Amar
você é doce, amar você é bom/
Teu sorriso de criança me faz delirar/
Minha felicidade é te namorar/
Você agora mora no meu coração.
Eu e Raquel Dantas
nunca nos encontramos. Pelo menos, não em vida.
Mas quando me chamaram ao seu apartamento, às onze horas da manhã,
descobri que tínhamos um ponto em comum: o pagode. Ela também
tinha uma enorme coleção. O CD que estava tocando no aparelho
de som era um dos meus favoritos. Amar você é doce, amar
você é bom... Não resisti e fui cantarolando enquanto
examinava a cena do crime.
Raquel estava de bruços, vestida com um robe branco. O cabelo molhado.
Provavelmente, depois do banho, colocara o CD para tocar e estava examinando
sua coleção... Fora atacada pelas costas. Não havia
sinal de luta. A arma do crime não estava à vista.
Uma enorme mancha vermelha estampava o robe branco.
Não costumo assistir televisão. Só depois que o pessoal
da Polícia Técnica chegou descobri que estávamos
lidando com uma celebridade.
Uma semana depois
do crime, a Delegacia de Homicídios continua no escuro. O "crime
da novela das seis", como foi batizado pela imprensa, é um
verdadeiro mistério. Logo no primeiro dia, o assédio da
imprensa transformou os depoimentos numa operação de guerra.
É difícil para os amigos da morta - muitos deles, celebridades
televisivas - entrar na delegacia. Há um batalhão de repórteres
lá fora.
Os interrogados falaram platitudes: todos adoravam a morta, ela não
tinha nenhum inimigo, estavam muito chocados... E ninguém sabia
se ela estava acompanhada na manhã do assassinato.
Depois de uma semana, meu chefe, o delegado Viegas, implora:
- Totó, você é meu melhor investigador. Assuma esse
caso, pelo amor de Deus, antes que comam meu fígado! Até
o governador está na minha cola. Precisamos interrogar de novo
o marido dela, Lucas Periotto. Pra mim, continua sendo o principal suspeito.
- Hoje mesmo falo com ele - prometo.
Os repórteres
também já decidiram: quem matou Raquel Dantas, a estrela
da novela das seis, foi seu marido Lucas. No depoimento, ele disse que
tinha saído cedo na manhã do crime para fazer cooper. Mas
o porteiro não confirma sua história.
O corpo foi achado pela empregada às nove e quarenta. Lucas pode
ter matado a mulher e saído depois. O casal brigava muito.
Uma hora da tarde. Preciso telefonar para a minha consultora.
- Mariana?
- Não, seu cretino. Eu sou a Xuxa e isso aqui é a minha
mansão em Jacarepaguá.
- Olha o respeito!
- O que você quer? Fale logo que estou com pressa. Preciso ir à
praia.
É uma delinqüente, não resta dúvida.
- Já que você vive lendo essas revistinhas de televisão,
vê se me ajuda, tá? Quero informações sobre
o Lucas Periotto, marido da Raquel Dantas.
- O marido da morta?
- Isso. Ele é professor de Educação Física,
não é?
- Personal trainer, seu burrão. Chiquésimo. Cobra uma fortuna
pra dar uma corridinha no calçadão com as clientes. Já
deu aula para um monte de atrizes, modelos... Também já
namorou várias.
- O cara tem uma academia, não é?
- Abriu depois de casar com a Raquel, há um ano e meio. Mas o casamento
não andava bem.
- Mariana, você acha que ele seria capaz de matar a mulher?
Silêncio meditativo do outro lado da linha.
- Não acho - diz ela, finalmente. - Pra quê? Com certeza,
não por dinheiro. A Raquel estava em começo de carreira,
não tinha grana. E ele deve ser rico. Precisa ver o tamanho da
tal academia. Fica no Leblon. Já fui lá uma vez, ver o preço
da mensalidade... Maior cara.
- Mensalidade pra quê?
- Pra malhar, ora essa! Estou cheia de celulite.
No caminho para o
Leblon, vou pensando. Talvez Mariana tenha razão. Vejamos: um casal
se conhece, casa-se rapidamente. Mais rapidamente ainda, começa
a brigar. Não há filhos na jogada. Até agora, não
ouvi nada sobre atividades extra-conjugais. Por que matar a mulher? Já
inventaram o divórcio.
Por outro lado, o tal do Lucas pode não gostar muito da idéia
de dividir seu patrimônio. Imaginemos o seguinte roteiro: eles acordam
de manhã cedo, começam a discutir, e Raquel exige a partilha
de bens. Além, é claro, de uma bela pensão. Lucas
se exalta, vai buscar a faca de churrasco... Já vi gente matar
por muito menos.
Depois do crime, ele sai de fininho. Só volta às onze horas,
quando a polícia já chegou.
A academia fica num dos melhores pontos do Leblon. A mocinha que me atende
empalidece, quando me identifico. Fala aos sussurros pelo telefone, e
depois diz:
- Se o senhor puder me acompanhar... Ele está na sala dos personal
trainers.
A aluna de Lucas é uma loira metida numa malha verde-água,
com um estratégico corte na altura dos seios. A mulher está
de quatro no chão, e tenta levantar a perna para trás, feito
cachorro fazendo xixi no poste:
- Assim, Lucas? - pergunta, com a voz sumida.
- Isso mesmo, minha querida, assim. Alinha a perna com a coluna...
A loira - acho que já a vi num comercial de sorvete - começa
a levantar a perna, com o rosto todo vermelho. O professor lhe diz numa
voz doce:
- Agora vou falar com esse senhor. Faz mais três séries enquanto
isso, tá?
Ela ergue o rosto, chocada:
- Três séries de quarenta?
- Isso mesmo.
Ela baixa a cabeça e volta a levantar a perna, resignada.
- Quem sabe assim aumento o bumbum...
Lucas sorri e se afasta, murmurando entredentes para mim:
- Vai esperando, coitada... Isso aí é uma verdadeira tábua...
- Mas o peito...
- Silicone, meu filho. O que você quer?
- Precisamos ter uma conversinha.
- Eu já disse tudo o que sabia no meu depoimento...
- Não é nada formal. Só um bate-papo, pra esclarecer
alguns pontos obscuros.
- Não tem ponto obscuro nenhum. - diz ele, se formalizando. -Vou
chamar meu advogado.
- Se quiser, fique à vontade. Mas aí vai ter de voltar à
delegacia, a imprensa está de plantão, fica aquela situação
constrangedora... Conversando por aqui mesmo, fica mais fácil.
Ele relaxa um pouco, olha para mim:
- Manda.
- Como era a sua relação com a Raquel?
- Muito boa.
- Não senhor, não era boa.
Ele fica me olhando, em silêncio. Sei o que está pensando.
Vi esse mesmo olhar na cara dos jornalistas, quando o Dr. Viegas me apresentou:
"O quê, esse moleque aí vai resolver o caso da Raquel
Dantas? Nem barba ele tem!"
Pois bem, eles se enganam comigo. Não sou nenhum moleque. Tenho
curso de Direito na Federal. Fui ser investigador por vocação.
Fiz vinte e quatro anos semana passada e já resolvi alguns crimes
importantes. Não é porque esse cara tem um monte de músculos
que vai me intimidar. Ah, não vai.
Lucas acaba dizendo:
- É, pra falar a verdade, a gente não estava muito bem.
Me oferece uma cadeira, e começa a falar:
- Sabe como é: casamos muito rápido, foi uma grande paixão,
mas a relação não deu certo. A gente não combinava...
