Eu
não consigo respirar. Juro por Deus. Não consigo. Estou com
falta de ar. O nariz tão entupido, que a respiração
é um sonho impossível. Vou parar de respirar e morrer sufocada.
É isso aí. Vou morrer aqui sozinha, nesse décimo-quinto
andar, mais abandonada que vira-lata.
Me arrasto até o banheiro e me vejo no espelho: virei monstro. Nariz
vermelho, olhos vermelhos, rosto inchado. Se ele me visse desse jeito, aí
sim é que saía correndo.
Vou tomar um banho. É bom. Relaxa. E além do mais desentope
o nariz. Que se dane se é o terceiro banho de hoje, todos com a mesma
finalidade: relaxar e desentupir o nariz. Oh Jesus. Deixa eu pegar o telefone
sem fio e levar pro banheiro. Porque a esperança é a última
que morre; e quem sabe, Deus é bom, ele pode interromper por um pequeno,
minúsculo instante a sua ocupada e significativa existência
e lembrar da minha miserável, ridícula, patética pessoa.
Mas duvido... duvido que isso aconteça... duvido muito... oh, meu
Deus, não é possível, comecei de novo.
Pronto. Peguei o sem fio. E já faz cinco minutos que não choro.
Estou fazendo progressos.
Ai, que água quente gostosa! Relaxante. Onde será que ele
está agora? Com a outra? Trabalhando? Trepando? Passeando? Enchendo
a cara? Será que ele não pensa nem um minuto, nem um minutinho
em mim, meu Deus?
Se pensa, deve achar que sou uma trouxa. Deve rir de mim. Que raiva.
O celular. Puta que pariu. O celular está tocando. Preciso ir atender.
Pronto, só me faltava essa. Escorreguei, caí. Acho que torci
o tornozelo. Que loucura, sair molhada do banheiro. E agora o celular parou
de tocar! Bosta, bosta, bosta! E se for ele?
Ah, não, graças a Deus. Era aquele chato do Rodrigo. É
o que eu digo, há males que vêm pra bem. Graças a Deus
torci o tornozelo e escapei de atender o celular na pressa, sem olhar quem
era. Imagina eu aqui, molhada, sem roupa, tremendo de frio, falando com
o mala-sem-alça. Com certeza ia me convidar praqueles programas chatos
dele, pizzaria na Vila Mariana, essas merdas: o tédio personificado.
E sempre que tento inventar alguma desculpa pra não sair com ele,
vêm umas coisas horríveis, tipo doença da avozinha,
resfriado, etc. O Rodrigo percebe que estou mentindo. E sempre consegue
me fazer sentir culpada.
Por que existe gente assim, hein? por quê? Por que todos homens do
mundo não podem ser iguaizinhos a ele? Aí eu escolhia um qualquer,
casava e vivia feliz para sempre.
Parece ingênuo? Pois nem precisava casar. Nem morar junto. Nem namorar!
Só de ver ele todo dia, ouvir a risada dele, as histórias
dele, eu já estava feliz. Mas eu não posso, né.
Nem isso eu posso. Nem iiiiiissssoooo!
Oh, Jesus. Que horas são? Não é possível. Devo
ter ficado meia hora aqui, pelada, molhada, sentada no chão aos prantos.
Eu realmente sou patética. Preciso parar com isso.
Vamos ser sinceros. Estou mal. Preciso de ajuda. Urgente.
Eu podia ligar pra Lucinha... Pra Carmem... Pra Marijô... Pro Celso...
Mas não adianta, nenhum deles vai me ajudar. Meus amigos se dividem
atualmente em duas classes: aqueles que não agüentam mais ouvir
falar do indivíduo, e aqueles que só me ouvem pra dar a maior
bronca.
Talvez eu precise de uma ajuda química. Não que goste dessas
coisas. Último recurso. Mas não posso passar a noite assim...
Deixa eu me enxugar, botar uma camisola. Onde enfiei aqueles tranqüilizantes
que o médico me deu?
Estão aqui. Pequeninos. Cor-de-rosa. Dois deles, e desabo na cama.
Amanhã estou nova.
Mas não sei se é boa idéia... Comprimidos pra dormir
viciam... Se eu começar a tomar esses troços cada vez que
ficar triste, viro uma junkie, porque ultimamente vivo triste!
