Esse mês, a página apresenta "Puro Sangue", a história de uma família muito louca às voltas com um problema: as almas penadas. Que almas penadas? Leia, para saber!

PURO-SANGUE

Numa tarde de verão, meu pai chegou à Casa das Almas Penadas.
Viera a pé. Fazia muito calor em São João do Rio, e a mala era muito pesada. Meu pai tocou a campainha.
Nada.
Outro toque.
Nada. Nem um murmúrio. Mas devia haver alguém dentro da casa, alma penada que fosse. Na varanda cheia de plantas poeirentas, meu pai ainda podia ver um jornal dobrado e um copo d'água meio bebido.
Enxugou o suor da testa e apertou outra vez a campainha. Dessa vez, apurando o ouvido, pôde ouvir o arrastar de uma perna elefantina, vinda lá do fundo da casa. Vários minutos mais tarde, a porta se destrancou e abriu, rangendo. Do outro lado da soleira, surgiu uma alma penada, que ficou olhando meu pai com seus olhos vazios.
-- Tia Doquinha! - disse ele.
Uma vaga luz surgiu nos olhos da assombração.
-- Sou eu, o Edmundo. Lembra de mim?
O reconhecimento começou a despontar nos olhos da alma. Mas devagar. Ela era gorda, muito gorda, e sofria de uma doença qualquer na perna, que tinha uma cor violácea. A papada que cercava seu rosto lhe dava um ar infantil. Tinha as mãozinhas minúsculas da família, de dedinhos muito curtos. Sofria de asma e respirava com dificuldade.
-- O Juca não avisou que eu ia chegar?
Tia Doquinha finalmente acordou da letargia:
-- Aaaaah, Edmundo. Quanto tempo. - Abraçou longamente meu pai. Lagrimazinhas redondas saíram dos seus olhos. Ela era lenta, mas muito emotiva. "Coitada da Doca", comentavam os conhecidos, "tão boazinha... mas meio boba, não é?". "Ela tem umas dificuldades", explicava Tia Dalila, que era alta funcionária da Caixa Econômica e funcionava como porta-voz da família. "Mas conversa direitinho com a gente. Cuida da casa e lê o jornal. Devagar, mas lê. Às vezes até comenta as notícias."
-- Mas é de nascença, Dalila?
-- Pois é. E o caçula da Doca é pior ainda. Sabe como é, aquela mania deles... - e a conversa reduzia-se a um murmúrio, como se algo de vergonhoso e secreto estivesse sendo contado. Em redor da mesa, os amigos tomavam ares compungidos, balançavam a cabeça. Nada mais triste do que ter almas penadas na família.
Minha prima Clotilde, ainda nem nascida, escutava a conversa.

