"Há mais de vinte anos, Marisa partiu para uma viagem sem volta. Mas não perdeu o contato com a família..."

PONTE AÉREA
Aconteceu há um quarto de século. Aconteceu com alguém que, um dia, seria eu.

Naquela manhã, acordei com o telefone tocando. O vento uivava lá fora e a chuva caía sem parar. Olhei o relógio: oito e meia. Uma luz cinzenta entrava pela janela do meu quarto.
Na véspera, quando começara a beber num bar em Copacabana, fazia sol... Hoje todas as forças do apocalipse tinham desabado sobre a cidade. Ao meu lado na cama, havia um desconhecido. Não tinha a mínima idéia de como chegara ali.
O telefone tocou mais uma vez. Atendi, afinal.
- Alô? - A língua tinha dificuldade de despregar-se do céu da boca. A cabeça latejava. Ouvi um zumbido do outro lado da linha.
- Alô?
Um estalido e a voz da minha irmã caçula entrou na linha, clara e ligeiramente sem fôlego como sempre:
- Lúcia? É Marisa!
- Oi - murmurei. - O que ela queria àquela hora? Ah, sim, viera de São Paulo me visitar...
- Estou no aeroporto.
- Ma, não posso te buscar. Estou meio doente....
- No aeroporto de São Paulo!
- Ah, tá. - Passei a mão no rosto, tentando articular uma frase que fizesse sentido - O vôo está atrasado?
- Escuta, Lúcia. Se a mamãe te ligar...
- Sei.
- Teve um puta desastre na Ponte Aérea. Está dando na televisão. Explica que estou aqui, tô bem, não tomei esse vôo, tá?
- Desastre?
- Parece que morreu um monte de gente.
Minha cabeça continuava latejando. Sentia tonturas. O cara do outro lado da cama resmungou alguma coisa.
- Marisa, por que você mesma não liga?
- Agora não dá, preciso sair correndo.
- Vai pegar outro vôo?
Nesse momento houve outra série de estalidos e a linha caiu.

Claro, deveria ter ligado imediatamente para minha mãe. Em vez disso encostei a cabeça no travesseiro. Quando acordei de novo era meio-dia. O cara do outro lado da cama sumira. Nunca soube quem era.
Sou a heroína dessa história, portanto deveria contar uma versão que me deixasse melhor. Mas a verdade é que naquele ano - mil novecentos e setenta e oito - muitas vezes acordei ao lado de um desconhecido. Bêbada ainda, ou de ressaca.
Estava no segundo ano de faculdade, a quatrocentos quilômetros da família. Militava no semi-clandestino movimento estudantil da época, ao lado de um namorado que era "quadro" de uma organização de esquerda.
Guilherme estava muito ocupado com a política. Beber, para ele, era normal. Todo mundo bebia. Nada tão terrível como usar drogas, tidas como arma da direita para alienar a juventude.
Então eu bebia.
Liguei a TV. Houvera de fato um acidente horrível na ponte aérea. Sem sobreviventes. O número de mortos ainda era incerto, estavam conferindo a lista de embarque.
Telefonei para minha mãe, mas encontrei-a calma:
- O Cláudio já me ligou, avisou que a Marisa está bem.
Éramos três. Cláudio, o mais velho, e Marisa, eram filhos exemplares, do tipo que jamais dá dor de cabeça. Cláudio estudava Agronomia em Piracicaba. Marisa se preparava para o vestibular; se entrasse, queria trancar matrícula e fazer uma grande viagem pela Europa.
- Só estou preocupada com a hora. Quase meio-dia e nem sinal da Marisa... Ela voltou a te ligar?
- Não.
- Deve ter pego outro vôo. Daqui a pouco estoura por aí. Vê se não bota ela no quarto com carpete, hem? Você sabe que sua irmã tem bronquite.
Desliguei o telefone e aumentei o som da TV. Estavam divulgando a lista de passageiros. O nome da minha irmã estava lá: Marisa Ribeiro da Costa.

