Quando
eu tinha doze anos, minha mãe ainda era católica. Depois,
não sei bem porque, começou a freqüentar um centro espírita.
Minha irmã mais nova, Mariana, nem chegou a fazer primeira comunhão.
Desde criança, portanto, não entro numa igreja. Como é
escuro aqui dentro! Onde estão os confessionários, mesmo?
Ah, sim - ali, naquele canto. Por trás da treliça de madeira,
percebo a silhueta do padre. Desajeitado, me ajoelho - não é
assim que a gente faz? Fico em silêncio. O padre me encoraja:
- Então, meu filho?
- Padre, eu sou o Totó.
- Quem?
- Totó. Aristóteles Pereira. O detetive. Conversei com o senhor
por telefone.
O padre se sobressalta:
- Claro, claro. Desculpe, é que este é meu horário
de confissões.
- Posso voltar mais tarde.
- Não, eu falo com o senhor agora mesmo. De qualquer jeito - diz,
saindo de trás do confessionário - nunca vem ninguém
mesmo...
O padre deve ter uns cinqüenta anos. O cabelo é ralo e meio
branco, mas tem um aperto de mão vigoroso. Não usa batina...
- Pode sentar-se, Seu Totó. O senhor é católico?
- Mais ou menos - pigarreio, embaraçado.
- Afastou-se da igreja, não? - Suspira - Bem, vamos logo ao nosso
assunto. O investigador...
- Adolfo.
- Isso mesmo, Adolfo. Ele falou comigo há alguns dias, e me avisou
que eu receberia sua visita. O senhor é detetive particular, não
é?
- Isso mesmo.
- Tão novo.
Outra vez esse maldito comentário. Será que existe cirurgia
plástica para envelhecer?
- Antes de mais nada, Totó - posso chamá-lo assim? - gostaria
que entendesse que não estou violando o segredo da confissão.
- Ahn, sim.
- Em primeiro lugar, a pessoa não me contou essa história
em segredo de confissão. Ele estava muito doente e queria que eu
falasse com a polícia depois da sua morte. Disse que passou a vida
com aquilo na consciência.
- Entendo.
- Ele morreu há dois anos. Foi então que eu procurei o detetive
Adolfo. Contei a história do meu paroquiano, mas o detetive me disse
que não poderia começar uma investigação. Em
primeiro lugar, depois de quarenta e dois anos, o crime - se é que
houve crime - já estava prescrito; em segundo lugar, ele mesmo nunca
ouvira falar do assunto; e depois, a pista era muito fraca... Fiquei com
a impressão de que a polícia não tinha grande interesse
na história.
É compreensível - penso. Aída Marques desapareceu em
1959. Se é que morreu, seu corpo nunca foi encontrado. Quarenta anos
depois, o interesse no caso deve ser zero.
- Mas eu continuei preocupado. Francamente, o forte da nossa polícia
nunca foi a investigação, não é? (Me remexo
na cadeira, incomodado. Mas o padre Norberto não sabe que sou policial).
E os parentes dessa moça? Os amigos? Eles têm o direito de
saber. Fui atrás desse pessoal, até topar com seu cliente.
O padre se remexe na cadeira. Pigarreia.
- Ele me disse que, por enquanto, quer manter a sua identidade em sigilo,
inclusive do senhor.
- É verdade. Só nos falamos por telefone. Francamente, fiquei
até com receio de aceitar esse caso...
- Nesse ponto, eu posso tranqüilizá-lo. O seu cliente é
um homem de bem. Inclusive, foi a única pessoa que se importou com
a minha história. - Suspira e balança a cabeça - Pobre
dessa moça! Seu Totó, como a gente realmente não vale
nada. Estamos nesse mundo de passagem...
- O senhor acha mesmo que ela está morta?
O padre recolhe o sermão e responde:
- Se o que o meu paroquiano contou for verdade, não tenho como duvidar.
Ela está morta há quarenta e dois anos.
- Mas quem era este seu paroquiano?
- Uma pessoa muito humilde. O nome completo dele - não tenho mais
porque esconder - era Antônio Carlos Ferreira. Aposentado. Morava
com a filha e o genro.
- E antes de aposentar, o que ele fazia?
- Um pouco de tudo. Foi estivador, atendente num hospital, gari... Na época
que nos interessa, ele estava trabalhando num cemitério de automóveis,
em Olaria. Foi um emprego temporário, ficou ali só alguns
meses. O senhor se incomoda se eu fumar?
Detesto cigarro. Mas se é o padre quem está pedindo... Seja
o que Deus quiser.
- De forma alguma.
- O dono do estabelecimento, um tal Fortunato, era uma pessoa esquisita.
O Antônio Carlos percebeu que ele tinha ligações com
gente perigosa. Com o tempo, concluiu que era receptador de carros roubados.
"É claro que a criminalidade, naquela época, não
era nada do que a gente vê hoje em dia. Mesmo assim, este indivíduo
andava armado, tinha companhias esquisitas e o meu paroquiano morria de
medo dele.
- Entendo.
- Num dia qualquer de 1959 - ele achava que em outubro - um sujeito apareceu
com um carro novinho, de luxo, no cemitério. O Sr. Fortunato tinha
saído. O sujeito disse que aquele carro que precisava ir para o desmanche.
Recomendou também que o Antônio Carlos não mexesse no
veículo, e entregasse diretamente ao Fortunato.
- (...)
- Naturalmente, o Antônio Carlos ficou curioso. Veja bem, Totó,
este carro era um Buick novinho. Por que ia para o desmanche? O rapaz nunca
tinha visto de perto um carro tão bonito. De repente, lhe ocorreu
que não haveria mal nenhum em olhar o interior do Buick. Não
pretendia andar com ele, só examinar de perto.
- Sei.
- Pegou as chaves que o sujeito tinha lhe dado, abriu o carro e olhou. Aí,
quis dar uma olhadinha também no porta-malas - para ver se era grande.