Brigávamos muito.
- Brigavam por que?
- Por tudo. A Raquel morria de ciúmes das minhas alunas. Essa loira,
por exemplo, ela queria matar. Achava que tínhamos um caso.
- E tinham?
- De jeito nenhum. Tudo fantasia da cabeça dela. Além disso,
eu e a Raquel tínhamos uma diferença de idade, e isso acabou
pesando. A Raquel queria sair toda noite. Eu, depois de malhar o dia inteiro,
prefiro ficar em casa, lendo um livro, vendo TV... Ela dizia que precisava
circular, que era importante para a carreira dela. Aliás, só
pensava na carreira. Sem contar que... Essa conversa não sai daqui,
certo?
- Certo.
- Se você disser que falei isso, eu nego. Mas a Raquel era muito
burrinha. Superficial, sabe? Eu não conseguia conversar nenhum
assunto sério com ela. Não tinha cultura. Nem lia jornal.
Fico olhando para ele,.
- As pessoas acham que só porque namorei modelos, gosto de mulher
burra. Tudo preconceito - contra mim e contra as modelos. Sempre namorei
mulher inteligente, a Raquel foi a primeira exceção. O casamento
foi um erro de ambas as partes. Ela me achava um chato. Já vínhamos
falando de separação há algum tempo, e a Raquel estava
começando a aceitar a idéia.
- Mas a separação não era um mau negócio para
você?
- Não.
- Por exemplo, essa academia. Você começou o negócio
depois de casado. Se houvesse um divórcio, seria obrigado a dividir
a empresa com a Raquel...
- Só se eu fosse casado em regime de comunhão de bens. Mas
nós optamos pela separação. Sabe como é: esse
já é o meu segundo casamento, e no primeiro levei uma trolha.
Não quis repetir o erro.
"Na época do casamento a Raquel estava começando a
carreira, não tinha nada, ia de ônibus pro trabalho. De uns
meses pra cá as coisas melhoraram: um autor se encantou com ela,
botou na novela das seis... Coitada da Raquel. Não era má
pessoa. Meio imatura; e também não teve oportunidade de
estudar, veio de uma família muito pobre. Escute, Aristóteles...
- Totó, por favor.
- Totó, eu nunca quis fazer mal à Raquel. Fiquei muito abalado
com a morte dela. Cheguei em casa e levei o maior susto da minha vida.
Não gosto nem de lembrar: a polícia na porta, a coitada
ali, caída de bruços no chão, coberta de sangue...
- Mas a arma do crime era do senhor.
- A arma do crime, pelo que eu sei, é uma suposição.
É verdade. A arma sumiu e até agora não foi encontrada.
Mas na cozinha do casal estava faltando a maior faca do conjunto de churrasco.
Facas bem afiadas, aquelas. E o legista declarou que os ferimentos combinavam
com esse tipo de arma.
- Aquela faca estava sumida há meses.
- Aí, nós só temos a sua palavra.
- Sumiu, eu até tinha comentado com a Raquel.
- Isso é um detalhe. Vou ser franco com você, Lucas: seu
principal problema é que você não tem um álibi.
- Eu tinha ido correr na praia, já expliquei. Todo mundo pode confirmar
que tenho esse hábito. Corro toda a manhã cedinho.
- Perfeito. Só que, naquela manhã, ninguém te viu
saindo. É evidente que você não está contando
a verdade. Estou te dando a chance de contar o que aconteceu realmente
naquela manhã. Na boa. Sem pressão. Que tal jogar limpo
comigo?
Lucas está perturbado. Por fim, pergunta:
- Posso dar um telefonema?
Do outro lado da sala, a loira levanta a cabeça e diz:
- Já acabei a série, Lucas! E agora?
- Pra esteira, minha querida. Pra esteira!
Quinze minutos depois,
estamos saindo da academia no carro de Lucas.
- Aonde você está me levando? - pergunto, intrigado, enquanto
ele manobra no estacionamento.
- Vamos conversar sobre o meu álibi - explica ele. Está
nervoso. Passou pelo vestiário, trocou o agasalho de ginástica
por uma roupa social, e ainda exigiu que eu endireitasse minha gravata.
Não estou entendendo nada.
Depois de algumas voltas pelo centro, largamos o carro num estacionamento
e entramos num prédio novo em folha.
- É uma firma de advocacia - explica Lucas, apertando o botão
do elevador.
- Por enquanto você não precisa de advogado...
- Não é isso. Daqui a pouco você vai entender.
Na recepção, ele pede para falar com a Dra. Ana Paula. Somos
levados para uma sala com vista da praia. A Dra. Ana Paula é uma
morena bonita, de cerca de trinta anos. Faz o estilo discreto: cabelo
preso no coque, óculos de grau...
- Muito prazer, investigador. Ana Paula Moreira.
- Pode me chamar de Totó.
Sentamos à frente dela. Lucas pigarreia:
- Totó, a Dra. Ana Paula e eu estamos namorando há seis
meses. Vamos casar no ano que vem. Eu já tinha pedido o divórcio
à Raquel. Naquele dia, fui ao apartamento só para pegar
umas roupas. Quando cheguei, às dez e meia, encontrei a polícia.
- Ele passou a noite inteira no meu apartamento - a advogada apressa-se
a informar - Saiu às dez da manhã. Não podia ter
matado a mulher.
Fico olhando os dois, na dúvida.
- Mas se você tinha um álibi tão bom, por que não
apresentou antes?
- É complicado - começa a dizer Ana Paula.
- Por estranho que pareça - explica Lucas - a nossa relação,
antes da Raquel morrer, não precisava ser secreta. Agora, precisa.
- Continuo sem entender, até que Ana Paula explica:
- Você entende, Totó - posso chamá-lo assim mesmo?
- no momento, estou representando uma das maiores empresas do país.
É a minha primeira grande chance profissional. Se eu me envolver
nessa história, meu nome vai para os jornais, ligado a um crime.
Gera publicidade negativa. Por isso, eu preferia...
- Não testemunhar publicamente - completa Lucas.
- Eu tenho outra testemunha - apressa-se em dizer Ana Paula. - É
a moça que mora comigo. Esse é o nosso telefone - e me passa
um cartão.- O nome dela é Gisele.
Faço o telefonema, converso com a moça. A história
confere. Ainda tem o porteiro do edifício dela que pode confirmar:
viu Lucas saindo às dez horas.
Quando desligo o telefone, continuo olhando firme para os dois. Quero
instilar o terror em seus corações, como dizia meu professor
de Direito Penal.
- Não posso prometer nada - digo, finalmente. - Se acharmos o assassino,
e provarmos a culpa dele, vocês não precisam depor. Caso
contrário, Dra. Ana Paula, a senhora vai ter de repetir essa história
na polícia.
Os dois engolem em seco. Lucas segura a mão da namorada, troca
um olhar significativo com ela. Com certeza - penso - ficou doido pelos
óculos de grau. Quem diria. O rei da malhação.
De volta à
Homicídios, Tereza, a secretária, me avisa:
- Uma moça ligou aqui para você. Verônica Martin.
- Verônica?
- Amiga da Raquel Dantas. Não lembra? Faz papel da irmã
dela, na TV. Bom, pra falar a verdade, essa novela aí anda bem
fraquinha. Eu só assisto porque minha mãe vê. A Verônica
pediu para você ligar e deixou o número. O Patrício
já conversou com ela na sexta-feira, logo depois do crime. Mas
ela quer ajudar na investigação...