Ela fizera exatamente o mesmo telefonema para Cláudio: estou no aeroporto, houve um acidente na Ponte Aérea, tranqüilize mamãe. Marisa, a menina responsável.
Às cinco da tarde eu estava pendurada no telefone, discutindo o problema com meu irmão em Piracicaba. Ele estava calmo:
- Já disse trinta vezes pros velhos não se preocuparem. É engano da Varig. Ela trocou a passagem, mudou de vôo, isso é muito comum.
- Mas por que não apareceu até agora?
- Se perdeu aí no Rio. Ela não conhece a cidade.
- Ela teria me ligado...
A essa altura já tinha descoberto uma garrafa de vodca, esquecida por uns amigos do Guilherme no apartamento. Estava bebendo pura.
- Perdeu seu telefone, ué. Você sabe como a Marisa é desligada, já perdeu até mala em viagem.
Movi o precioso líquido no copo.
- Que horas ela te ligou?
- Oito e meia da manhã. Olhei no relógio.
Dei um suspiro de alívio:
- O avião caiu às sete.
- Claro que caiu às sete - interrompeu meu irmão, impaciente. - Você acha o quê, que ela ligou do outro mundo?

Fui até a praia. Tudo deserto. Mar bravo, quiosques fechados.
Olhei a água cor de chumbo, a areia molhada. O tempo esfriara demais para o inverno carioca. Minha pele se arrepiava. Sentia um persistente mal-estar.
De repente, sem transição, gotas pesadas de chuva começaram a cair. Fui pega numa das piores tempestades que já vi no Rio, com ventos fortíssimos. Voltei ao meu apartamento correndo, sem saber se estava fugindo da chuva, ansiosa por novidades de Marisa, ou simplesmente louca para terminar o copo de vodca que escondera debaixo da pia.

Dois dias depois estava em São Paulo, na casa dos meus pais. Cláudio também largou o estágio e veio de Piracicaba.
O trabalho de identificação dos corpos prosseguia. Não estava sendo fácil. Boa parte dos passageiros fora reduzida a cinzas.
E não havia notícias de Marisa. Nada. Nem um telefonema. A Varig continuava insistindo que ela embarcara. Mas uma funcionária que participara do embarque não reconheceu a foto da minha irmã.
A família se agarrou a esse fio de esperança, até o dia em que encontraram uma medalhinha de ouro nos escombros. Minha mãe reconheceu a jóia: ela a oferecera no aniversário de Marisa.

Um mês mais tarde, abandonei tudo: a faculdade, o namorado, a militância. Abri um bar com um sócio, em Ipanema - o pior lugar para mim naquele momento - e entrei de cabeça numa espiral alcoólica que durou dois anos.
Não foi culpa de ninguém. Era como se já houvesse uma fenda dentro de mim. Morar sozinha, ter um namorado obcecado por política - tudo isso alargara a fenda. A morte de Marisa transformou-a num abismo.
O mais terrível era o telefonema. Briguei com toda minha família, mas Cláudio me procurou algumas vezes no bar. Vinha aparentemente me passar sermão, mas no meio da conversa começava a falar do telefonema.
Não havia explicação lógica. Mas dentro daquele absurdo, tínhamos ao menos um consolo: os dois tinham recebido a mesma ligação.
Nossas conversas acabavam sempre com a mesma frase:
- Se não fosse você, ia achar que tinha ficado maluco...
Às escondidas da família ("Não quero que sofram mais com essa história"), Cláudio contratou um detetive, gastando um dinheiro que positivamente não tinha. Eu estava sem um puto; meu sócio garantia que o bar dava prejuízo. E é difícil verificar contas quando você está sempre bêbada.
Seja como for, o detetive voltou de mãos abanando. Não havia mistério nenhum: Marisa tomara aquele vôo, o avião caíra e ela fora reduzida a cinzas, juntamente com outras dezenas de pessoas. O telefonema que recebêramos? Não sei que pauzinhos o tal do Nassif (me lembro até hoje do seu nome) mexeu, mas conseguiu olhar os registros do dia do acidente nas duas companhias telefônicas, do Rio e de São Paulo.
As ligações realmente vinham de telefones públicos do Aeroporto de Congonhas, por volta das oito e meia da manhã. E aí acabava a pista. Ninguém viu minha irmã depois daquele dia. Necrotérios e hospitais foram rastreados, na improvável hipótese de que ela não tivesse embarcado. Nada. Zero.
Quando o detetive Nassif jogou a toalha, Cláudio veio me dar a notícia. Me encontrou bêbada de verdade, não apenas num leve pileque. O bar acabara de abrir. Eram nove da manhã.
- Você vem comigo - ele decretou.
Protestei, gritei, fiz um escândalo. Cláudio me botou dentro do seu Passat e me levou para São Paulo. A família me internou para tratamento.
O qual, surpreendentemente, funcionou. Parei de beber e casei com o médico que me tratou.