Abriu o porta-malas e achou o cadáver da moça.
- Morta, mesmo?
- Sem dúvida alguma. Passado o primeiro susto, ele verificou se a
moça estava respirando, se o coração batia. Mas o cadáver
inclusive estava frio. E devia ser uma morte recente, porque nem rígida
a moça estava.
"Ele disse que ela estava usando uma roupa muito bonita, e que mais
tarde até estranhou uma pessoa de cor estar tão bem vestida..."
- Não reconheceu ela?
- Não. A Aída Marques não era uma celebridade. Eu pesquisei
nos jornais. Ela tinha uma carreira promissora pela frente. Estava começando
a fazer sucesso, gravara seu primeiro disco. Mas era conhecida apenas num
pequeno círculo. O senhor chegou a ouvir algum disco dela?
- Não - digo, me sentindo culpado. É verdade que já
coloquei Mariana à cata do único LP de Aída Marques.
Ela está vasculhando todos os sebos da cidade. Até agora não
teve sorte.
- Devia ouvir. Ela era de fato extraordinária. Cantava bossa-nova,
mas ao mesmo tempo já estava um pouco à frente desse movimento...
Tinha uma voz extraordinária. Ouvi muito aquele LP. Hoje em dia,
é peça de colecionador...
- O senhor gosta de música, padre?
Pego de surpresa, ele sorri, acanhado:
- Eu tocava violão no seminário... Ainda arranho alguma coisa.
Estou abrindo a porta
do apartamento quando ouço a Voz.
A Voz é macia como veludo. No começo, parece-se apenas com
qualquer outra bela voz feminina: um soprano cálido, veludoso,
explorando standards da Bossa Nova. Depois, nota-se algo mais: uma amargura
disfarçada, uma certa nota irônica, uma infinita melancolia...
É estranho. É diferente. Uma mulher tão bonita, tão
jovem - tinha apenas vinte e três anos quando desapareceu - cantando
músicas tão ensolaradas como se quisesse, na verdade, falar
de algo infinitamente triste...
- Esquisito, não é?
Mariana entrou na sala sem que eu percebesse.
- Achou o LP?
- Achei, até que enfim! Nunca remexi em tanta poeira em toda minha
vida, nem falei com tanto velhinho chato. E ainda tive que comprar o toca-discos.
Escuta aqui, Toninho, você acha que esse tal cliente misterioso
vai compensar mesmo? Sabe lá se o cara existe...
Como resposta, saco do bolso, dramaticamente, um extrato de banco. Mariana
olha e assobia.
- Cacete!
- Dá pra pagar três meses de aluguel. E é só
um adiantamento. Tem mais, se a gente descobrir o que aconteceu com a
Aída.
- Você conversou com o tal padre? Ele confirmou a história
do ferro velho, que o cliente contou?
- Conversei, ele me deu mais alguns detalhes. Que história macabra!
Depois de achar o cadáver da moça no porta-mala do Buick,
o sujeito foi falar com o dono do ferro-velho, um tal de Fortunato. O
bandido ameaçou ele de morte, se contasse a história...
- E aí? O que ele fez?
- Sumiu! Abandonou o emprego e nunca mais apareceu no ferro-velho. Uns
dias depois, reconheceu o retrato da moça no jornal. Mas nunca
teve coragem de contar a história pra ninguém.
- A não ser pro padre.
- Exato, só ao padre.
- E agora? O que a gente faz?
- Primeiro, janta. Estou morrendo de fome!
- Vamos no boteco ali na esquina.
- Mas você não cozinhou nada?
- Cozinhar? Pensa que eu sou o quê, sua escrava?
Dez minutos depois,
já estamos instalados no Cheiro de Amor - o boteco onde fazemos
quase todas as refeições. Isso quando Mariana, num arroubo
de iniciativa, não compra dois pacotinhos de Miojo.
Até eu tenho mais prendas domésticas do que minha irmã.
Mariana não sabe fritar um ovo, não ajuda na faxina e precisou
de uma longa doutrinação para fazer a sua própria
cama, todas as manhãs. Que situação! Desde que abrimos
a nossa agência de detetives, eu tenho que roubar tempo do meu serviço
no Distrito para atender os clientes da nossa agência. Chego em
casa exausto e ainda tenho trabalho doméstico para fazer. Tripla
jornada.
Mas, justiça seja feita, Mariana se encarrega de boa parte das
tarefas da agência. Atende o telefone, faz pesquisa... Enfim, trabalha
como nunca fez antes, em toda sua vida de folgada.
- Entreguei as fotos pro careca - diz ela, dando a primeira garfada no
bacalhau que almoçamos.
- O careca da loira, que você seguiu até o motel?
- Exatamente. O cara ficou passado, até chorou. Que merda de serviço,
hem, Totó?
- Mas no começo você gostava...
- É, no começo era mais divertido. Até aprendi a
fotografar... Mas com o tempo perde a graça.
- Também acho, Mariana. Mas fazer o quê? Noventa por cento
do trabalho de detetive é esse mesmo. Adultério. Eu te avisei,
quando a gente começou.
- Bom, pelo menos a tal Aída Marques não chifrou ninguém.
- Como você sabe?
- Eu li tudo o que saiu nos jornais da época. Pelo que dizem, ela
era solteira e não tinha namorado.
- Isso não quer dizer nada. Precisamos perguntar mais. Falar com
amigos, conhecidos...
- Justamente. Fiz uma lista de pessoas que conheceram bem a Aída
e ainda estão vivas. Assim a gente pode entrar em contato com elas.
Lanço um olhar de admiração para minha irmã:
- Sim senhora! Quem é esse pessoal?
- Estou com a lista aqui. - Tira um papel todo amassado do bolso do shorts:
- Ladislau Gomes. Empresário dela.
- Peraí. O Ladislau Gomes? Aquele que empresariou todo mundo?
- Isso mesmo. O cara é rodadíssimo, conhece meia Música
Popular Brasileira de uns quarenta anos para cá. E ainda trabalha!
