Uma fera está à solta no shopping, e ninguém consegue controlá-la...
MEUS OLHOS COLORIDOS

Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos...

(Não, não é assim...)

Naquele tempo, disse Jesus a Camila, Sua serva: levanta-te, anda e acompanha tua mãe ao shopping center...

(agora sim!)

... ao shopping center, dizia Eu. Pois ela anda perdida no vale da escuridão; e muitos são seus pecados, e inúmeros seus cheques sem fundo. E nem todo Prozac do mundo salvará sua alma. Vai, pois, e não a deixes errar sozinha por este antro de perdição. Pois teu pai trabalha a seara do mercado imobiliário e não pode andar sempre a vigiar a esposa.

- Camila! Olha só aquele vestido!
- Mãe, pelo amor de Deus, que coisa mais brega.
- Você não entende de moda... Essa cor é o hit do verão.
- Essa cor de merda?
- Olha a boca, Camila!
- Mãe, vamos embora.... faz duas horas que a gente está nesse shopping!
- Duas horas? 'Magina, que exagero!
- Meu pé está doendo...
- Pára de choramingar, Camila. Você precisa cuidar mais da aparência... Anda sempre vestida com essas roupas horríveis... essa calça de maria-mijona...
- Brigada, mãe.
- Você tem um corpo bonitinho... podia... OLHA SÓ ESSE COLAR!
- Mãe! Deve custar uma fábula!
- Fábula como, tolinha? É bijuteria.
- Mas é de griffe, mãe, deve ser caríssimo. Vamos embora. Olha... em quinze minutos, vence o cartão de estacionamento.... Imagine quanto a gente vai pagar.
- Camila, deixa de ser unha-de-fome. Parece seu pai.
- (...)!!
- E pára de abrir e fechar a boca desse jeito; parece peixe. Minha maquiagem está borrada?
- Bom... escorreu um pouco desse troço preto que você colocou no olho.
- Que horror! Vamos correndo pro banheiro. Também preciso fazer xixi.

No banheiro, várias mulheres aguardam pacientemente na fila. Mas Vera, a mãe, vai abrindo caminho:
- Dá licença, minha filha, dá licença... Eu tenho problema de bexiga... Fiquei assim desde que ela nasceu - e aponta Camila com o dedo - Parto normal. - Todos olham para a menina. Vera bate a porta do compartimento com um estrondo.
Camila abaixa a cabeça. "Meu Deus do céu, queria ser uma formiga, uma baratinha..."
Minutos depois, a mãe está em frente ao espelho:
- Camila, meu bem, quando você vai usar maquiagem?
- Nunca. Acho horrível.
A mãe se desinteressa. Olha nos espelho, faz caretas, tenta um sorriso promissor. Um ar de diva lânguida. Um toque extra de preto nos olhos. E mais batom na boca cor de sangue.
- Sabe uma coisa que me aborrece?
- Fala, mãe.
- A cor dos meus olhos.
- Que tem de errado com ela?
- Castanho sem graça... chato... sei lá, eu queria uma cor que chamasse mais atenção!
"Mais atenção que o casaco de oncinha?", pensa Camila.
- Por que a senhora não põe lente de contato colorida? - sugere uma mulher que também retoca o batom.
Vera suspende a performance diante do espelho:
- Lente de contato?
- É super-natural! - gorgeia a mulher - Minha nora colocou uma azul e ficou linda. Aqui mesmo no shopping tem uma ótica que vende.
- Mas serve em qualquer pessoa? - pergunta Vera, cada vez mais interessada.
- Qualquer pessoa.
Oh, não, pensa Camila. Oh, não. Aventura uma pergunta:
- E é cara?
- De jeito nenhum, e depois eles facilitam...
Vera já tomou uma decisão. Agarra a filha pelo braço:
- Vamos lá! Querida, em que andar fica essa loja?