Pensemos em outra solução. Hum... Aquela garrafa de vinho
que ganhei de aniversário. Coisa fina. O Celso foi quem me deu. Gracinha
de pessoa o Celso. E gosta de mim. Porque, sabe, aquele imbecil pode não
acreditar, mas eu tenho amigos que gostam de mim e me tratam bem, ao contrário
dele!
E sabe por quê? Porque sou uma pessoa legal. Cheia de qualidades.
Cadê o saca-rolha? Ah, pronto. Muitas qualidades. Sou bonita. Sou
inteligente. Sou talentosa. Tenho bom coração. E outra, sou
gostosa pra caramba, falou? Não preciso dele. Não preciso
daquele cretino pra nada!
Puta que o pariu, mas como é difícil abrir garrafa de vinho
sozinha!
Continuando meu raciocínio. Sou linda. Sou gostosa. Sou poderosa.
Todos os amigos dele já me cantaram, só queria ver a cara
do imbecil se soubesse disso! Rá, rá. Eu ia adorar. Pra ele
ver que espécie de amigos tem.
Hum, esse vinho está ótimo.
Garanto que agora todos vão cair matando. Pois sabe o que eu vou
fazer? Vou dar pra todos eles! Só pro imbecil ficar roxo de raiva!
Agora vou sentar confortavelmente nessas almofadas, aqui no chão...
ficar à-vontade... esquecer esse merda... Hum, de que safra é
esse vinho?
Dois mil e três. Foi quando a gente se conheceu.
Mais um copo. Eu mereço. Vinho é uma bebida leve, saudável,
não dá ressaca. Bem melhor que se encher de tranqüilizantes
perigosos.
Ele me ligava no meio da tarde. Vivia atrás de mim, não é
incrível pensar que houve uma época em que ele vivia atrás
de mim? Nossa, parece que foi há mil anos. E eu estava tão
apaixonada, que só de ouvir o celular tocando - botei um tom especial
pra ele, um tango - o coração já pulava no peito. Largava
tudo e saía correndo atrás dele. Uma vez dei um cano no meu
chefe, quase perdi o emprego.
As coisas que eu fiz por esse homem... As coisas...
Merda, o que é isso escorrendo pelo meu rosto? De novo? E se eu ficar
desidratada, hein? Pára com isso, criatura... pára, pô.
E aí ele me levava pra passear. Cada programa hilário que
a gente fazia! Uma vez me levou pra conhecer uma padaria, a melhor da cidade,
jurou... Outra vez fomos no cemitério, acho que nunca ninguém
malhou tanto num cemitério, tremendo desrespeito com os mortinhos...
E quando ele me pegou em casa, era feriado, tudo fechado, e aí rodou
rodou rodou, andou por São Paulo inteira, até chegar a um
lugar... onde era mesmo, meu Deus? ah, já sei... uma pizzaria na
Vila Mariana... nossa, eu estava tão feliz naquela noite... acho
que se morresse ali mesmo, nunca teria sido tão feliz.
E agora acabou tuuudoooo!
Oh, meu Deus. A garrafa já está quase pela metade. Foda-se.
Foda-se. Vou tomar tudo, e se bobear tem ainda o conhaque no armário
da cozinha. Não é grande coisa, mais serve...
Colocar um CD pra tocar. Isso mesmo. Droga, minha mão tá tremendo...
And if a double-decker bus
Crashes into us
To die by your side
Is such a heavenly way to die...
Oh, meu Deus. Como é que eu vou viver sem ele?
Como?
O que ele está fazendo a essa hora? Dormindo? Comendo? Vendo TV?
Trepando? Será que está trepando com a outra? Oh, Jesus.
Fico imaginando... Parece que vou ficar maluca.
A garrafa de vinho acabou.
And if a ten-ton truck
Kills the both of us
To die by your side
Well, the pleasure, the privilege is mine...
Oh, meu Deus. Eu não consigo respirar. Estou
com o nariz entupido. Acho que vou morrer sufocada. Vou falecer aqui,
nesse décimo-quinto andar. E aí a culpa vai ser dele, toda
dele, todinha dele!
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