Na época da Aída ele estava em começo de carreira.
Já consegui o telefone dele.
- Ótimo. Quem mais?
- Iranita Gomes. É irmã da Aída, só que casou
e mudou de nome. Não consegui o telefone dela, mas estou quase.
Mora no Morro Dona Marta.
"Depois tem a Roberta Alves, que também era cantora. Melhor
amiga dela, mas sumiu. Sei que ainda está viva, mas pode até
ter se mudado do Rio. Desapareceu.
"E tem também o Banana Geral.
- Banana Geral?
Mariana me faz sinal para esperar: está com a boca cheia. Depois
de engolir, desembucha:
- O pianista que tocava com ela. Dizem que era muito bom, mas já
se aposentou.
Então vamos
ver o que temos: um empresário ocupadíssimo, que hoje em
dia mal deve se lembrar de uma obscura cantora de há quase meio
século.
Uma irmã que mora na favela.
Uma ex-cantora que desapareceu.
E o Banana Geral.
Não é um começo muito promissor.
Em casa, faço anotações numa cadernetinha, enquanto
Mariana digere o bacalhau, assistindo mais um capítulo do seu seriado
americano favorito. Em vez de assistir essas besteiras, custava ela ler
um pouco? Tá certo, eu até dei uma força para ela
largar os estudos. Aliviei o seu lado com papai e mamãe. Mas será
que não estou levando minha irmã ao analfabetismo permanente?
Rumino mais um pouquinho, até que o telefone toca.
- Alô? Mãe?
De sua poltrona, Mariana faz gestos de "não estou".
- A Mariana? Saiu um pouquinho, mãe...Não, foi... ahn, foi
ao cinema com uma colega.... Não, mãe, ela não está
mais namorando o Fábio. ... É, eu também achava aquele
menino muito esquisito. ... Não, ela está trabalhando direitinho,
mãe. Pode ficar sossegada. ... O quê? De jeito nenhum, não
tem perigo dela levar tiro nesse trabalho! A senhora acha que eu vou botar
minha irmã numa situação perigosa?
Ouço as inquietações da minha mãe por meia
hora. Depois, ela começa a contar do novo bingo que foi aberto
em Campo Grande. Quando desligo, pergunto a Mariana:
- Por que você nunca atende o telefone, hem?
- Não tenho saco - resume ela. - Aliás, olha o que eu trouxe
para você do arquivo.
Exibe uma série de artigos de jornais xerocados.
- E consegui também uma foto, olha só.
- Mariana! Você roubou essa foto do arquivo!
Ela sacode os ombros:
- Você não vai querer que a gente pesquise o desaparecimento
da mulher sem ter uma foto dela, certo?
Pesquiso a foto de Aída - com toda certeza, material de fã-clube.
De fato, ela era bonita. Pele lustrosa, olhos imensos, boca provocante.
O cabelo cuidadosamente alisado, como seria de se esperar, naquela época.
Mas existe também, nesse rosto, um curioso ar de desafio... Observo:
- Na profissão dela, certamente ajudava ser bonita...
- Não sei não, Totó.
Olho para Mariana, confuso:
- Como assim? Você acha que a beleza dela a prejudicou?
Mariana tira o som da TV. Olha diretamente para mim:
- Pensa um pouco, Totó. Raciocina. Eu não sou tão
entendida em MPB, mas fiz umas pesquisas. Quantas cantoras negras você
acha que havia naquela época?
- Bom, tinha várias...
- Disfarçadas de brancas. Como a tal da Ângela Maria. Note
um pouco o tipo da Aída. Bem negra, não é? Não
ia ser fácil para ela disfarçar. E isso numa época
em que o auge era a Bossa Nova: uma música feita por mauricinhos
brancos e ricos. A Aída ia ter que pastar, para ser aceita nesse
mundo.
Abro a boca para responder. Fecho a boca sem falar. Olho para a minha
irmã com algo muito parecido com respeito.
Talvez a escola não esteja lhe fazendo tanta falta.
Assistentes. Secretárias.
Assessores. Nunca pensei que um só homem - nem mesmo um homem importante
como o empresário Ladislau Gomes - pudesse ter tanta gente trabalhando
para ele. Essa legião toda fica me passando de um lado para outro:
"Ligue mais tarde". "Ele está com uma cliente".
"O senhor é jornalista? Pode mandar um e-mail solicitando
entrevista?".
A gota d'água veio no final da tarde, quando a secretária
de Ladislau Gomes informou, friamente, que ele não estava aceitando
novos clientes. Principalmente na área de MPB.
O que eu deveria fazer, agora? Me disfarçar de cantor de pagode?
Mexi meus pauzinhos até conseguir o telefone da casa do empresário.
- Por favor, o senhor Ladislau Gomes.
- Não sei onde está esse cachorro. - e a mulher que tinha
atendido bateu o telefone na minha cara.
Resolvi ligar de novo.
Três, sete, nove, dez toques. Já estava quase desistindo,
quando uma voz de homem, ofegante, respondeu:
- Pois não.
- O senhor Ladislau Gomes.
- É ele mesmo.
- Senhor Ladislau, meu nome é Aristóteles Pereira. Gostaria
de falar com o senhor sobre uma antiga cliente sua. Aída Marques.
Ouço um longo silêncio do outro lado da linha.
- O senhor é jornalista?
- Não. Sou detetive. Tenho um cliente que está investigando
o paradeiro dela.
"Com quarenta anos de atraso" acrescento, mentalmente. Ladislau,
entretanto, não parece estranhar meu pedido.
- Quando o senhor quer falar comigo?
- Assim que possível.
- Agora está bom?
Meia-hora depois,
um rapaz de cabelo oxigenado, camisa havaiana, calça branca e tênis
da mesma cor, me recebe no duplex de Ladislau - um lugar imenso, onde
eu teria dificuldade de me orientar, se estivesse sozinho.