Feito cachorrinho mal-humorado, Camila trota atrás da mãe no shopping. A mãe anda satisfeita, com a cabeça erguida, ajeitando os cachos de um loiro duvidoso. De vez em quando fala alguma coisa consigo mesma. Pára diante de uma vitrina, comenta em voz alta os produtos, os preços. Dá gritinhos e suspiros.
Camila não sabe se prefere a mãe assim, em pleno surto, ou no auge da depressão, jogada por horas a fio na cama, trancada no quarto escuro. O pai de Camila é muito ocupado. Nem sempre pode ir ao psiquiatra. Às vezes é ela quem vai ao consultório do doutor, pra conversar sobre o problema da mãe.
Ouve o homem falar, anota os nomes dos remédios, mas não tem coragem de fazer perguntas. É triste quando a mãe está trancada no quarto escuro; mas facilita um pouco as coisas. E quando está desse jeito - doutor, o que faço? Deixo sair pra fazer compras? Mas o senhor nem imagina! Ela volta do shopping carregada de pacotes, gasta os tubos, compra umas coisas absurdas, até pra mim. Acredita que outro dia me deu um casaco de peles? Um casaco de peles! Que porra eu vou fazer com isso? Meu pai ficou branco quando olhou a conta. E as lojas não aceitam devolução.
Já cancelamos todos os cartões de crédito, mas não adianta, porque ela sempre arranja um novo. São os bancos, as... como chama? financeiras, né? que ficam mandando essas merdas pra minha mãe. Então o jeito é eu ir junto com ela.
Hoje mesmo, doutor, era pra eu sair com meu namorado. Último dia de férias. Tive que cancelar, tá ligado? Ele está puto comigo. Qualquer dia desses perco o namorado por causa da minha mãe.
Isso é o que ela diria, se tivesse coragem. Mas Camila é muito tímida. E o doutor é ocupado, olha aí, está olhando o relógio. Camila ouve as instruções do médico e sai correndo do consultório. Precisa voltar logo pra casa, pra descobrir se o convênio cobre todos os exames que o doutor pediu.
- É aqui, Camila! Olha só! A ótica que a mulher falou!
- É, deve ser essa.
Vera vai entrando. Dá um largo sorriso para a balconista. Ao contrário da filha, nunca sofreu de timidez:
- Eu queria ver as lentes coloridas, por favor.
- Pois não, minha senhora. Um momento que vou chamar nosso especialista.
Alguns minutos de espera, que a mãe de Camila gasta examinando um display. A moça jovem e belíssima aparece em várias versões, com diversas cores de olho. Vera murmura alguma coisa para si mesma. Camila aguarda, nervosa.
- Bom dia. A senhora queria ver as lentes coloridas? - O especialista, em frente ao balcão, exibe um sorriso sedutor. Vera lhe lança um olhar de admiração. O especialista tem uma beleza convencional de manequim de vitrine. Sorriso com milhares de dentes. Terno de risquinhas impecável.
Que coisa uó, pensa Camila.
Que homem lindo, pensa a mãe.
Dá um risinho nervoso:
- Pois é... Queria ver alguns pares, se não fosse incômodo...
E mexe no fecho da bolsa, afetando timidez, levantando e abaixando o olhar, dando risinhos. Camilia sente náuseas.
- Para a senhora....
- Não me chame de senhora, por favor.
- ...ou sua irmã?
Não acredito, pensa Camila. Não acredito que ele usou esse golpe!
Seguem-se risinhos e explicações:
- ...ela só tem dezesseis anos...
- ...mas eu jurava que era sua irmã!
- ...parece mais velha porque é alta...
- Desculpe perguntar, mas você teve filhos muito nova, não foi?
Vera se derrete, lança olhares melados sobre o vendedor. Camila sabe que a mãe só olha daquele jeito para homens muito especiais. Por exemplo, o cirurgião plástico:
- Minha senhora, não vou corrigir nada em seu rosto. Só vou aperfeiçoar a obra-prima de Deus!
Ou o balconista da loja de griffe caríssima:
- Desculpe a franqueza, mas não é toda mulher que pode usar esse decote. A senhora devia aproveitar... já que pode.
Ou até o cabeleireiro, homossexual convicto:
- Você já não é de se jogar fora. Com esse vermelho no cabelo, então, vai fechar!
E pronto, ela se apaixona.
Os romances imaginários da mãe de Camila terminam sempre do mesmo jeito: cheque especial estourado.

A mãe de Camila sai da loja de olhos cor-de-mel.
- Achei melhor começar com uma lente mais discreta - diz à filha.
- Começar?
A navegação de Vera através do shopping é um problema. Ela pára em frente a todos os espelhos. Admira-se, dá risinhos soltos. Está corada, excitada.
- É claro que vou comprar outras lentes.
- Uma só não chega, mãe?
- De jeito nenhum, você não ouviu o que ele disse? É um acessório, querida. Tem que variar. Você sai todo dia de casa com a bolsa da mesma cor?
- Saio.
- Você não vale, tolinha. Sexta-feira volto aqui!