Não há muito mais o que contar da minha vida. Estou casada até hoje com o mesmo homem. Moramos em Pinheiros, bairro paulistano de classe média. Temos duas filhas. Depois de parar de beber, fiz outra faculdade - Pedagogia - e hoje tenho uma escola de educação infantil com uma sócia.
Cláudio formou-se em Agronomia e trabalhou durante algum tempo numa empresa de produtos agrícolas. Casou-se com uma carioca. Quando perdeu o emprego, aceitou um cargo na empresa do sogro, no Rio. Mora até hoje lá, me deu três sobrinhos. Trabalha com informática.
Meus pais foram se recuperando aos poucos, doloridamente, da morte de Marisa. Colocaram um grande retrato dela na sala de visitas - um pôster, como se fazia na época. Marisa está de mochila nas costas, sorrindo, os olhos brilhantes. Tinha ido acampar naquele dia, um amigo tirou a foto. As cores já estão desbotadas.
Quando Ana Paula, minha caçula, estava largando a mamadeira, veio o primeiro telefonema. Hesito um pouco em chamar essas ligações de "telefonema". Ao atender, ouço chiados e estalidos do outro lado - como naquele dia do acidente. Depois de alguns segundos vem a voz de Marisa, clara, inconfundível:
- Lúcia? Sou eu!
Às vezes ela fala mais alguma coisa, um "alô", uma partícula qualquer. Às vezes acrescenta: "Sou eu, Marisa!". Como se precisasse.
Foram só algumas ligações em vinte anos, mas a voz é sempre a mesma. Cheia de alegria, como se tivesse um sol na garganta. E grandes notícias para dar.
E aí a ligação cai.
É sempre a mesma coisa. Eu me sento e fico pensando em efeitos retardados do álcool; ou em alucinações de pura saudade. Estou envelhecendo. Marisa ficou lá atrás, jovem para sempre.
Nunca investiguei esses telefonemas porque estava convencida que alucinava. E também porque não queria mexer em velhas feridas.

Até que chegou a carta.

Carla, minha filha mais velha, tinha terminado a oitava série. Houve formatura com entrega de diploma, festa e apresentações da molecada. Quando voltamos para casa naquela noite, achei na caixa do correio um envelope volumoso, sem remetente nem selos, endereçado a mim.
Abri o envelope enquanto tirava os brincos e sapatos. Meu marido estava no banheiro. Ouviu o grito e veio correndo, assustado.
- O que foi, Lúcia?
- Essa carta!
- Que tem a carta?
- É a letra da Marisa!
Naturalmente ele tentou me convencer de que existem letras parecidas, não é um dado inconfundível... Mas a carta era de Marisa mesmo. Ou de alguém que a conhecera muito bem.
Ela dizia que estava bem, "adorando a viagem" - a grande viagem que se preparava para fazer, quando morreu. Reino Unido: Inglaterra, Escócia, Irlanda, País de Gales... A Itália, naturalmente. E agora estava em Paris, a cidade mais maravilhosa do mundo. Um dia a visitaríamos juntas...
E vinham páginas e mais páginas de puro entusiasmo adolescente, na letra rechonchuda da minha irmã, com o característico pingo no "i" em forma de caracol. O texto era dela, sem dúvida alguma: maneirismos, expressões, observações cheias de doce ironia. No meio da carta eu já estava em prantos, e Edmundo, por mais que tentasse me chamar de volta à razão, não conseguiu.
Nenhuma palavra sobre o acidente. Beijos afetuosos nos pais (onde quer que Marisa estivesse, ignorava a morte de papai). E nenhuma data, também.