- Meu pai está esperando o senhor.
O duplex é bem decorado, mas não chega a ostentar a riqueza
de seu proprietário. Pelo caminho, vou encontrando marcas de destruição:
objetos quebrados, quadros fora de prumo, gavetas abertas e reviradas...
Será que o empresário foi assaltado? Quando o rapaz abre
a porta do escritório, encontro o caos.
Ladislau Gomes está sentado à frente de uma escrivaninha
cheia de papéis revirados e jogados ao acaso. O elegante bar à
sua direita teve os espelhos quebrados, e todas as garrafas também
foram detonadas. O tapete persa está virado do avesso. No meio
de tudo isto, o empresário fuma calmamente um charuto.
- A fumaça incomoda o senhor? - pergunta, depois de me cumprimentar.
O rapaz loiro vai embora, fechando silenciosamente a porta.
- De forma alguma.
- Eu lhe ofereceria uma bebida, mas como o senhor pode ver - faz um gesto
de lástima à sua direita - meu bar acaba de ser destruído.
- Meu olhar deve ser de interrogação, porque ele se explica
em seguida: - Minha mulher. A sexta. Tivemos uma discussão.
- Ahn.
- Nós brigamos muito, infelizmente. Mas ela sempre volta. No fundo,
é uma pessoa sensível, doce...
O empresário tem uma auréola roxa em torno do olho direito.
Pobre homem! Só espero que as outras cinco mulheres não
lhe tenham sido tão doces.
- Bom, senhor Ladislau...
- Só Ladislau, por favor.
- Ladislau, eu vim procurá-lo porque estou fazendo uma investigação
sobre Aída Marques. - Desfio a história do cliente misterioso,
sem falar do suposto cadáver da cantora. Não quero que ele
fique com idéias preconcebidas.
Ladislau ouve atentamente, sem perder uma palavra. Obviamente o assunto
lhe interessa.
- Então o senhor quer encontrar a Aída...
- O senhor se lembra bem dela?
Ele sorri:
- Como eu poderia esquecer? Foi minha primeira cliente. Encontrei ela
cantando em inferninhos - como a gente dizia naquela época. Fizemos
amizade imediatamente, e resolvi empresariá-la. Ela estava muito
mal assessorada, pobrezinha. Quando desapareceu, já cantava no
Beco das Garrafas, tinha shows importantes agendados... Tudo graças
a mim. Modéstia à parte.
Seus olhos se tornam sombrios:
- Que talento, seu Totó! Que talento! Em quarenta anos de trabalho,
poucas vezes encontrei um potencial como dessa garota. Veja, eu trabalhei
com gente muito boa. Ótimas cantoras. Mas a maioria delas tem o
quê? Uma bela voz, um bom gosto musical, um repertório razoável...
É preciso ter um algo mais, uma coisa própria, original,
única. E a Aída tinha isso. O senhor já ouviu o disco
dela?
- Ouvi, sim.
- Esse disco é uma raridade, não sei como o senhor conseguiu.
Seu Totó, durante anos esperei que um jornalista, um crítico
especializado, se interessasse pelo assunto e promovesse a redescoberta
da música de Aída. Assim, eu poderia recolocar o disco no
mercado. Ainda tenho as matrizes.
"Mas isso nunca aconteceu. Nunca apareceu jornalista nenhum."
- Que pena...
- Esse país é um horror. A Aída é um patrimônio
brasileiro. Sumiu do cenário muito jovem, mas isso é razão
para esquecê-la? Não é justo, Totó. Não
é justo.
No silêncio que se segue, resmungo alguma coisa, meio embaraçado.
Não é todo dia que vejo um homem tão grande e gordo
ficar com os olhos cheios de lágrimas. Disfarço com uma
pergunta:
- Você era muito amigo dela?
Ele faz um gesto de "espera" com a mão. Está tentando
se recompor. Abre uma gaveta da escrivaninha e tira uma garrafa miniatura
de uísque. Bebe metade de um gole só, e depois diz, mais
calmo:
- Quer um pouco?
- Não, obrigado.
- Respondendo à sua pergunta: éramos muito amigos. A Aída
confiava muito em mim. Não assinava nada sem que eu visse. Orientei
a sua contratação, na gravadora.
- Mas ela lhe fazia, por exemplo, confidências pessoais?
- Sim e não. A Aída era uma pessoa muito reservada. Mas
é claro que com o tempo fomos nos aproximando e ela comentava algumas
coisas. Eu sei, por exemplo, que teve uma infância difícil.
A família era muito pobre, morava no morro. O pai se mandou quando
ela era pequena, e a mãe teve que trabalhar em casas de família.
Como não tinha com quem deixar a menina, levava junto. A Aída
ficava quietinha, encolhida num canto, para que as patroas da mãe
não reclamassem. A sua única diversão era ouvir rádio.
"Aos dez anos, teve um golpe de sorte. A patroa da mãe se
encantou com ela, e como era uma mulher muito generosa, ofereceu-se para
pagar sua educação. A Aída foi mandada para um colégio
interno, junto com a própria filha da mulher.
"Claro que não foi uma experiência fácil. Ela
foi muito discriminada nesse lugar. Era a única negra, pobre...
Ganhou apelidos humilhantes, foi perseguida. A Aída falava dessa
época com amargura. Com o tempo, fechou-se em si mesma e passou
a dedicar-se exclusivamente aos estudos.
"Ela se lembrava que embora fosse sempre a melhor aluna da classe,
nunca teve nenhuma medalha, nenhum prêmio. As freiras preferiam
dar essas distinções às meninas de família
rica.
"Quando saiu do colégio, não foi bem recebida na família."
- Por quê?
- Por vários motivos. Em primeiro lugar, a educação
que ela recebera a afastava da mãe e dos irmãos. Eles a
achavam convencida, "metida a coisa". O segundo motivo é
mais complicado. Embora a Aída fosse de pele escura, a mãe
dela - que eu cheguei a conhecer - era mulata bem clara, podia passar
por branca. No segundo casamento, com um branco, ela teve filhas ainda
mais brancas. Se você quer saber a verdade, a família achava
a Aída negra demais.