- Olhos cor-de-mel! O que você acha?
- Lindos, meu bem, mas... eu gostava da cor natural, mesmo.
- Não sai tanto assim do natural...
- Quanto custou?
- Puxa, mas você só pensa nisso? Só se fala em dinheiro nessa casa? Deus do céu, quanto egoísmo!
Lágrimas. Pedidos de desculpa interrompidos por exclamações de dor. Cadeira bruscamente arrastada. Porta batendo com força. E depois, o silêncio.
Camila e seu pai têm as mãos pousadas na mesa, as cabeças baixas. Não olham um pro outro. O pai enfim pergunta:
- Custou menos ou mais do que a maquiagem definitiva?
- Menos, pai. Custou menos.

Sexta-feira a mãe experimenta as lentes pretas.
- Sempre achei as morenas tão... misteriosas! - confidencia, curvado sobre o balcão, o especialista arrumadinho.
Na terça seguinte, as verdes:
- Fantástico! Parece que você nasceu com elas! Lembra aquela cantora... como é mesmo o nome dela?
- (Risinhos).
- Claro que você tem uma beleza toda própria...
Horrorizada, Camila vê o especialista acariciar as mãos da sua mãe. No táxi (bateu o carro no poste semana passada), Vera confidencia à filha:
- Domingo chegam as azuis.
- Você vai usar quatro cores diferentes?
- A coleção completa tem oito.
- Domingo a loja não abre!
- Claro que abre, Camilinha. Hoje em dia tudo abre no domingo. Senão, o que a gente vai fazer nessa cidade?
Domingo, Camila se recusa a cancelar o passeio com o namorado para acompanhar a mãe. Volta tarde e encontra o pai em pânico. Uma montanha de sacolas jogada no sofá.
- Viu no que deu?
- Mas você não ia com ela?
- Tive plantão no edifício da Tavares Bastos. Preciso vender muito, ainda estou pagando os juros do cartão que ela estourou...
Camila olha as sacolas. Está perplexa:
- Não sei o que aconteceu, pai. Das outras vezes ela só comprou a lente, mais nada...
- Pois dessa vez quase leva o shopping inteiro.
- Onde ela tá?
- Trancada no quarto, furiosa. Diz que o especialista da ótica estava de folga...

Segunda-feira às nove e meia, Camila está na porta do shopping com a mãe. Teve que matar aula no colégio.
A mãe pisca várias vezes, ajeita os óculos escuros, assoa-se. Usa uma calça bailarina e saltos quilométricos, suéter branca com várias bijuterias por cima:
- Que idade você me daria, hein, Camila?
- Ah, sei lá, mãe...
- Acha que preciso fazer plástica de novo?
- Não! - responde a menina, apavorada. - Você está ótima!
- Pelo menos uma lipo... Tenho tanto culote...
- Ô loco, mãe. Não viu aquela moça que foi fazer lipo e morreu?
Vera faz uma careta, enrola um anel de cabelo no dedo:
- Os jornais exageram muito.
Camila não responde. A primeira aula era Química. Ela está precisando de nota na matéria.
Finalmente o shopping abre. O especialista está no lugar de sempre, arrumando o balcão. Olha para a freguesa, risonho:
- Olhem só quem está aqui...
Vera faz beicinho:
- Estou muito triste com você, sabia? - diz, com vozinha de criança. (Camila quer morrer).
- Ora essa, por que, minha flor?
- Ontem estive aqui... e você não estava.
- Mas meu amor, era minha folga!
Camila encara o engomadinho com ar feroz. Ele lhe devolve seu melhor sorriso plastificado.
A mãe de Camila manda a filha tomar sorvete, e ela vai; mas vai preocupada. Tem medo que Vera faça mais um ataque ao shopping.
Quando volta, entretanto, Vera está no mesmo lugar. Mais encostada ao balcão, é verdade. O especialista também está bem encostado, e quando a menina entra na loja, tem a nítida impressão de que o sujeito faz um carinho no rosto de Vera.
- Mãe!
O especialista se afasta. Vera desencosta do balcão.
- Pronto, querida. Comprei dois pares da azul.
- Dois pares?
- É sempre bom ter um de reserva - sentencia o especialista, enquanto faz o pacote.
- Quinta-feira chega a violeta - anuncia Vera, cantando os pneus do carro no estacionamento do shopping.
- Mãe...
- Camila, o que você acha das mulheres que namoram homens mais novos?
- Acho uma baixaria.
- Que bobagem, tolinha! Hoje em dia todo mundo faz isso - diz a mãe de Camila, rindo.