- Era a melhor amiga da morta - rosna o investigador Patrício,
na sua mesa do canto. - Bem gostosa, aliás. Magra, mas com cada
coxão!
- Ela tem álibi para a hora do crime?
- Tem... Estava com o namorado. - diz ele, já absorto na seção
de Esportes do jornal.
Ligo para o número que Verônica deixou. Ninguém atende.
Deixo recado na secretária eletrônica.
O carro está na oficina. Já é a quarta vez nesse
ano. E eu não tenho dinheiro pra comprar outro...
Volto para casa de ônibus, pensando em como resolver esse caso -
e logo, antes que comecem a criticar a polícia. Com a arma do crime
desaparecida e o principal suspeito inocentado, só há um
jeito de chegar ao assassino: conversando. Vou falar com todo mundo que
conheceu a morta: colegas de trabalho, parentes, amigos...
Quando entro no apartamento, Mariana está assistindo televisão
no volume máximo. Tento dizer alguma coisa, mas sou congelado por
um "psiu". Estão exibindo a novela da seis.
Sento em frente à TV. Quem sabe, assistindo "Corpo Sarado",
enxergue alguma luz...
Cinco minutos depois, entram os comerciais. Comento, desanimado:
- Não entendi nada.
- Nossa, Totó, você é muito retardado - diz Mariana.
Vai até a cozinha, pegar um refrigerante. Deve ter saído
da praia há menos de uma hora, espalhou areia na sala, e ainda
não trocou de roupa. Abre a garrafa de Coca-Cola, toma um gole
grande e começa:
- Olha só, seu burrão: tem a Penélope e a Bartira,
que são irmãs. A Penélope namora o campeão
de fitness da academia, que é o Tiago. A Penélope é
a Raquel Dantas e a Bartira é a Verônica Martin, certo?
- Certo.
- A Bartira está a fim do namorado da irmã. Até agora
ele não deu mole. Mas eu li na revista que ela vai embebedar o
Tiago, ficar com ele uma noite e engravidar de propósito.
- O Tiago é aquele que não mexe um músculo da cara?
- Ele é modelo. Lembra, fazia um comercial de cuecas... Depois
dele engravidar a Bartira, o namoro com a outra acaba, e a Penélope
tem um caso com o loiro que estava malhando no step.
- Como você sabe disso?
- Lendo as revistas, ora.
- Mas se as revistas contam a história toda, que graça tem
assistir a novela?
- Ah, sei lá. Pelo menos, se algum dia eu tiver que resolver o
assassinato de uma atriz, não preciso ficar perguntando tudo pra
minha irmã inteligente - revida Mariana. - E agora dá licença,
que eu preciso ir tomar banho.
- Eu tomo banho primeiro! Acabei de chegar do trabalho, estou cansado!
- Problema seu - diz ela, batendo a porta do banheiro na minha cara.
O banho de Mariana costuma demorar uma hora. Volto para a sala, desligo
a televisão e inspeciono o caos do ambiente. Uma embalagem de McDonald's,
velha de vários dias, está em cima da mesa do centro. Revistas
espalhadas pela sala toda. Migalhas de pão em cima do sofá.
E por falar em sofá, o que é isso atrás das almofadas?
Uma coisa branca... Não acredito! Uma cueca! Mas será que
esses dois não têm vergonha na cara? Que o Fábio,
namorado dela, durma aqui várias vezes por semana, tudo bem. Desde
que ela não me apareça grávida, perfeito. Mas uma
cueca atrás do sofá! O que eles pensam que isso aqui é?
Algum chiqueiro?
Quando os meus pais moravam aqui, ela não era tão folgada.
Pelo menos fingia estudar. Até aparecia de vez em quando no cursinho.
Hoje nem finge mais. Ano passado, tomou a segunda bomba no vestibular.
Quer entrar em Psicologia, imagine só. Quem se trataria com uma
desequilibrada dessas? Passa o dia na praia ou assistindo televisão.
Isso se não andar metida com coisas piores... Mas até hoje,
tirando um ocasional cheiro de mato queimado no quarto dela, nunca percebi
nada.
Papai e mamãe ligam de vez em quando. Bem cômodo pra eles!
Se mudam, vão curtir a aposentadoria no interior, e deixam esse
pepino para mim. Olha só essa geladeira! Um refrigerante e um vidro
de maionese vazio. Mais nada. A criatura não tem a capacidade de
ir ao supermercado! O que ela faz o dia inteiro, afinal?
- Hoje conheci um cara super-legal na praia.
Mariana está usando um camisetão e uma toalha na cabeça.
Existem exatamente duas toalhas de banho nessa casa. A outra ela deve
ter usado para se enxugar.
- Que cara?
- Um fotógrafo da "Telemania".
- O que é isso?
- Uma revista.
- Revista do quê?
- De criação de peixes, Totó. Nossa, vê se
presta atenção nas coisas! A "Telemania" publicou
uma matéria enorme sobre o assassinato da Raquel Dantas.
- E o que dizia a matéria?
Mariana faz uma pausa dramática. Abre o congelador e desenterra
uma embalagem plástica de sorvete:
- O importante não é o que eles publicam - sentencia - É
o que eles deixam de publicar.
- Ah, é? E o que eles não publicaram? E aliás, aonde
a senhora arranjou esse sorvete? Não tem uma migalha de comida
nessa casa...
- Corria um boato de que a Raquel tinha um caso com o Mário Alexandre
- Olha para a minha cara e geme: - Ih, já sei. Você também
não sabe quem é ele.
- Fala logo, Mariana.
- É o autor da novela.
- Ah, bom.
- Ele é divorciado. Só que é bem velho.
- Velho, como?
- Ah, deve ter... olha, no mínimo uns quarenta. Mas o marido dela
também tem essa idade, né? Vai ver ela gostava de velho.
Me diz uma coisa - e a colherzinha pára no ar. - Você foi
ver o Lucas Periotto? Ele é culpado?
- Não é da sua conta.
- Conta logo, vai, Totó.
Não vou conseguir escapar dela. Mas sempre se pode negociar:
- Me dá um pouco desse sorvete?
Chego cedo à
Delegacia. Mariana jurou que hoje vai ao cursinho. Seria a primeira vez,
esse ano...
- Totó, acabamos a busca no apartamento da Raquel. - vem me contar
Patrício, todo esbaforido.
- Alguma coisa interessante?
- Várias. Deixa eu te mostrar.
As pistas "quentes" que Patrício trouxe são uma
coleção de besteiras. Um vibrador. Uma caixa de Lexotan.
Cartas de fãs. Um álbum de fotografias do casamento da irmã...
Fico olhando para ele, desanimado. Patrício sorri, triunfante,
e diz:
- Ah, e também tem isso. - Tira do bolso do paletó um embrulho
de presente muito bem-feitinho, intacto. Pelo formato, não é
preciso ser nenhum gênio para adivinhar o conteúdo: é
uma caneta.
Antes que eu resolva abrir, o telefone toca:
- O detetive Aristóteles, por favor.
- Falando.
- Detetive, aqui é a Verônica. Verônica Martin.
A conversa é breve. Verônica não se conforma com a
morte de Raquel. Está disposta a ajudar a polícia: "Já
dei o depoimento, mas poderia ajudar mais. Quem sabe, conversando, me
lembro de algum detalhe importante... Nós passávamos muito
tempo juntas."
Verônica mora na Barra, e tem meia hora disponível antes
das gravações.