- Meu Deus!
- Isso deixava a menina ofendidíssima. Até porque ela sempre
foi uma pessoa muito altiva. O negro naquela época procurava ser
bonzinho, dócil. A Aída nunca aceitou isso, nunca foi uma
"negra de alma branca". Se fosse mais subserviente, seria melhor
recebida em sua família. Como não era, resolveu sair de
lá e procurar trabalho.
"Com toda a educação que teve, não achou emprego
melhor do que copeira do Copacabana Palace. Mas deu sorte lá. Colocaram
ela para servir na boate. Foi aí que a Aída conheceu músicos,
cantores, gente do meio artístico... A partir daí, começou
a cantar em boates.
- O senhor chegou a ter algum relacionamento mais íntimo com ela?
Adoro essa técnica: disparar uma pergunta sem qualquer relação
com a conversa, pegando o interrogado de surpresa. Ladislau levanta as
sobrancelhas:
- Bom...
- Ladislau, faz quarenta e dois anos que a Aída sumiu. A única
chance de reconstituirmos o que aconteceu com ela é sabendo da
sua vida nos mínimos detalhes. Você tem que me contar.
- Calma - diz ele - Eu conto tudo, não se preocupe. Chegamos a
ter um relacionamento mais íntimo, sim. Mas não vejo como
isso possa ter importância. Durou uma só noite.
- Só uma noite?
- Exato. Foi no começo da nossa amizade. No dia seguinte, a Aída
me disse que era melhor continuarmos como antes. Ela não queria
misturar estações, como se diz hoje em dia. Eu respeitei
a vontade dela.
"Uma pena. Se tivéssemos ficados juntos, quem sabe ela não
estaria viva até hoje? Quem sabe não tivéssemos nos
casado? A Aída seria uma boa esposa para mim. Uma coisa lhe garanto,
Totó: ela nunca quebraria minha casa inteira, depois de uma briga.
Nem me daria um olho roxo. Já viu, aqui? Você acha que com
um pouco de gelo melhora? Tenho uma reunião importante amanhã."
- E aí? O
que o gordão falou?
Desabo na poltrona, cansado. Não acredito que Mariana ficou acordada
até essa hora, me esperando!
- Não dá para eu te contar amanhã? Estou exausto!
- Não. Quero saber agora.
Resumo a minha conversa com o empresário. Quando chego à
parte da aventura dos dois, Mariana faz um muxoxo:
- Uma mulher bonita como a Aída, com aquele bofe?
- Mas isso foi há quarenta anos, Mariana. Talvez ele fosse um rapaz
de boa aparência...
Ela faz um muxoxo de desprezo: para Mariana, a vida termina aos vinte.
Continuo falando. Quando termino, ela faz mais uma pergunta:
- E o racismo?
- Que racismo?
- Porra, Totó! Esqueceu o que a gente conversou antes de você
sair? Precisamos saber mais desse ângulo! Pode ser um motivo para
o assassinato da Aída.
- Ah, peraí, Mariana, você está viajando! - protesto.
- Estamos no Brasil, não nos Estados Unidos. Não vou dizer
que não haja racismo aqui, mas duvido que alguém matasse
uma cantora só por ser negra. Havia outros negros na vida artística,
na mesma época, e o sucesso deles não ofendia ninguém.
- Mas você perguntou isso para o gordão?
- Gordão, não, Ladislau Gomes. E você devia ter mais
respeito, ele tem idade para ser seu avô. Eu perguntei sim. E fora
aquele lance da família dela - que, aliás, também
tem sangue negro! - não acho que a Aída tenha sido alvo
de racismo. É verdade que houve uma casa noturna onde o proprietário
achou que ela era "preta demais" para se apresentar. "Se
fosse um pouco mais clarinha..."
- Ah! Tá vendo?
- Mas a história morreu ali. A Aída foi se apresentar em
outras boates, fez sucesso, e mais tarde esse mesmo sujeito voltou atrás
e fez um convite. Mas ela não aceitou, era orgulhosa.
- ....
- Mariana, isso não é motivo suficiente para assassinar
ninguém.
- Tenho outra idéia. E se esse empresário aí era
apaixonado por ela, depois que os dois ficaram? E se ela arranjou outro
namorado, e ele estava com ciúmes?
- Ele disse que ela não estava namorando ninguém, quando
sumiu.
- E você acreditou?
- Bom... para falar a verdade, ele hesitou um pouco antes de responder.
Temos que investigar melhor esse assunto.
- A gente teria que encontrar amigos dela. Gente que conhecesse a figura
melhor. Bom, vou continuar procurando a Roberta Alves. O endereço
da irmã eu já estou quase descobrindo. Posso ir conversar
com ela, se você quiser.
- E o Banana Geral?
- Calma! Sou só uma. Escuta, o que o Ladislau diz sobre o desaparecimento
da Aída?
- A mesma coisa que os jornais. No dia em que iam começar a gravar
o segundo disco dela, ela não compareceu ao estúdio. Foram
procurar no seu apartamento, ela também não estava lá.
E a Aída era pontualíssima, muito responsável...
Na hora o Ladislau desconfiou que alguma coisa tinha acontecido.
"Na noite anterior, os dois tinham ido comemorar o novo disco num
bar em Copacabana. Era a folga dela, na boate onde se apresentava. O Ladislau
diz que lembra, inclusive, que alguém reconheceu a Aída
e pediu seu autógrafo. Ela ficou toda contente."
- Coitada - comenta Mariana. - Sumiu justamente quando ia arrebentar a
boca do balão...
- De fato, foi muito azar. Outro pormenor que o Ladislau lembra daquela
noite é que a Aída foi telefonar e demorou bastante tempo
para voltar à mesa.
- Hum.