Na quinta-feira ela diz a Camila que vai sozinha ao shopping.
- Já estou bem grandinha, não preciso de babá!
E sai, toda feliz. Camila está em pânico. O pai também:
- Quantas cores tem essa porcaria dessa coleção?
- Oito... e cada uma custa um absurdo.
- Pelo amor de Deus, Camila. Vai atrás. Encontre ela no shopping. Não deixe essa mulher fazer besteira.
- Vou tentar, papai. Vou tentar.

Camila pega um trânsito horrível na Nove de Julho. Quando chega ao shopping, sobe correndo as escadas rolantes.
E se chegar lá e não encontrar a mãe? Nem o especialista engomadinho?
Lá em cima, Vera está parada em frente ao lugar onde ficava a ótica. A loja fechou. "Um novo espaço para seu negócio" anuncia a faixa pendurada no tapume.
- Mãe...
A mãe de Camila emite um lamento. Um uivo de animal ferido:
- Fecharam a loja!
- Mas...
- Demitiram todo mundo!
- Você já tinha tantos pares de lente...
- LOGO HOJE QUE EU IA COLOCAR A VIOLETA!
- Compra em outro lugar....
- Ele me mostrou a violeta, Camila! Era linda! Linda!
Ela chora, geme como um cachorrinho, borra a maquiagem. Todos estão olhando. Morta de vergonha, Camila vai conduzindo a mãe até a entrada. Vera se curva feito uma velha, geme, soluça. Finalmente entra no táxi e, para alívio da filha, fica quieta, com os olhos parados. Mas só até o túnel da Nove de Julho:
- EU QUERO A MINHA LENTE VIOLETA!
- Calma, mãe, calma!
- Abre essa porta! Vou voltar lá! Ele tinha me prometido! Eu quero a lente! Vou fazer um escândalo!
Retorce-se no assento, tenta escapar do abraço da filha, uiva, geme. O motorista está assustado. Camila implora:
- Rápido, moço, por favor. Minha mãe está doente. Preciso levar ela pra casa.

Lexotan, Dormonid, Valium.
Vários dias trancada no quarto escuro. "Entrou no período depressivo", explica o psiquiatra. "É normal, na doença dela". Mas Camila sabe que a culpa é do maldito homem das lentes.
"Uma internação de alguns dias", recomenda o médico. "Depois ela volta para casa".
Camila está saindo de casa para a primeira visita à mãe na clínica, quando o telefone toca. "Camila, traz as lentes para mim", diz Vera.
- Todas elas, mãe?
- Todas.
Camila desliga o telefone apreensiva. O médico diz que Vera precisa sair da depressão. Qualquer coisa serve para animá-la. Então, leva as lentes.
Chega à clínica e encontra a mãe encostada aos travesseiros: camisola branca, cabelo desgrenhado, olhar vazio de tanto remédio. Mas reconhece a filha e pergunta:
- Trouxe as minhas lentes?
- Trouxe sim, mãe.
Ela balança a cabeça, aprovando, agradecendo - sabe-se lá! A enfermeira entra com um sorriso:
- Olha o café-com-leite da senhora! - Deposita a mesinha especial em frente a Vera e comenta em voz baixa para Camila: - Primeira vez que ela aceita comer alguma coisa à tarde. Acho que está animada com sua visita....
Sai e deixa as duas a sós. Vera estende a mão, e Camila lhe dá os pacotinhos com as lentes.
Um por um, Vera vai abrindo os recipientes. Uma por uma, a goles de café-com-leite escaldante, vai comendo as lentes. Verde. Cor-de-mel. Preta. E por última a azul, que parece triturar com raiva.
A filha assiste a tudo petrificada. Depois de comer a última lente, Vera se encosta nos travesseiros e suspira. Seus lábios se mexem, mas Camila não consegue entender o que diz. Aproxima-se da mãe, e ouve ela sussurrar:
- Só faltou a violeta...
Um segundo depois, já dorme. Camila sai do quarto na ponta dos pés, para não acordá-la.

E então o Senhor disse: Camila, cumpriste teu dever. Agora vai cuidar da tua vida, passear com o namorado, que hoje é domingo. Shopping? Nem pensar.
Pois contempla os lírios do campo, Camila. Eles não fiam nem tecem, mas nem Salomão, em toda sua glória... Enfim, você já entendeu. Vai, minha filha.

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