O apartamento de
Verônica é pequeno, mas decorado com bom gosto. As paredes
da sala de estar estão cobertas de estantes com livros e CDs de
música clássica. No centro, fica um grande sofá branco,
onde ela pede que eu me sente,
- Já mandei a moça fazer café - anuncia. Suspira,
senta-se ao meu lado. - Que coisa horrível. Você acredita
que semana passada a Raquel esteve aqui? Era meu aniversário, mas
eu nem ia comemorar. Muito trabalho... Além disso - observa, com
um sorriso - depois dos trinta anos, a gente não comemora mais,
né?
- Trinta anos? - digo, sinceramente surpreso. - Não parece.
O sorriso se torna mais melancólico:
- Trinta e um... Todo mundo diz que pareço mais moça. Mas,
francamente, acho que nem estou mais em idade de interpretar a Bartira.
Ela é uma adolescente! Aceitei o papel porque Mário Alexandre
e Terêncio - o diretor - insistiram.
No caminho para cá, telefonei para Mariana e pedi informações
sobre Verônica Martin. Sorte que hoje, mais uma vez, minha irmã
matou aula no cursinho!
- A Verônica nunca fez grande coisa - informou minha irmã.
- Sempre uns papéis assim de secretária, melhor amiga, vizinha,
sabe? Coitada, não deu sorte. E ela trabalha melhor que a Raquel
Dantas. A Raquel só sabia cruzar as pernas e jogar o cabelo pra
trás.
- Ela era um amor - continua Verônica. - Você acredita que
a Raquel lembrou do meu aniversário, veio para cá e ainda
trouxe vários amigos meus? Organizou a festa inteira, tadinha.
Seus olhos se umedecem. Belos olhos negros, cílios grandes, cabelo
preto muito liso. Magrinha. Pena que esteja de calça comprida -
não dá para avaliar as coxas.
- Ela me deu um presente - diz Verônica. Corre até a prateleira
e me traz um CD. Pagode, de novo. - Não é bem o tipo de
música que eu gosto, mas olhe só a dedicatória.
Leio a inscrição na capa do CD: "Para a minha irmãzinha
Verônica, com muito carinho, em seu aniversário". É
o mesmo CD que estava tocando no som da morta, quando achamos o cadáver.
- Nunca tínhamos trabalhado juntas, mas durante a novela fizemos
amizade. Contamos a vida inteira uma pra outra. A Raquel era uma moça
simples, de subúrbio, mas também uma pessoa maravilhosa.
Solidária... Não estou falando só porque ela morreu.
- Deve ter sido um choque para você...
- Até hoje não me recuperei. É como eu disse: parece
um sonho. Naquela manhã eu estava com o Luís, meu namorado.
Quando ouvi a notícia na televisão, passei mal.
- Entendo.
- Quero ajudar a pegar o assassino. Pelo que estão falando, parece
que foi o Lucas, não?
- Estamos investigando várias pessoas. A Raquel costumava falar
do relacionamento com o Lucas?
- Bastante. Os dois brigavam muito. Sabe, Totó... posso mesmo chamar
você assim?
- Claro, à vontade.
- Na minha opinião, esse casamento foi um erro. Os dois não
eram compatíveis. O Lucas se achava superior à Raquel. Mas
quem é ele pra ficar esnobando a mulher? Um simples marombeiro.
Nem faculdade de Educação Física tem. Vivia insinuando
que a Raquel não era culta, envergonhava ele, etc. Você sabe
- diz, de repente, baixando o tom de voz e inclinando-se em minha direção
- que ele andava de caso com uma advogada?
- Sei.
Meio desapontada, ela pega a xícara de café que a empregada
trouxe:
- Então. Pois é.
- A Raquel aceitaria o divórcio?
- Claro. Desde que ele não a deixasse em má situação
financeira.
- Mas os dois eram casados com separação de bens...
- Sim, mas ela ajudou muito o Lucas. Botou dinheiro dela na academia -
que aliás, não anda bem das pernas. Você acha que
ia admitir que ele saísse do casamento assim, deixando ela sem
um tostão? Duvido.
- Lucas disse que a Raquel não tinha dinheiro, quando ele abriu
a academia...
- Mentira. Ela ajudou o marido. Sempre teve um bom pé-de-meia,
era muito econômica.
- A Raquel chegou a dizer que queria ser compensada, em caso de separação?
- Várias vezes. Me lembro das suas palavras exatas: "Ele não
vai me usar e jogar fora".
Interessante. É um novo ângulo a ser explorado.
- Verônica, desculpe a sinceridade...
- Pode falar com franqueza, Totó.
- Você sabe se a Raquel tinha outros homens? Além do marido,
quer dizer?
Ela me olha como se não entendesse. Finalmente, levanta as sobrancelhas
e sorri:
- Já sei. O Mário Alexandre, não é? Andou
correndo um boato sobre os dois...
- Exatamente.
- Você é muito bem informado, Totó.
(Espero que ela nunca descubra que a minha fonte é uma garota de
dezoito anos, assinante de "Telemania".)
- Mas o boato tem fundamento?
- Francamente, Totó, não sei. A Raquel era uma pessoa discreta.
Tinha coisas que ela não comentava nem com os mais íntimos.
O Mário Alexandre escreveu o personagem da Penélope especialmente
para ela, e exigiu que o Terêncio a escalasse. O Mário é
um homem charmoso, disponível... Os dois eram muito amigos.
- Só amigos?
- Bom, havia um certo clima...
Rumino as informações por alguns momentos:
- A Raquel considerava o divórcio inevitável?
Verônica hesita:
- Isso não, Totó. Inevitável, eu não diria.
Acho que ela ainda estava disposta a lutar mais um pouco.
- Meu Deus, como
esse negócio é ruim!
São sete horas da noite. Acabo de assistir a novela com minha irmã
e Fábio, namorado dela. Na televisão, os créditos
finais de "Corpo Sarado" já estão rolando, para
meu alívio.
A novela é um verdadeiro horror. Parada, chata, pretensiosa...
Os atores - Raquel Dantas incluída - parecem só estar na
tela para mostrar músculos e curvas. Quando não estão
malhando em algum aparelho de musculação, protagonizam intermináveis
cenas de amor, que também incluem muitos músculos e curvas.
Ninguém trabalha e todo mundo só pensa em sexo.
- É um saco - concorda Mariana, gravemente.
- Coitada dessa moça, teve uma morte horrível, mas como
ela trabalhava mal! Era uma canastrona. A Verônica Martin até
que é melhorzinha...
- E aí, ela tem aquele nariz mesmo? Ou é alguma plástica?
Resignado, conto a visita inteira.
- Ela te disse que a Raquel estava tendo um caso com o autor da novela?
- Não. Disse que tinha um clima... Diz uma coisa, Mariana, a novela
está fazendo sucesso? Alguém assiste essa chateação?
- Não muita gente. A audiência anda caindo. A emissora está
preocupada... Fábio, pára de morder minha orelha! Que coisa
irritante!
Depois que Mariana
e Fábio se retiram para o quarto (prefiro não pensar no
que estão fazendo lá) fico sentado, pensando.
Mário Alexandre foi muito amigo da morta... Só amigo? Esse
ponto precisa ser tirado a limpo. Por que moveu céus e terras para
conseguir um papel para ela? Decididamente, vou falar com esse sujeito.
Vou para o meu quarto, e começo a tirar a roupa para me deitar.
Ao colocar o paletó no cabide, percebo um volume no bolso. O pacotinho
com a caneta!