- Ele deixou ela em casa à meia-noite. O porteiro depois disse
à polícia que a moça subiu normalmente para o apartamento,
e que depois não a viu mais. O porteiro do dia não se lembrava
de ter visto ela sair, na manhã seguinte. Mas o apartamento estava
aberto e ela tinha sumido. Não levou nenhuma roupa, mala, nada.
- Eu já li tudo isso, Totó. A gente não pode entrevistar
nenhuma dessas pessoas. Estão todas mortas.
- Tem certeza?
- Eu pesquisei.
- Que bosta. Vamos ter que nos contentar com esses quatro que você
descobriu. A polícia investigou durante muito tempo o desaparecimento
da Aída?
- Hum... Não achei que foi muito tempo, não. Só três
meses, e o caso já tinha sumido dos jornais. E sabe o que eu também
achei estranho, Totó? Nunca fizeram nenhuma matéria assim
- como se diz? - retrospectiva dela. Sabe? Os jornalistas adoram essas
coisas. "O mistério da cantora desaparecida completa quarenta
anos". Já li um monte de matérias assim. Por que nunca
fizeram nenhuma com a Aída?
O expediente no Distrito,
hoje, está sendo pedreira. Meu chefe, o delegado Viegas, foi fazer
uma diligência. Na sua ausência, tenho que lidar com um pepino:
o doutor Fausto, do 14o DP, quer de qualquer jeito transferir alguns presos
para a nossa carceragem.
- Não temos condição, doutor Fausto - explico, pacientemente,
pela terceira vez. - Eu sei que a sua carceragem está superlotada,
mas nós temos o mesmo problema. Inclusive, mês passado tivemos
uma rebelião aqui.
- Mas eu tenho autorização da Secretaria de Segurança
- replica o homem.
- Por escrito?
O homem abre a boca para falar, quando o telefone toca. O escrivão
atende e passa para mim:
- É sua irmã.
- Um momentinho só, Doutor Fausto. - Viro-me para o lado: não
vá o homem perceber que estou dando expediente duplo, como detetive
particular e policial! - Mariana - cochicho - já te disse pra só
ligar aqui em caso de urgência!
- Mas isso é uma urgência - replica minha irmã. -
Localizei a Roberta Alves. A melhor amiga da Aída.
Roberta Alves mora
em Vassouras, e eu quero falar com ela pessoalmente. No dia seguinte,
sou obrigado a utilizar um expediente que não me agrada muito:
faltar ao Distrito, dizendo que estou gripado. Fazer o quê?
- Ela casou com um homem rico - me explica Mariana, antes que eu saia
do Rio. - Um fazendeiro. Por isso interrompeu a carreira.
- E a irmã da Aída, você localizou?
- Também. Não se preocupe, que enquanto você vai a
Vassouras eu vou falar com a tal Iranita.
- Grande, Mariana.
Ao chegar em Vassouras, entretanto, uma surpresa me aguarda. O endereço
que Mariana me deu não me leva, como eu esperava, a uma bela casa
no melhor bairro da cidade. Muito pelo contrário: a Rua Santa Teresa
é um beco escuro, onde se amontoam casas velhas e humildes. A maior
parte delas está abaixo do nível da rua, e para chegar à
porta é preciso descer uma escada.
Número 21... deve ser aqui mesmo. Cadê a campainha? Nem sinal.
Bato palmas.
Nada.
Bato mais um pouco.
Ninguém atende.
Estranho, porque sem dúvida há alguém em casa. A
televisão está ligada a todo volume. Vai ver é por
isso que não me ouvem. Decidido, abro o portãozinho e desço
as escadas. Bato à porta.
Dessa vez, a televisão se cala, e ouço o barulho de móveis
se arrastando. Finalmente, alguém abre a porta. Levo um susto.
É ela. Roberta Alves.
Claro, ninguém passa impune por quarenta e dois anos. Mas essa
mulher consegue me assustar. Mariana me mostrou uma foto da cantora aos
vinte e poucos anos, na Revista do Rádio - linda, mimosa, meio
alourada. A velha que está na minha frente é uma das mulheres
mais feias que eu já encontrei. Os olhos azuis meio remelentos,
o nariz vermelho de quem abusa das bebidas, as pernas cheias de varizes
saindo de um vestido preto informe... Sim, porque além de tudo
Roberta Alves ficou gorda. Muito gorda.
- O que o senhor deseja? - diz ela, asperamente. Seu hálito cheira
a pinga. Parece pronta para me expulsar dali. Quando explico meu objetivo,
entretanto, fica menos agressiva. No final, acaba me convidando: - Entre,
por favor. Podemos conversar aqui dentro.
A casa é um pardieiro. Roupas sujas se espalham pela sala. Os sofás
têm rasgões enormes vazando enchimento. A fiação
elétrica está à mostra. Em cima da mesa, uma garrafa
de pinga está aberta e já começada. A televisão
sem som mostra imagens de um programa de auditório. Roberta Alves
aponta para a tela:
- Gosto de assistir show de calouros. Foi assim que eu e a Aída
começamos. No rádio, é claro.
- O Ladislau Gomes me disse que ela começou cantando em boates...
- Também. Você conversou com o Ladislau?
- Conversei, sim.
- Ele continua se achando muito importante? - Sem esperar resposta, ela
vai pegando a garrafa e enchendo um copinho. São três horas
da tarde.
- Bom... - respondo, sem graça.
- Com certeza continua. Ficou famoso, o desgraçado. Cansei de ver
ele na televisão. Todos esses cabeludos, esses... esses farsantes,
sem voz, foi ele quem lançou.
Fico calado.
- Você sabia que, depois da morte da Aída, eu pedi para ele
me empresariar? E ele não quis - engole a pinga de uma vez só.
- Por que não?
- Inventou uma desculpa furada, disse que estava sem tempo. Mas a verdade
é que ele não me achava boa cantora. O desplante do coisinha!