Só liguei para o Rio porque tinha medo de enlouquecer. Disse a Cláudio que precisava muito falar com ele, urgente. Ele não estranhou. Disse que me esperava amanhã mesmo no Rio.
- Te pego no aeroporto.
- Não - recusei. - Venho de carro.
- Você consegue chegar na Barra da Tijuca?
- Acho que sim - disse eu.
Avisei minha sócia que viajaria. Cláudio também não foi trabalhar; quando cheguei, me esperava sozinho em casa. A mulher estava no escritório, os filhos no colégio. Sentado no sofá, me mostrou uma carta enorme, escrita na mesma letra que a minha. O conteúdo era o mesmo, com ligeiras variações que não informavam nada.
Ficamos horas falando. Não chegamos a conclusão nenhuma. Ele também tinha recebido aquelas estranhas ligações, mas relutara em comentá-las até mesmo comigo.
Relemos as cartas em voz alta. Era como se ela estivesse vivendo a seqüência da sua vida; como se aquele avião nunca houvesse caído.
- Não faz sentido - repetia Cláudio. Meu irmão é engenheiro, ateu convicto, obcecado por lógica. Eu sou vagamente espiritualista, acho a reencarnação uma idéia plausível. Mas aquilo era estranho demais até mesmo para mim. Não cabia, por assim dizer, em nenhum esquema de explicação do mundo.
Uma idéia me ocorreu:
- Ela diz quando vai voltar?
- Lúcia, que absurdo!
- Diz ou não diz?
Examinamos de novo as cartas. Marisa não informava quando voltaria. Mas prometia "presentes para todos".
Voltei para casa mais calma. Diante do inexplicável, talvez a melhor atitude fosse a humildade... Mas Cláudio não conseguia se resignar. Um mês depois, meteu-se numa empreitada macabra: resgatar os restos que supostamente pertenciam a Marisa, no Cemitério da Consolação, e submetê-los a um exame de DNA. Me explicou com entusiasmo maníaco que por todos aqueles anos mamãe guardara coisas da filha - roupas, objetos de toalete. E entre elas havia fios de cabelo:
- Com um fio de cabelo, o cara já mapeia o DNA.
- Cláudio, pelo amor de Deus. Isso não tem sentido. Se o cara disser que os restos não são da Marisa, não prova absolutamente nada! Um monte de gente ficou sem identificação, naquela época.
- Vou fazer o exame mesmo assim.
- E o que você disse pra mamãe?
- Que o cemitério precisava mover a urna para abrir mais espaço. Ela assinou a autorização sem olhar.
- Tremenda sacanagem da sua parte.
- Quem sabe a gente não tem uma boa notícia para dar para ela?
- Cláudio, a Marisa morreu!
- Isso é o que vamos ver.

Os resultados do exame foram conclusivos. A maior parte dos restos acumulados na urna pertencia a Marisa Ribeiro da Costa. A percentagem de erro era pequena demais para ser levada em consideração.
Depois disso falei pouco com Cláudio. Me preocupava com ele, mas não sabia o que fazer. Tinha medo que aquele enigma fosse roendo meu irmão, minando suas certezas, destruindo sua vida...
Ele precisava desistir de entender.
Me achava tão calma, tão superior. E no entanto, a próxima comunicação que recebi de Marisa, alguns meses depois, me lançou num pânico irreversível.

Telefonei imediatamente para Cláudio. Ele também recebera um igual.
- Você vai? - perguntei, já sabendo a resposta.
- Vou - disse ele, em voz sombria.
- Eu também.
Nos encontramos no dia marcado. Era fim de semana e o local estava lotado. Sentamos juntos no saguão modernoso e ele observou que ainda faltava meia hora. Não seria melhor tomarmos um café?
- Antes preciso ir ao banheiro - respondi. - E de fato fui. Retoquei a maquiagem e fiquei me olhando no espelho. Me perguntei se Marisa me reconheceria. Eu tinha mais de quarenta anos... Ainda lembraria um pouco a garota de vinte que fui um dia?
Saí do toalete e fui até o bar. Pedi ao garçom meu primeiro uísque em vinte e cinco anos. Tomei até me sentir tonta e só então tirei da bolsa o postal que Marisa nos mandara:
"Chego sexta-feira, no vôo de Amsterdam das 22h. Me esperem no aeroporto do Galeão".
Eram 21h30. Cambaleando um pouco, me levantei, paguei a conta e voltei para junto do meu irmão. E ficamos ali lado a lado, silenciosamente, ouvindo a voz metálica dos alto-falantes e o zumbido dos aviões.

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