Abro o embrulho e o estojo. Dentro, está uma caneta tinteiro. De
luxo. Não sou nenhum especialista, mas essa coisa deve ser caríssima...
Volto a checar o embrulho e o estojo. Nem um cartãozinho, nada.
Será que esse presente era para a morta?
Dou mais uma olhada na caneta, e só então percebo as letras,
gravadas com capricho.
"Para RD, de MA, com muito amor
5/1/2001"
O dia em que Raquel foi assassinada. E o destinatário do cartão
tem as mesmas iniciais que ela!
Bato na porta do quarto de Mariana. Depois de vários minutos, ouço
a sua voz:
- Que foi agora? Que palhaçada é essa, Totó?
- É rapidinho. Mariana, me responde uma coisa: nas suas revistas,
você tem um retrato do Mário Alexandre?
- Um retrato de quem?
- Do Mário Alexandre! O autor da novela!
- Ah, cara, não enche! Vai dormir!
- Tem ou não tem?
Silêncio. Ao fundo, uma voz masculina está grunhindo alguma
coisa. Finalmente, Mariana responde.
- Devo ter sim. Depois eu procuro. E agora chega, tá? Área!
- Mas a foto...
- Amanhã te dou! Desinfeta, cara!
Graças a Deus - penso, enquanto me retiro de novo para o meu quarto
- o estojo tem o nome da loja.
No dia seguinte, na joalheria, não demoro cinco minutos para confirmar
a pista:
- Isso mesmo, é este senhor da foto. Veio buscar a caneta na quinta-feira.
Me lembro porque ele pediu uma gravação na caneta. Umas
iniciais.
Saio triunfante. MA me deve algumas explicações. Claro,
a caneta em si não diz nada. No máximo, confirma o caso
dos dois. Mas a data é sugestiva. Tenho que descobrir o que está
por trás disso.
Mário Alexandre está em casa, e fica furioso com o meu telefonema:
- Impossível. Não posso falar com o senhor de forma alguma.
Tem uma idéia de quantos capítulos eu tenho que escrever
até o fim da semana? Dirija-se ao meu advogado, por favor. Preciso
trabalhar.
- Pode trabalhar à vontade. Assim que me explicar o problema da
caneta.
Pego de surpresa, ele gagueja:
- Caneta? Que caneta?
- Você sabe do que estou falando.
Um silêncio mortal toma conta do outro lado.
- Estou esperando, Mário Alexandre.
- Está bem - sussurra ele - quanto você quer?
- Quanto eu quero pra quê?
- Esquecer o assunto. Jogar a caneta no lixo.
- Eu não aceito suborno. Muito menos para destruir evidências.
- Conversa. A polícia sempre aceita. Todo mundo sabe disso.
- Se você continuar nesse tom, vou ser obrigado a denunciá-lo
por tentativa de corrupção. As coisas vão ficar difíceis.
- Então, o que você quer?
- Falar com você. Pessoalmente.
- Na hora que você quiser (ah, agora o tom mudou!) Vou explicar
essa história da caneta... Não é nada do que você
está pensando.
- Eu não estava pensando em nada, Mário Alexandre.
Mário Alexandre
não quer que eu vá ao seu apartamento. "Uma visita
da polícia ia atrair muita atenção dos vizinhos,
do zelador..." "Mas estou à paisana" "E daí?
Polícia sempre tem cara de polícia."
E assim, sou obrigado a me encontrar com ele num boteco a vários
quarteirões de sua casa: "Lá só tem bêbado,
ninguém vai reparar em nós".
De fato, o lugar é sórdido. Nunca imaginei que tanta gente
conseguisse encher a cara antes do meio-dia.
- Você é da polícia mesmo? - pergunta o autor, antes
de sentar comigo à mesa. Mostro a carteira e ele resmunga: - Mas
tão moço...
- Já tenho vinte e quatro anos.
Ele está com uma cara péssima. Parece apavorado. É
bem mais velho do que Mariana disse - deve ter no mínimo cinqüenta.
- Muito bem, Aristóteles...
- Totó.
- Totó. Que apelido simpático. Me desculpe pelo que falei
ao telefone. Não queria te ofender. Mas essa caneta não
é nada do que você está pensando.
- Não?
- Não. Essa caneta foi comprada para outra pessoa, que tem as mesmas
iniciais. E a data é do aniversário dessa outra pessoa.
- Mas como ela foi parar na casa da Raquel? E justo nesse dia?
Ele engole em seco. Olha para o lado. Um grupo de sujeitos está
discutindo futebol, em voz bem alta.
- É uma longa história... Eu pedi à Raquel que entregasse
a caneta para o aniversariante.
- O senhor me desculpe, mas está difícil acreditar nisso.
- É a verdade, Totó.
- E quem era essa pessoa, Mário?
Uma expressão de desânimo passa pelo seu rosto. Seja o que
for que ele está escondendo, deve ser difícil de contar.
- Olhe, eu era um dos melhores amigos da Raquel. Pode perguntar a quem
quiser. Nunca faria mal a ela. Nós nos conhecemos há três
anos, quando fez sua primeira novela. Eu tinha muito respeito por ela.
Tinha muita garra, essa moça.
- Corre por aí que vocês dois tinham um caso.
- É mentira - diz ele. Olha para os pés, desolado. Saiu
de casa de chinelos.
- Então é uma mentira muito espalhada.
- Claro. Eu mandei espalhar.
Fico olhando para ele, sem entender.
- É o seguinte, Totó. Vou abrir o jogo com você, mas
o que eu falar não sai dessa mesa. - Pigarreia - Eu mesmo pedi
a algumas assessoras de imprensa, amigas de longa data, para plantarem
esse boato. É muito fácil, com meia dúzia de telefonemas
elas resolveram tudo. Também me deixei fotografar com a Raquel
algumas vezes...
- Por quê?
- Publicidade. Qualquer coisa, para levantar os índices de audiência.
Minha novela está indo mal, Totó.
Tenho vontade de dizer que a novela merece ir mal. Mas me contenho:
- Essa história está fraca, Mário. Se o seu romance
com a Raquel é uma manobra de relações públicas,
então por que você comprou uma caneta caríssima para
ela, e mandou gravar uma inscrição romântica?
- Já disse! A caneta era para outra pessoa, que tem as mesmas iniciais
que ela.
Olho para o homem, incrédulo:
- Quem é essa mulher, então?
- Não é uma mulher - sussurra ele.
- Como?
- Ronaldo Delmanto, campeão de vôlei de praia - explica o
autor.
- Um homem?
- Por favor, não fale tão alto - sussurra Mário,
olhando nervosamente ao seu redor. - O Ronaldo está se separando
e quer a guarda dos filhos. Uns amores de crianças. A mulher pode
arruinar a vida dele. Ninguém sabe que o Ronaldo é... bom,
enfim, você entende. Só a Raquel sabia.
Agora, parece ficar comovido. Seus olhos se enchem de lágrimas,
ele tira um lenço do bolso.
- Nós nos comunicávamos através dela. Mandávamos
bilhetes, presentes... Quando as coisas se acalmarem, vamos viver juntos.
Agora não dá. Muita exposição. Ele está
disputando um campeonato importante... Ia viajar no dia em que a Raquel
morreu. Por isso mandei aquele presente. Agora ela não pode mais
entregar....
O homem está em prantos. Um dos bêbados vem até nós
e dá um tapinha solidário no seu ombro .
- E você deixou
ele ir embora com essa história?