E isso numa época em que ele não tinha nada, andava de ônibus,
tinha perdido a única cliente... O Ladislau sempre foi metido a
besta.
Tento mudar o assunto:
- Ouvi dizer que a senhora foi muito amiga da Aída.
- Fui - responde ela, secamente.
- E a senhora se lembra do desaparecimento dela?
- Claro que eu me lembro, rapaz. Ainda não estou ficando caduca.
Só bêbada - diz ela. Pega o copinho de novo e enche de pinga.
Dessa vez, entretanto, bebe lentamente, aos golinhos. - A última
vez que eu vi Aída foi num show do Copacabana Palace. Um desses
espetáculos beneficentes, sabe? Houve apresentações
de vários artistas. A Aída estava linda, num vestido branco,
bordado de canutilhos. Cantou umas músicas novas, do repertório
do segundo disco - que ela nunca chegou a gravar, aliás.
- Sei.
- Depois do show, quando a gente estava no camarim, convidei-a para sair
com uns amigos. Ela deu uma desculpa qualquer, falou que estava cansada.
A Aída tinha um jeito assim de recusar as coisas muito educado,
mas ao mesmo tempo distante. - Seus olhos começam a vagar - Parecia
uma princesa. Não, verdade, não parecia uma pessoa de cor.
Às vezes eu tinha a impressão de que ela não sabia
que era preta. Era muito educada, mas não era humilde. Não
baixava a cabeça.
A cor de Aída. Interessante, talvez Mariana tenha razão.
Talvez haja alguma coisa aí. Por que todo mundo toca nesse assunto?
- Quando conheci ela, nós nos revezávamos, cantando na mesma
boate.
- Ah, é?
- E ela me massacrava.
- Cantava melhor que a senhora?
- Não tenha a menor dúvida. A Aída me humilhava.
Eu cantava direitinho, era afinada, não dava vexame. Mas ela tinha
alguma coisa diferente. Dava arrepios. - Beberica a pinga - No fundo,
a Aída é responsável por eu estar aqui, nessa merda.
- Como assim?
- Antes de conhecer a Aída, eu acreditava que ia ser uma grande
cantora, fazer sucesso. Cantava entoadinho, fazia sucesso nas festas,
os namorados me elogiavam, mamãe e papai me achavam o máximo.
Fui para o rádio, me apresentei em programas de calouros. Quando
conheci Aída, já cantava profissionalmente há dois
anos.
"Foi então que entendi que eu não era cantora. Cantora
era ela.
"Fui perdendo o entusiasmo. Já não me achava aquela
maravilha toda. E a morte dela só fez piorar as coisas. A gente
cantou junto, se revezando, em muitos lugares. Depois que a Aída
morreu, eu sentia que as pessoas perderam o interesse por mim.
- Deve ter sido duro para a senhora.
- Quando o Ladislau se recusou a me ajudar, foi o fim. Eu já tinha
uma proposta de casamento do meu falecido marido, que era um homem muito
rico. Casei, vim morar aqui... - Percebendo meu olhar interrogativo, completa:
- Quando ele morreu, eu ainda tinha bastante dinheiro. E era bonita, pode
acreditar.
- O que aconteceu?
- Um outro homem... Não quero falar disso, seu Totó. O senhor
não devia ter vindo conversar comigo. É uma perda de tempo.
Eu não tenho a mínima idéia do que aconteceu com
a Aída.
- Ela tinha algum motivo para sumir assim, do dia para a noite?
- Logo quando começava a fazer sucesso? Duvido. A Aída era
ambiciosa.
- Então alguém sumiu com ela.
- É possível - diz a velha, dando de ombros.
- A senhora conhecia algum inimigo dela?
- Inimigo? Não, não acredito que ela tivesse inimigos. Ela
não fazia mal a ninguém.
- E namorado? Conheceu algum namorado dela?
Roberta sorri. Quase tenho um vislumbre da moça bonita que foi.
- Ela tinha um namorado, sim.
- Quem?
- Não sei. Nos últimos meses antes dela sumir, eu vinha
notando que ela andava mais alegre, mais animada... Sabe aquele brilho
nos olhos, aquela coisa de mulher apaixonada? Ela não comentava
nada, mas eu percebi que alguma coisa estava acontecendo. Na noite do
espetáculo beneficente, acabei perguntando para ela.
- E ela?
- Ficou meio sem graça, mas confessou que estava namorando alguém.
Não quis dizer o nome, "por enquanto". Parece que era
um caso secreto...
- Um homem casado?
- Não. Sei disso porque ela me contou que "era um homem maravilhoso,
e que se os dois casassem, não se importaria que ela continuasse
cantando". Naquela época existia muito preconceito contra
moças na carreira artística. Meu marido mesmo exigiu eu
parasse de cantar.
"Agora, o senhor vê, naquela época não existia
divórcio. Se a Aída falou em casar, era porque o rapaz era
solteiro, descompromissado. Dois anos mais velho que ela. E não
quis dar mais detalhes."
- Nada?
- Nada. Mas me deu a impressão... Não sei nem se vale a
pena falar.
- Qualquer impressão sua é importante, dona Roberta. A senhora
conhecia bem a Aída.
- Me deu a impressão de que ele era rico.
- Mas por que ela
não contou essa história para a polícia?
- Contou, Mariana, contou. Só que ninguém deu importância.
Ninguém foi atrás do tal namorado.
- O que é que eu te disse? Eles mal investigaram o crime. Polícia
é tudo corrupta...
- Muito obrigado.
-... e incompetente, além de tudo. Tem alguma coisa podre nessa
história. Você devia conversar com policiais que trabalharam
nessa época.
- Vou voltar ao arquivo do jornal. Quem sabe eu descubro mais alguém
que trabalhou nessa investigação?
"E a Iranita? Como é que foi a conversa com ela? Contou alguma
coisa?
- Ela está gagá - diz a minha irmã.
- Tá brincando!
