- Já leu um conto chamado Carta
a uma Senhorita em Paris?
Ela me abriu um enorme sorriso:
- Claro! Julio Cortázar, não é? Genial! Maravilhoso!
Ficava ainda mais bonita sorrindo. Mas eu a observava friamente. Ela não
me enganava. Vira muito bem: no milésimo de segundo subseqüente
à minha pergunta, sua pálpebra esquerda tinha tremido.
Sinal certo de mentira, segundo me ensinara meu tio Manolo, muitos anos
atrás. "Piscou o olho esquerdo, está mentindo",
dizia o velho.
Não que ela não tivesse lido o conto. A piscada era, isso
sim, um sinal de perturbação. Quiçá de pânico.
No momento em que eu tocara no assunto, ela se sentiu desmascarada.
Para mim não restavam dúvidas. A aluna recém-chegada
ao curso de Matemática Pura era uma terrorista das mais perversas.
Poucos, muito poucos sabiam do perigo que ela representava para nossa
civilização.
Com o generoso intuito de alertar seus leitores e semelhantes em geral,
Júlio Cortázar - notável beletrista cujo único
defeito consistia em ser argentino - escreveu, há muitos anos,
um conto intitulado Carta a uma senhorita em Paris.
Nesta história, o "eu" ficcional do autor contrai uma
estranha moléstia, cujo principal sintoma é vomitar coelhinhos.
Todos elogiaram sua imaginação, e os críticos vomitaram
baboseiras sobre o "realismo fantástico" - tendência
literária latino-americana ao qual o escritor seria filiado. Ninguém
notou que JC - como o chamaremos daqui por diante - com sua ficção,
pretendia avisar a humanidade de um perigo real: a seita dos Vomitadores
de Pequenos Animais.
O fundador desta seita chamava-se Octávio González e nasceu
no México em 1948. Desde sua primeira infância, González
vomitava iguanas, ratos e até coiotes. Poucas pessoas sabiam de
seu poder. Mas é de se imaginar que ele tenha usado essa habilidade
para aterrorizar e influenciar indivíduos ricos e poderosos. Só
isso explica sua vertiginosa ascenção social.
Nascido numa humilde família de camponeses em Tepehuanes, no México
Central, aos quarenta anos Gonzalez era milionário. Na origem da
sua fortuna estava uma nebulosa concessão do monopólio de
tortillas, nachos e tacos ao norte do Rio Grande. Não preciso dizer
mais nada a vocês, meus inteligentes leitores, a não ser
duas palavras: Elma Chips.
O Grande Vomitador era figura conhecida nos círculos próximos
ao governo mexicano, onde ganhou reputação como analista
político e intelectual - logo ele, que começou a vida empresariando
coiotes vestidos de mariachi! Um impostor, Don Octavio.
Não se sabe exatamente como e quando esse gênio do mal decidiu
passar adiante o seu poder vomitativo. Mas posso garantir duas coisas.
Primeira: o escritor JC teve sorte de morrer em sua cama. Segunda: os
objetivos da Seita dos Vomitadores são tão terríveis
e sombrios, que se assemelham a um pesadelo apocalíptico.
Os pequenos animais que eles colocam em circulação no nosso
pobre planeta - já tão infestado de pragas de toda ordem,
das armas atômicas à música sertaneja - são
dos mais nocivos e repugnantes. E não são bichos comuns.
Geneticamente alterados, todos são herbívoros de apetite
incontrolável. Os abutres anões gerados pelos Vomitadores
torcem o nariz ao mais suculento e apetitoso bife de carne podre que lhes
for oferecido. Em vez disso, preferem alface bem verdinha.
Esses pequenos animais são imunes a tiros, cacetadas e venenos
químicos ou biológicos. Morrem confortavelmente em suas
camas, de velhice - não sem antes chamar o padre, imagino, pois
são todos de religião católica. E
a sua média de vida é de cem anos! Um século!
O que significa que, na verdade, nenhum deles ainda morreu. Estão
todos circulando por aí, em números cada vez maiores. A
única boa notícia é que são estéreis.
Só um Vomitador pode gerar um desses Pequenos Animais.
Depois que essas bestas repugnantes tiverem devorado todas as plantações
do mundo, a humanidade, morrendo à míngua, estará
nas mãos dos conspiradores. Só eles conhecem a arma secreta,
o antídoto que porá fim à praga os Pequenos Animais.
Os homens se transformarão em seus escravos. A seita dos Vomitadores
dominará o mundo.
Este plano é um segredo guardado a sete chaves. Não existem
traidores na seita - eles são eliminados assim que cogitam a traição,
pois entre os Vomitadores existe telepatia.
Eu mesmo não percebi nada de estranho no famoso conto de JC. Como
todos os outros leitores, li e me contentei em elogiar, idiotamente, o
talento literário do escritor platino. E teria ficado por aí
mesmo, se na semana subseqüente não tivesse encontrado numa
obscura página da Internet a história de Pablo Uchôa
Ramirez, o motorista particular de Don Arturo Echeverría, sucessor
de Octavio Gonzalez.
Pablo era um rapaz simpático e inteligente. Don Arturo afeiçoou-se
a ele e tentou cooptá-lo para a seita dos Vomitadores.