- Eu confirmei com o tal Ronaldo. Além do mais, tenho experiência
em interrogatório, Mariana. O homem estava falando a verdade.
- Desse jeito fica fácil os suspeitos se livrarem, né? É
só dizer que têm um caso enrustido com alguém, e pronto.
Imagina, esse aí até inventou que era bicha.
- Ele não inventou. De perto, dá pra ver que é veado.
E de qualquer jeito, o cara não tem como fugir. Estou de olho nele.
- Ah, sim, claro. Como é que você sabe que amanhã
ele não vai para Miami com o amiguinho dele, trabalhar de drag
queen?
- Não enche o saco, Mariana. Aliás, foi na escola hoje?
- Não é da sua conta.
- Sabe de uma coisa? Vou ter uma conversa séria com o papai e a
mamãe. Estou de saco cheio de ficar sustentando gente que não
trabalha, não estuda e vive na praia.
- Você não me sustenta. Eles mandam mesada.
- Vão parar de mandar, quando eu telefonar para eles.
Pela primeira vez, consegui atingir Mariana. Ela fica com a colher de
sorvete no ar, perturbada. Finalmente, faz uma careta e pergunta:
- Está bem, o que você quer?
- Que você comece a estudar, antes de mais nada. Que vá todos
os dias ao cursinho. E outra: que me ajude com essa investigação,
que está parada. Amanhã, depois da aula, você vai
visitar o arquivo de todas essas revistas de TV. Vale tudo o que achar
sobre a Raquel. Tudo.
Verônica Martin
me liga de novo, perguntando da investigação.
- Vai indo.
- Já conversou com o Mário?
- Conversei, sim.
Percebo que ela está esperando por mais detalhes. Mas não
dou nenhum. Converso algumas banalidades e desligo.
No dia seguinte,
na delegacia, Patrício vem me procurar.
- Sabe de uma coisa, Totó? Pode não ter nada a ver, mas
aconteceu uma coisa esquisita no prédio da Raquel Dantas...
- Que foi?
- A vizinha de baixo do apartamento dela reclamou de um arrombamento.
- Vou já pra lá.
Só volto para
casa às onze da noite. Mariana está, como sempre, em frente
à televisão - sem o Fábio, graças a Deus.
Trouxe um pote enorme de maionese para a cozinha, e está comendo
salgadinhos besuntados.
- Por que você nunca come comida de verdade?
- E porque você fica me enchendo o saco? - diz ela. Desliga a televisão
e olha para mim, curiosa.
- Houve um arrombamento no prédio da Raquel. - resmungo. - No apartamento
de baixo. A porta estava arrombada, e isso é que é estranho,
a janela também. Cadê meu CD do Negritude Júnior?
- Ah, não, Totó - geme Mariana - você não vai
ouvir aquela bosta.
- Vou sim. Eu penso melhor escutando pagode.- Vou até o aparelho
de som, coloco o CD e volto à minha poltrona, onde me sento com
cuidado. O encosto está arriado. Dois anos depois da mudança
dos meus pais, não há um só móvel inteiro
na casa.
- Você acha que esse arrombamento tem alguma coisa a ver com a morte
da Raquel?
- Em princípio, não. A mulher que mora lá estava
viajando na época. Só voltou hoje. Mas é esquisito,
Mariana. Não levaram nada.
- Eu também descobri um troço interessante - diz ela.
- É mesmo? O quê?
- Todo mundo tinha motivos para assassinar a Raquel.
- Todo mundo quem?
- Calma! Vou te falar tudo que descobri sobre os caras.
- Vamos lá.
Minha irmã tira da bolsa um caderninho sujo:
- Primeiro, o Lucas Periotto. Eu, se fosse você, não descartava
esse cara. Ele precisa de dinheiro. A academia não vai bem. Ele
tem dívidas, e deve uma puta grana de impostos. A Receita Federal
está no calcanhar dele. Se a Verônica Martin está
falando a verdade, e a Raquel queria uma grana para sair do casamento,
isso seria um problemão para o Lucas.
- Hum, hum... - murmuro, sem muito interesse. Nada disso destrói
o álibi de Lucas.
- Aliás, a Verônica Martin precisa ser investigada.
- Você acha?
- Para mim, todo mundo é suspeito. A Verônica aparentemente
não tinha motivos, era amiga da Raquel. Mas podia sentir inveja
dela, não é? A Raquel só precisou fazer amizade com
o Mário Alexandre para se dar bem. Enquanto isso a Verônica
deu duro a vida toda, está com mais de trinta anos e nunca conseguiu
um papel principal numa novela.
- Ela ralou duro, é?
- Coitada, até dá pena. A vida dela é triste. Você
sabia que ela ia arrebentar a boca do balão, nas Olimpíadas
de 1988?
- Que história é essa?
- Ela fazia ginástica olímpica. Era the best, cara. Na última
hora, torceu o pé e ficou de fora do time brasileiro. Nas próximas
Olimpíadas, já estava velha demais pra competir. Aí
virou modelo, não deu muito certo, fez uns comerciais... Acabou
na televisão com esses papeizinhos: melhor amiga, irmã,
essas coisas.
- Tudo isso é muito triste, mas não transforma a Verônica
em assassina.
- Bom, depois tem o Mário Alexandre. Se divorciou faz um tempão,
mas ninguém desconfia que ele é gay. Disfarça bem.
Sai com várias mulheres, as revistas publicam notinhas e as pessoas
acham que o Mário está comendo todas.
- Foi o que ele fez com a Raquel Dantas.
- E também com a Verônica Martin. Os dois saíram juntos
uma época. Achei várias notinhas sobre eles. Agora, pensa
bem: e se a Raquel estivesse chantageando o Mário? Por causa do
divórcio do campeão de vôlei?
- Duvido muito, Mariana. Por que a Raquel chantagearia ele?
- Por exemplo, para aumentar o papel dela.
- Mas ela já tinha o papel principal! Bom, também podia
ser por dinheiro... Talvez seja melhor não descartar o Mário
Alexandre. O seguinte.
- Ah, esse é o melhor. Esse é quente. Esse tinha motivo
mesmo para matar a Raquel.
- Quem?
- O diretor da novela, Oswaldo Terêncio. Olha só a ficha
desse cara: ele tem várias passagens na polícia por agressão.
Andou metido com traficantes de drogas por muito tempo, e até se
envolveu no caso de Toninho da Dida.
- Aquele traficantão do Morro do Juramento?
- Esse mesmo. O cara matou um policial, fugiu do morro e até hoje
não encontraram. Depois, descobriram que ficou pelo menos uma semana
escondido na casa do Terêncio. Os dois são amigos.
- Barra pesada, o cara. Mas por que ele mataria a Raquel?
- Porque odiava ela! Teve várias brigas com a Raquel. Vi umas fofocas
de bastidores, sabe como é? Os dois tiveram uns arranca-rabos,
a coisa andava preta. Dizem até que ele tentou agredir a menina.
- Mas por que?
- Porque ela não sabia interpretar. O Terêncio é muito
exigente com os atores.
- Espera aí, Mariana. Ele mataria a Raquel só porque ela
era canastrona? Se todo mundo fizesse isso, a televisão ia ficar
despovoada...
- É, mas ele estava furioso, Totó. Veja bem: quase agrediu
a moça. E disse que ela estava arruinando a novela.
Meu primeiro contato
com Terêncio não é muito promissor. Vou esperá-lo
na porta da emissora. Quando me identifico, ele fecha a cara:
- Já falei tudo o que sabia em meu depoimento.
