miguel, nosso caso não é segredo para ninguém.
Quinze minutos depois, um vulto vestido de calça escura e camisa branca sai do prédio. Meu coração começa a bater violentamente, como que em pânico. Minha garganta se aperta, me sinto sufocada. As lágrimas voltam a saltar dos olhos.
A pior sensação do mundo. E dizem que é amor.
Faz quinze dias que não o vejo; meu olhar faminto passeia por ele. Acho que cortou o cabelo, está de novo com aquela gravata horrível -- ah, meu Deus, se eu pudesse tocá-lo só um pouquinho! Só por um minuto! Mas com toda a sua diplomacia, ele ficaria furioso se eu saísse do carro. Começaria a me chamar de "querida" daquele jeito horrível...
Talvez ela esteja lá, na redação... Mas não, ele está tomando o táxi sozinho. Talvez Miguel esteja dizendo a verdade. Talvez vá mesmo pra casa, ficar com a mulher.
Quando o táxi se afasta, também dou a partida e começo a segui-lo. Com o trânsito quase parado, é fácil; mas tomo o cuidado de ficar sempre um pouco atrás. Não quero que ele reconheça meu carro.
O táxi pega uma rua menos movimentada. Miguel não olha para trás. Continuo seguindo o táxi. Já sei que ele não está indo para casa; na verdade, está tomando a direção oposta. Mentiu para mim.
Até que finalmente o táxi pára em frente a um edifício, e Miguel sai. Eu o vejo conversando com o porteiro. O porteiro fala pelo interfone.
Minutos depois, um vulto feminino sai do elevador. Miguel vai ao seu encontro, beija-a na boca, e os dois, abraçados, saem para a rua. Entram juntos no táxi. O carro sai na minha frente e, dessa vez, não o acompanho: fico olhando de longe, inerte.

Uma hora depois, dou a partida no meu carro e saio.
Voltou a chover. Chove forte. Mesmo assim, não ligo o limpador de pára-brisa. As imagens dos carros na minha frente se fundem em borrões. Da janela de trás, entretanto, posso ver o carro branco me seguindo de novo.
Deve ser Aparício José.

FIM

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