Meu pai finalmente conseguiu sair do abraço elefantino.
-- O Juca está, tia?
Não era tia, na verdade, e sim prima. E prima não apenas por ser mulher do "Tio" Carlos, primo do meu avô. Prima em vários graus, provenientes de incontáveis e obscuras alianças.
-- O Juca ainda não chegou... - explicou tia Doquinha, mostrando uma fileira de dentes desalinhados. - Ele foi ver aquela moça bonita... você não conhece a moça, né, meu filho?
Meu pai deduziu que ela falava da namorada do Juca.
-- Ele chegou anteontem. Acabou as provas na faculdade... Se Deus quiser vai ser doutor, não é, meu filho? Que nem você.
-- Ainda estou estudando, Tia Doquinha. Faço Direito.
-- Mas é tudo doutor, não é? -- perguntou ela, erguendo seus olhos inocentes para meu pai.
Ele não teve remédio senão concordar. Tia Doquinha levou-o para dentro, arrastando os pés em chinelinhos bordados. A casa não era larga, mas comprida, de pé-direito alto, com um longo corredor de onde saíam os quartos. Tia Doquinha colocou a mala de papai num dos quartos. Uma pintura de Santa Rita de Cássia adornava a parede, pintada a óleo.
-- Agora venha ver seu tio.
Tio Carlos estava recostado na sua espreguiçadeira, absorto nas palavras cruzadas do "Estado de São Paulo". As mãos pequeninas seguravam a caneta de ouro -- herança do avô. Quando viu meu pai largou o jornal, todo contente.
-- Quem é vivo sempre aparece! - e abraçou-o. Baixinho e grisalho, o Tio Carlos era funcionário aposentado da Central do Brasil. Vivia da aposentadoria e de uns restinhos da fortuna da família, que já fora a mais rica do lugar. Ainda tinham uma chácara na saída da cidade, duas casas no centro. Dava pra ir tocando. Mas sem os luxos de antigamente...
-- Precisou o Juca convidar pra esse safado aparecer! - disse o primo. - Olhe o tamanho dele, Doquinha. Como está bonito.
-- Uma beleza - confirmou a alma penada, balançando gravemente a cabeça. - Uma pintura.
-- Nem lembra aquele moleque magrinho que vinha aqui nas férias, hem? Lembra quando você e o Juca pularam o muro do seu Clécio pra roubar jabuticaba? Hein? - E puxou a orelha do meu pai com toda força. Meu pai riu.
Minha prima Carlota, sentada invisível atrás da escada, também passou a mão na orelha. Sua mão era pequena até para uma criança.
-- O Juca foi ver a Marli. -- disse o Tio Carlos - Mas sente aí, vamos prosear. Como vai meu filho lá em São Paulo? Se comporta direitinho? Não faz muita farra?
-- Não, tio.
-- Sempre achei que ele ia dar alguma coisa. Não é por eu ser pai, mas o Juca era o menino mais inteligente daqui. Não tinha um que chegasse perto! A diretora do colégio, Dona Leila, uma vez me disse: "Seu Carlos, o seu filho é um futuro Rui Barbosa". Não foi, Doquinha?
-- Foi sim - comprovou a alma penada, balançando a cabeça.
-- Médico, imagine. Você e o Juca vão ser os primeiros doutores da família. Porque nosso pessoal sempre foi importante aqui em São João do Rio, mas essa história de estudar, se formar... ninguém nunca deu muita bola. Ainda vou ter orgulho de você e do Juca!
E deu outro tapa nas costas do meu pai. Foi aí que a porta da cozinha se abriu, e outra alma penada apareceu.