- Ainda precisamos esclarecer uns detalhes.
- Não vou falar mais nada, já disse. Sou um homem muito
ocupado.
- Se o senhor não falar comigo aqui, vou ter de convocá-lo
à delegacia.
O homem fica vermelho, resmunga alguma coisa que eu não entendo
e entra no carro. Persistente, bato no vidro. Ele abre:
- O senhor quer me deixar em paz? Eu já disse, fale com o meu advogado.
- Seu advogado? Será que ele me explica por que o senhor agrediu
a Raquel?
Ele arranca o carro, e quase leva meu braço junto.
- Como é que
ninguém me falou dessa história antes?
Meu chefe, o delegado Viegas, está para ter um ataque. Tento acalmá-lo.
Não quero que ele saia dando bronca em todo mundo; senão
fico impopular com meus colegas.
- Bom, acho que ninguém sabia, chefe.
- Nota-se! Ninguém pesquisa! Ninguém investiga! Se não
fosse você, eu nunca saberia dessa história do diretor.
Lá fora, meus colegas já estão estendendo o pescoço
para escutar a conversa. Farejo problemas e trato de minimizar minha contribuição:
- Também não é assim, chefe. Eu só fiquei
sabendo disso porque arranjei uma pessoa para me fazer umas pesquisas.
De graça, claro, pra me fazer um favor.
- Mas quem é essa pessoa?
- Um detetive particular - minto, sem pestanejar. - Muito experiente.
O advogado deve ter
aconselhado Terêncio a se acalmar. No dia seguinte, ele comparece
à delegacia por vontade própria. O Dr. Viegas me encarrega
de interrogá-lo.
Terêncio está ressentido:
- Por que vocês estão fazendo isso comigo? É um absurdo.
Na manhã do crime eu estava em casa. Moro do outro lado da cidade.
- O senhor tem alguma testemunha disso?
- Minha mulher.
Grande álibi!
- Além disso, eu não tinha nada contra a Raquel.
- Me desculpe, mas isso não é verdade. O senhor inclusive
chegou a vazar para a imprensa especializada que ela estava arruinando
a novela.
- Não vazei nada para ninguém, mas e daí? Eu não
mataria a moça só porque ela era péssima atriz. Tivemos
umas discussões mais acaloradas, só isso.
- Dizem que você agrediu ela.
- Mentira! - ele desabafa - Só peguei no braço dela, mais
nada. A Raquel queria se promover à minha custa. Vou ser franco
com você: ela era horrível, sim. E nem conseguia disfarçar
a canastrice. Dava na vista. Eu falei, pedi, implorei, mas não
adiantava. Ela nem se dava conta de que era ruim! Se apoiava no Mário
Alexandre, que é amigo dela. Começou a desafiar minha autoridade,
a me detonar com os outros atores. Transformou minha vida num inferno.
Se eu tivesse mesmo matado ela, estaria tentando esconder tudo isso, não
é? E no entanto estou admitindo.
- Sim, agora - digo eu. - Mas no primeiro depoimento que o senhor deu
no inquérito, disse que era - consulto o documento - "um dos
melhores amigos da vítima". Portanto, não contou exatamente
a verdade, certo?
Ele balança um pouco, mas acaba dizendo:
- É, eu tive medo. Já andei fazendo algumas besteiras na
vida, e fiquei marcado. Principalmente depois do caso do rapaz que se
hospedou na minha casa.
- Hospedou, não. Ele era foragido da justiça. Estava homiziado
em seu apartamento. O seu dever era entregá-lo à polícia.
- O Toninho? Mas o cara é meu amigo de infância!
Suspiro. Sento na borda da mesa, fico olhando para ele.
- Sabe de uma coisa? O senhor não está conseguindo me convencer.
- Eu não toquei na Raquel, juro pelos meus filhos. Olha, ela realmente
vinha me dando muitos problemas. A novela ia mal. Mas a gente tinha bolado
uma reviravolta para levantar a audiência.
- Que reviravolta?
- Bom, por enquanto era só uma idéia, e poucas pessoas estavam
a par - nem a Raquel sabia disso. Foi uma idéia minha, do Mário
Alexandre e do diretor do núcleo. Ninguém mais estava informado.
- Bom, talvez seja interessante o senhor me contar.
Ele começa a falar.
No fim da tarde,
Terêncio é liberado. A essa altura, uma multidão de
repórteres o está esperando na saída da delegacia.
Problema dele. Não morro de amores por esse sujeito.
Quando chego em casa, minha irmã avisa:
- A Verônica Martin ligou. Diz que viu o Terêncio na televisão
e queria falar com você. Está esperando na casa dela.
- Mas o que ela quer comigo?
- Disse que tem dados importantes sobre o Terêncio.
Uma hora depois,
estou de volta ao apartamento de Verônica. Ela me recebe de minissaia
(oba!) e um sorriso enorme.
- Que bom te ver, Totó. Temos muito que conversar.
Antes que consiga dizer qualquer coisa, estou sentado no sofá,
com um uísque na mão. Ela cruza as pernas. Fantásticas!
- Sabe de uma coisa? Naquele dia, eu devia ter te falado do Terêncio.
Sobre a briga dele com a Raquel, principalmente. Eu não estava
no estúdio na ocasião, mas depois comentaram comigo. O Terêncio
é um horror. Autoritário, amigo de bandidos... Talvez vocês
estejam na pista certa.
- É, talvez.
- Além disso, é uma pessoa violenta.
Balanço a cabeça.
- Pode ser, Verônica. Mas não consigo ver o Terêncio
pegando a faca de churrasco e esfaqueando a Raquel pelas costas. Não
vejo ele deixando a Raquel ali, se esvaindo em sangue, naquele robe verde...
- Branco.
- Ou isso.
- Você é ingênuo, Totó.
- Não sou ingênuo. Tenho mais informações do
que você pensa. Estou compondo um perfil do assassino, e o Terêncio
não se encaixa nele.
- Por quê não?
- Para começar, o Terêncio não tem preparo físico.
Sabe como o assassino saiu do apartamento da Raquel, Verônica? Pela
janela. E dali, pelo apartamento de baixo, que ficava no andar térreo.
Era isso, ou a faxineira - que já estava chegando - pegava essa
pessoa em flagrante.
Verônica quase perde a fala:
- Mas isso é impossível! Sair pela janela, fechar de novo,
e se jogar contra a janela de baixo? Ninguém conseguiria fazer
isso!
- Ninguém... a não ser, é claro, uma ex-atleta olímpica.
Você continua mantendo a forma, não continua, Verônica?
Ela fica me olhando, sem dizer uma palavra. Gradualmente, a expressão
do seu rosto muda. Onde antes havia uma garota meiga, uma outra Verônica
se instala. Uma Verônica de olhos frios:
- Eu malho todos os dias, Totó. Mas isso não prova nada.
Não tinha nada contra a Raquel. Era minha melhor amiga.
- Mentira - digo eu. - Você tinha motivos de sobra para acabar com
ela. Inveja, para começo de conversa. Eu tenho uma consultora,
Verônica, e ela me chamou a atenção para alguns fatos
interessantes. Por exemplo, a Raquel era muito mais moça que você
e já tinha um papel central na novela. Imagino o seu ressentimento...
Principalmente porque ela é pior atriz que você.
"Você se dizia amiga da Raquel. Mas vocês não
tinham muito em comum, não é? A Raquel, por exemplo, adorava
pagode. Você é fã de música clássica.
Deve ter ficado furiosa, quando ela te deu aquele CD de aniversário,
certo?"