A essa altura, a seita já havia evoluído e se especializado
bastante. Por exemplo, em vez de colocar os fiéis vomitando qualquer
tipo de animal, indiscriminadamente, Don Octavio ensinara cada um deles
a vomitar uma espécie. Havia os Vomitadores de corujas, de iguanas,
de gatos selvagens e de coelhinhos. Esses últimos eram sempre mulheres.
Apesar de sua perversidade, Don Octavio era um cavalheiro. Jamais consentiria
que uma dama tivesse sua delicada garganta arranhada por garras de iguana
ou penas de coruja.
As moças só vomitavam coelhinhos, o que era considerado
uma honra. Sim, porque de todos os animais que os Vomitadores soltavam
na biosfera, o mais letal era esse "inofensivo" roedor, que
muitos consideram até engraçadinho. (Inconscientes! Alguém
aí sabe o que os coelhos fizeram na Austrália?).
Ao inteirar-se dos objetivos da seita, Pablo ficou horrorizado. Decidiu
infiltrar-se na sinistra organização e conhecer seus planos
e métodos. O motorista conseguiu passar despercebido durante muito
tempo, pois sua mente estava bloqueada contra a telepatia dos Vomitadores,
graças à ingestão de certos cactos do deserto mexicano
conhecidos apenas por um velho índio, último sobrevivente
da sua tribo, a qual, por sua vez...
Bem, não vale a pena contar aqui a história detalhada de
como Pablo, ao mudar sua dieta de cactos para brócolis, em determinada
semana, foi detectado e quase assassinado pelos Vomitadores. Conseguiu
fugir para os Estados Unidos, mas ali morreu de forma misteriosa num acidente
automobilístico causado por um coiote.
Tudo isso estava na página da Internet que eu acessei. Mas no dia
seguinte a página tinha desaparecido. Meu Google informava que
"essa URL não existe". Pois sim!
Depois desse dia, comecei a prestar mais atenção a determinados
acidentes que aparecem nos jornais, e a termos crípticos como "estranha
praga", "mudanças climáticas" e até
"transgênicos". Via Globo Rural
de cabo a rabo e sempre encontrava novos indícios da conspiração.
Observava com cuidado estranhos vomitando na rua - infelizmente, apenas
vulgares bêbados. Numa ocasião quase fui linchado por matar
o coelhinho de uma criança. Mas, apesar das decepções
e revezes, continuava atento.
E então ela entrou na minha classe de Matemática Pura.
Apareceu no meio da aula, vestida com uma capa de chuva e gotejando água.
Notei-a imediatamente, não porque fosse bonita - minha mente não
registra esses detalhes vulgares - mas por que fez barulho, tossindo.
E então aconteceu. No momento exato
em que tossiu, pude ver, apesar da mão que colocou em frente à
boca, um minúsculo coelhinho branco saindo da sua boca e escapulindo
feito um raio para baixo da escrivaninha do professor.
Ela continuou impávida, como se nada tivesse acontecido. Ninguém
mais na classe tinha notado o ocorrido, até porque o professor
explicava uma equação difícil. Mas eu estava excitadíssimo.
Finalmente achara um deles! Podia denunciá-la, acabar com ela,
jogá-la numa prisão, seqüestrá-la e forçá-la
a revelar toda a verdade sobre os Vomitadores...
Mas, primeiro, precisava falar com ela.
Como já contei, ela respondeu minha pergunta literária afetando
simpatia. Conversamos mais alguns minutos sobre assuntos indiferentes.
Ela se chamava Rejane e sua ambição era ser professora.
Estremeci de horror, ao pensar nas inocentes crianças expostas
àquela criatura e seus diabólicos roedores. Era preciso
detê-la o quanto antes. Resolvi segui-la.
Até o ponto de ônibus, consegui me dissimular muito bem.
Ela não percebeu que estava sendo seguida. Mas no momento em que
sentou no banquinho de cimento (e tenho que admitir que fingia admiravelmente
bem ser uma moça comum esperando o ônibus), a chuva recrudesceu.
Fui obrigado a sair do meu esconderijo e sentar-me ao lado dela.
- Você por aqui? - disse Rejane. - Que bom! É tão
chato ficar sozinha esperando...
Era ótima atriz. Dessa vez a pálpebra esquerda nem tremeu.
Aliás, ela tinha olhos verdes com grandes cílios...
Começamos a conversar, mas logo o ônibus chegou. Ela perguntou
se eu ia para o mesmo bairro que ela. Naturalmente eu não podia
desperdiçar essa chance de conhecer melhor a terrorista - apesar
do risco que corria. Modéstia à parte, não sou uma
pessoa medrosa.
Entrei no ônibus dizendo que morava no mesmo bairro - o que, coincidentalmente,
era verdade. Também por uma estranha coincidência descemos
no mesmo ponto.
Era como se o destino quisesse colocar em minhas mãos a chance
de salvar a humanidade.
Então ela me perguntou o que eu ia fazer em seguida. Eu disse que
não me importaria de passar num bar e beber alguma coisinha.
Horas depois, Rejane deu um suspiro de satisfação e virou-se
de lado na cama. Ia dormir - ou fingir que dormia. Mas eu não podia
deixar uma oportunidade tão boa passar em branco. Tinha de confrontá-la.
Acendi a luz e perguntei:
- Rejane, me responda. E os coelhinhos?
- Que coelhinhos? - suspirou ela, dengosa.
- Você sabe muito bem do que estou falando - eu disse, ameaçador.
Ela então apagou o abajur, abraçou minha cintura e disse
que o único coelhinho ali era eu.
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