Meu pai nunca tinha visto o Luisinho. Ou melhor, só viu quando bebê. Já então tinha aquele cabeção enorme, mas toda criança nasce com cabeça grande. Quando Luisinho cresceu, entretanto, continuou com o cabeção.
-- Não deviam ter arriscado o segundo filho... - diziam as pessoas na cidade, balançando a cabeça. Era assim: a família ia se misturando, se misturando, e apareciam as almas penadas. Cada geração que vinha ao mundo carregava um lastro maior de alminhas perdidas. As mãos ficavam menores, os traços cada vez mais parecidos, até que vinham as crianças "esquisitas" como o Luisinho. Judiação, logo depois de um menino perfeito como o Juca...
Tio Carlos não fazia diferença entre os filhos. Aproximou-se da alma penada, beijou-a no cabeção e limpou com o lenço suas mãos sujas, antes de apresentá-la a meu pai.
-- Luisinho, venha conhecer seu primo,.
O menino estendeu a mão recém-limpa, hesitante. Passara a tarde brincando com a sua criação de lesmas, debaixo das mangueiras. A mãe e o pai não se importavam. Melhor isto que subir nas árvores, de onde ele já caíra muitas vezes. E o problema eram os óculos, podiam quebrar. Logo ao nascer, tinham percebido que era quase cego, de tão míope. As pernas muito finas mal sustentavam o corpo. A boca estava sempre semi-aberta.
Juca, chegando ao último ano de Medicina, já podia dizer o nome de todas as doenças do irmão. O último broto de uma longa estirpe.
-- Como vai, Luisinho?
-- Eu v-v-v-ou bem - gaguejou ele. - E v-v-v-ocê?
Bem ensinado pelos pais, dizia bom-dia, obrigado para qualquer coisa. "Vá dar milho pras galinhas, Luisinho". "Eu v-v-v-ou. Obrigado". "Sua calça está suja, Luisinho". "Obrigado". "Sai, bicho feio! Retardado!". "Obrigado".
Na escola, não passara do primeiro ano. A professora o levara de volta para casa:
-- Não vai aprender mais nada mesmo, Seu Carlos. E os outros ficam judiando...
Assim, meu primo voltara para casa. Azar! Não era a única alma penada da cidade. São João do Rio estava cheia de casos assim, todos em nossa família. Tinha o Jacinto da Tia Rosa: morava no sítio e gostava de sentar com os porcos, no meio do chiqueiro. Tinha o Mauro do primo Eliseu da farmácia: passava o dia babando. Tinha o Decinho do primo Lulu (aquele que perdera a casa no jogo). Decinho não era tão doente; só meio bobo. Mas era mau: judiava de bichos, beliscava as criancinhas.
Sem serem almas penadas, havia também casos como os da prima Lucinha. Tão mimosa, mas nascera sem um braço. A prima Sofia, essa era fraquinha desde a infância. Já passara três temporadas em Campos de Jordão, tomando sulfa. Perdera um noivo, porque a família dele fora contra o casamento com aquela moça "pesteada".
Outros primos aleijados, fracos, débeis, se multiplicavam pela cidade.
Pouco tempo depois, o Juca voltou do passeio, muito bravo com meu pai:
-- Por que não avisou que chegava hoje? Te pegava na estação.
Ficaram até de tardezinha na sala conversando, contando casos. Tio Carlos perguntou da família toda. Precisava deixar a preguiça do lado, ir a São Paulo visitá-los. Primo Juca falou dos amigos comuns, da família do meu pai. Perguntou da sua irmã, minha tia:
-- E a Efigênia?
-- Veio agora de férias do colégio...
-- Não vemos ela desde pequena... - lembrou Tio Carlos.
Efigênia fora estudar no Rio aos doze anos.
-- Está uma moça.
Depois escureceu. Tia Doquinha foi preparar o jantar. Tio Carlos disse que ia prosear na farmácia com os amigos. Meu pai e Juca foram tomar banho; iam dar uma volta depois do jantar.
No sábado, as meninas de São João do Rio se arrumavam, se perfumavam e iam passear na praça. Os rapazes faziam a mesma coisa, só que davam voltas em sentido contrário. Chamava-se a isso: fazer o footing.
-- Hoje você vai conhecer minha namorada - avisou o Juca. Os dois estavam se vestindo no quarto, depois do banho.
-- Alguma prima? - perguntou meu pai. Falou de brincadeira, mas Juca fechou a cara. Sem responder, abriu o armário e começou a procurar alguma coisa. Finalmente, tirou uma meia da gaveta, sentou-se na cama para vesti-la:
-- Prima? Deus me livre e guarde!
-- Falei de brincadeira. - meu pai apressou-se em emendar. Mas Juca nem o ouvia.
-- Prima? Nem que fosse a última mulher do mundo! Nem que fosse a Ava Gardner, viu? ou a Gina Lollobrigida!
-- Calma, Juca.
-- Você não vê como ficou a família, por causa dessa história de primas?
-- Também não precisa falar assim...
-- Mas é verdade! Fazem quatro gerações que eles só casam entre primos, e olha o resultado! - Abriu de novo o armário, num repelão: -- Eu não devia falar. Mas olha a coitada da mamãe. Olha meu irmão. Olha a Lucinha...
-- Às vezes é só azar - aventurou meu pai.
-- Azar coisa nenhuma! Eu sou médico, sei do que estou falando. Quatro gerações casando entre primos! A família está acabando! É um despropósito! Gente atrasada! Bando de caipiras! Nunca vi uma coisa dessas!
Começou a vestir o paletó:
-- É por isso que eu digo: a única pessoa com juízo, nessa família, foi seu pai. Primeiro porque saiu desse buraco. Segundo, porque não casou com prima. Eu vou seguir o exemplo dele.
Meu pai, já vestido, ficou olhando para os sapatos. Estava surpreso. Na capital, ele e o Juca nunca tinham conversado sobre aquele assunto. Meu avô sempre comentava, é verdade, a tristeza em que andava a família. Já fora a mais importante de São João do Rio, e agora estava se acabando, por causa daquela mania...
-- Também, todo mundo criado junto... - arriscou meu pai, ainda olhando a ponta dos sapatos.
-- E porque é criado junto precisa se cruzar? Feito bicho? - disse o primo Juca, cada vez mais irritado - Também fui criado com minhas primas, gosto muito delas, mas nem por isso vou casar com elas! Desde o tempo de antigamente, já se sabia que era errado. Quer saber duma coisa? Devia ser proibido por lei!
E começou a dar o nó da gravata.
-- Quem sabe - sugeriu meu pai - seja o problema da herança. Pro dinheiro não sair da família...
-- Dinheiro? - respondeu o outro, sarcástico. - Que dinheiro?
-- Então, por que continuam casando uns com os outros? - perguntou meu pai, perplexo.
-- Burrice - resumiu o outro. - Simples burrice.
-- Ou isso, ou eles gostam muito da família....