Verônica não responde. Mas sua cara diz volumes.
- Imagino a sua raiva. Sem talento nenhum, ela conseguiu em poucos anos
o que você tentou conquistar a vida toda. Bastou apelar para o Mário
Alexandre, e ganhou o papel. Você tentou a mesma coisa, certo? Saiu
com ele, talvez tenha até se insinuado para o Mário. Perda
de tempo...
"Mas não foi por isso que você matou a Raquel."
- Totó, você está delirando.
- Você matou a Raquel - continuo - por uma questão de sobrevivência.
- Sobrevivência?
- Talvez você possa alegar isso no julgamento... Legítima
defesa. Você matou para não morrer, Verônica.
-.... ???
- Ele ia te matar, não é? O Mário Alexandre. Já
estava com tudo pronto. Ele e o Terêncio.
Pela primeira vez, Verônica perde o controle:
- Eles não tinham o direito de fazer isso! - grita, furiosa.
- Você ficou sabendo pelo Mário Alexandre, certo? Ele ficou
com dor na consciência e acabou comentando com você. Queria
prepará-la para o golpe...
- Aquele escroto! - lágrimas correm pelo rosto de Verônica.
- Ele não podia me matar desse jeito. Não podia. Veado nojento!
Abraço-a pelos ombros.
- Realmente, seria uma injustiça, Verônica. Assisti a novela
e concordo com você. Você é muito mais atriz que a
falecida. Não merecia que matassem a sua personagem, só
para melhorar a audiência.
- Fiquei desesperada. - soluçou ela. - Não agüentava
mais ser jogada pra escanteio. Foi aí que surgiu a idéia
de assassinar a Raquel. Ia dar manchete em todos os jornais, a audiência
da novela subiria, e eles não teriam outra saída senão
aumentar o meu papel. Seria uma chance de mostrar o meu talento. Estou
tão cansada, Totó, de ficar pulando de papelzinho em papelzinho...
- Eu entendo - digo, compreensivo. - Entendo plenamente, Verônica.
E, enquanto ela chora, coloco-lhe as algemas. Melhor não subestimar
essa mulher. Alguém que dá salto acrobáticos na parte
externa de um edifício é capaz de qualquer coisa.
- E outra coisa, minha querida: ninguém sabia que o robe da Raquel
era branco. Não saiu em jornal nenhum.
Na noite seguinte,
está chovendo aos potes. Mariana chega da rua toda molhada, ansiosa
para saber o fim da história:
- E aí? A baranga ficou em cana?
Lanço um olhar torto para ela:
- Ficou, mas não se preocupe. Logo ela consegue um habeas corpus.
Já arranjou um ótimo advogado. Não dou três
dias para ela voltar atrás na confissão, dizer que foi pressionada...
Não temos provas, esse é o problema.
- Temos sim - diz ela, extraindo alguma coisa da sua bolsa. - Triunfante,
coloca um saco plástico transparente em cima da mesa.
É uma faca manchada de sangue.
Uma faca de churrasco.
- Mariana! Onde você arrumou isso?
- Foi fácil...
- Pára de fazer pose e conta logo.
- Bom, depois que você me falou do arrombamento no apartamento de
baixo, e de como achava que a Verônica tinha fugido, eu fiquei pensando.
Claro que a sua teoria era muito boa, mas era só uma teoria, certo?
A polícia precisa de provas.
"Fiquei imaginando a situação da Verônica, naquele
dia. Naquela manhã ela entrou no apartamento pela garagem, aproveitando
de uma hora em que alguém saiu de carro. Assim, não foi
vista pelo porteiro. Bom, aí ela chega no apartamento da amiga
com uma desculpa qualquer. Por exemplo, diz que quer ensaiar o texto.
Raquel abre a porta, sem desconfiar de nada. Verônica diz que vai
buscar um copo d'água na cozinha, pega a faca de churrasco e esconde
na roupa. A propósito: como você acha que ela pegou a outra
de costas, desprevenida, e enfiou a faca?
- Não sei.
- Simples. O CD! Ela tinha ganho o mesmo CD de aniversário, certo?
Aí, comentou alguma coisa com a Raquel e a coitada foi lá,
botar o pagode pra ela ouvir. No que virou de costas, levou a facada.
Entendeu?
- Mas como é que você pode ter certeza disso, Mariana?
- O CD ainda estava tocando quando vocês chegaram, certo? Aposto
que, quando a faxineira chegou, a Verônica tinha acabado de sair
daquela sala. E saiu com a arma na mão. Pulou para o andar de baixo,
arrebentou a janela, pegou o elevador pela garagem e saiu do mesmo jeito
que entrou. Agora, ela não pode sair na rua com uma faca pingando
sangue. Tem que se levar da arma do crime. O que ela faz?
- Conta logo, pô!
- Simples: coloca no lixo da vizinha. O que ela não sabia é
que a mulher estava viajando, e só voltou ontem. Hoje de manhã,
enquanto você ia falar com a Verônica, saí correndo
para o apartamento da mulher. Dei a maior sorte: ela estava colocando
os sacos de lixo fora. Pensou que eu fosse doida. Mas consegui convencer
ela a me deixar revistar todos os sacos. Estava bem escondido, no fundo
do lixo da cozinha. Quase morri de nojo, mas valeu a pena!
Dois meses depois,
volto a ouvir falar no caso Raquel Dantas. O advogado de Verônica
vai alegar insanidade mental.
- Insanidade mental, o cacete! A mulher é maluca mesmo! - vocifera
Mariana.
Olho para ela, desanimado:
- Mariana, por que você não estuda para o vestibular, em
vez de ficar se preocupando com isso? O caso já acabou. Está
certo, você foi brilhante, me ajudou muito. Sem você, nunca
conseguiríamos achar as digitais da Verônica naquela arma.
Depois disso, o namorado ficou com medo e acabou desmontando o álibi
dela.
"Você ajudou muito, repito. Mas agora acabou! Vê se consegue
estudar alguma coisa, pelo amor de Deus... Senão vai bombar de
novo."
- Ah, não enche, Mário.
- Mas é verdade!
Ela suspira, desanimada:. Vou até a cozinha fingir que bebo água,
para não ver a cara de tristeza dela. Quando volto, Mariana já
ligou a televisão.
- E a novela? - pergunto.
- Que novela?
- "Corpo Sarado". Como acabou?
- Não acabou nada! Você não ficou sabendo? Eles trouxeram
um novo ator para trabalhar na academia. Ronaldo Delmanto. O cara está
fazendo o maior sucesso!
- Um que era jogador de vôlei?
- Justamente! E já arranjaram uma namorada para ele. Uma loira,
que fazia comercial de sorvete... Uma que não tem bunda, só
peito.
- Ah, sei.
- (...)
- (...)
- Totó, eu não quero estudar Psicologia. Deve ser um porre.
Antes eu só queria ficar na praia, bundando. Mas agora já
sei o que quero fazer. Quero trabalhar na polícia, que nem você.
Só faltava essa. Não, realmente, só me faltava essa...
O que vou dizer pros meus pais?
Bom, depois eu penso.
- Estou com fome, Mariana. Me diz uma coisa: ainda tem sorvete?
- Não. Mas eu comprei uma lata de leite condensado.
- Passa aí.
- Você fala com o papai e a mamãe?
- Quando você desligar a novela...
- Já está no fim.
E ficamos, eu e ela, comendo leite condensado de colherzinha e assistindo
"Corpo Sarado".
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