Depois do jantar, meu pai e o primo Juca saíram para fazer o footing na Praça da Matriz. O calor do dia ainda não cedera, e eles caminhavam lentamente. Mocinhas passavam por eles, e os olhavam com o rabo do olho. Cochichavam. Davam risadinhas. As orelhas do meu pai começaram a arder.
De repente, Juca cutucou o primo:
-- Olha lá! É a Glorinha!
-- Qual delas?
-- Aquela de branco. Ali, do lado da loira.
Meu pai olhou a moça, e não pode conter uma exclamação:
-- Puxa vida!
Glorinha era muito bonita. Uma pintura. Morena de olhos verdes, com uma covinha no queixo, o corpo violão realçado no vestido godê... Sorriu para o namorado. Ele sorriu de volta.

No dia seguinte, o primo Juca contou a meu pai, muito confidencialmente, que o noivado estava próximo.
-- Não me diga.
-- Em abril, no máximo. Caso no fim do ano que vem. Não tem porque esperar mais, estou quase me formando.
E a família dela?
A família fazia gosto. O pai, promotor, dizia que Juca era um rapaz de futuro.

Durante quinze dias, meu pai passeou pela cidade, visitou os inúmeros parentes (almas penadas incluídas), nadou no rio e foi aos bailes do Clube Comercial.
Na hora da partida, Tia Doquinha ficou triste. Na estação, até soluçava.
-- Ora, tia, não precisa chorar - disse meu pai, compungido. - Qualquer dia volto. E, depois, minha irmã Efigência chega semana que vem. Lembra?
Tia Doquinha, se assoando com força, disse que lembrava. Meu pai abraçou Juca, Tio Carlos e o Luisinho (que disse "obrigado"). Depois, pegou o trem.

Minha tia Efigênia chegou a São João do Rio uma semana depois. Também não avisou que chegava. Também trouxe uma mala pesada. Tocou a campainha várias vezes, mas como ninguém atendesse, empurrou a porta e foi entrando. Estava meio constrangida de chegar daquele jeito, atrapalhando os parentes que nem conhecia. Mas fazer o quê? Com a minha avó doente, não houve outra saída. Meus avós despacharam a caçula para São João do Rio. Aquela menina andava muito magrinha. Precisava de ar puro, comer bastante....
Na sala, tia Efigênia olhou e não viu ninguém.
-- Ó de casa! - gritou.
Alguém veio andando pelo corredor. Minha tia virou-se para ver quem era.
Primo Juca, que acabava de sair do banho, ficou olhando da porta, com a toalha ainda enrolada no pescoço, só de calça, o peito nu. Boquiaberto. A moça sorriu para ele:
-- Bom dia, primo.
Primo Juca continuou olhando, imóvel. Reconheceu em minha tia os traços da família. As mãos pequeninas.
Sentiu uma vertigem.

Um ano depois, meu pai voltou à Casa das Almas Penadas. Dessa vez, veio a bordo do Chevrolet do meu avô, com toda a família da noiva.
Tia Efigênia estava linda, no seu vestido de cetim cor de pérola. A família tinha comparecido em peso: incontáveis primos e primas, almas penadas etc. Depois da cerimônia, primo Juca teve de aguentar as brincadeiras da família.
-- Então não ia casar com prima, hem?
Meu futuro tio contou, para felicidade geral, que, depois de fazer a residência queria voltar a São João do Rio. A cidade precisava de médicos.
Sentada na primeira fila da igreja, minha prima Carlota olhava os pais no altar. Estava esperando a hora de nascer. Ficou ali no banco, bem comportada, ao lado das almas penadas suas parentes.


FIM

Voltar Subir