- Completamente gagá. Não reconhece nem os filhos. Pensou
que eu fosse a Aída, imagine só.
- Mas não deu para tirar nada dela?
- Olha, Totó, não sei se isso vale alguma coisa. Mas uma
hora, quando estava pensando que eu era a irmã dela, passou a mão
no meu queixo, começou a rir e disse: "Fugiu com o namorado,
hem, sua danada?"
Claro, a mulher está
caduca. Mas Roberta Alves já tinha me falado desse namorado. E
o Ladislau Gomes no mínimo hesitou, quando eu perguntei. Deve haver
alguma coisa aí... Preciso voltar a falar com Ladislau.
Mas, antes, vamos rever os jornais.
Suspiro. Por mais interessante que seja o caso, dá um certo desânimo
folhear esses jornais. O desaparecimento da Aída decididamente
não foi o escândalo do ano. Outros crimes mais interessantes
- alguns até envolvendo gente rica - estavam acontecendo na mesma
época. Crime de verdade, com cadáveres.
Pouca gente deve ter visto aquele corpo no porta-malas do Buick. Mas como
Aída foi parar lá? Fugiu com o namorado, como sugeriu Iranita?
Mas nesse caso, certamente foi ele quem a matou. Ou não?
E esse cliente misterioso? Tem muito dinheiro, ao que parece, para oferecer
um adiantamento tão bom. O namorado de Aída, segundo Roberta
Alves, era rico...
Quantas perguntas sem resposta! Suspiro e volto a pegar os grossos volumes
de jornais encadernados do arquivo. Só então vejo o homem
que está na minha frente. Deve ter uns sessenta anos, usa um terno
surrado, e está folheando os arquivos sem pressa. Levanta a cabeça
para falar comigo:
- Quanta poeira, hem?
- Sorte que eu não sou alérgico.
- Pois é... Deviam microfilmar essa joça. Mas aí
ficaria mais difícil eu olhar os jornais. Aquele troço cansa
a vista.
- O senhor está fazendo alguma pesquisa?
- Não. Pra falar a verdade, estou matando o tempo. Sou aposentado.
A gente não tem nada para fazer, fica em casa atrapalhando a mulher...
Então de vez em quando eu venho aqui. Matar as saudades.
Balanço a cabeça educadamente, e volto aos meus jornais.
Mas ele quer continuar a conversa:
- Você está vendo o caso da Aída Marques? Eu também
pesquisei isso, nos meus tempos de repórter.
Pronto, já conseguiu ganhar minha atenção:
- O senhor é jornalista?
Ele me estende a mão, rindo:
- Não se preocupe, não é contagioso... E depois estou
aposentado. Muito prazer, Luís Garcia.
- Aristóteles Pereira, estudante de Direito (não chega a
ser mentira. Estou fazendo pós-graduação). Mas pode
me chamar de Totó. O senhor fez uma matéria sobre esse assunto?
- Não na época do desaparecimento - explica ele. - Tentei
fazer uma pauta retrospectiva, em 1969. Quando se completaram dez anos
da morte da Aída.
- O senhor acha que ela está morta?
- Não tenho a menor dúvida.
- Por que?
- Vários detalhes. Em primeiro lugar, ela dava muita importância
à carreira. Impossível que tenha sumido assim, do dia pra
noite, de livre e espontânea vontade. E depois, houve uma história
que nunca veio à tona, mas que eu desencavei fazendo essa matéria...
- Qual?
- Bom, em 1962, por aí, a polícia prendeu um sujeito por
suspeita de homicídio. Nada a ver com o caso da Aída. Ele
tinha matado um cúmplice por causa da divisão de um roubo
que eles tinham feito.
- Roubo do quê?
- De automóveis. Esse sujeito tinha um ferro-velho, um negócio
muito suspeito...
Sinto todos os cabelos do meu corpo se arrepiarem. Sem reparar no meu
nervosismo, Luís Garcia continua:
- Quando levaram ele para a delegacia, o cara nem sabia porque estava
sendo preso. Mas sabe como é polícia: já começaram
descendo o cacete. Depois de uns tapas, o sujeito disse que "se era
por causa da neguinha, ele não tinha matado, só desovado
o presunto..."
- Como é que é?
- Pois é, os policiais fizeram a mesma pergunta. Então ele
disse que em 59, na época do crime, ele ajudou a desaparecer com
o cadáver da Aída Marques. Jogou no Rio da Guarda. Um bandido
que ele conhecia lhe pagou um bom dinheiro para isso.
- Mas que bandido? Quem era esse cara?
- Ninguém sabe, porque não houve outro interrogatório.
- O aposentado faz uma pausa dramática: - Quer saber? No dia seguinte,
o sujeito do ferro-velho foi assassinado na cela.
- Que coisa!
- Claro, era um bandido, alguém podia ter se vingado dele lá
dentro. Mesmo assim, o policial que tinha interrogado ele - a minha fonte
- ficou muito desconfiado, queria prosseguir a investigação...
Mandaram ele cuidar do seu serviço. E ficou por isso mesmo.
- Puxa, seu Luís. Que história.
- Calma aí, que você ainda não sabe de nada. Escrevi
a minha matéria toda, amarrei minha historinha, inclusive consegui
a informação de que ela estava namorando alguém.
Poderia ter sido um crime passional. Meu editor ficou entusiasmado. Mas
a matéria nunca chegou a ser publicada.
- Por que?
- Não sei, Totó. No dia seguinte, quando abri o jornal,
cadê ela? Fui pedir explicações ao editor - já
faleceu, coitado. Ele ficou muito sem graça: "Olha, Luís,
eu poderia te dar uma desculpa qualquer, dizer que faltou espaço
etc. Mas não vou mentir para você. A direção
do jornal não gostou da sua matéria. Quando subiu para o
terceiro andar, eles vetaram. E não deram nenhuma explicação."
Frustrado, dá um tapa na mesa.
- Até hoje eu fico puto, quando lembro dessa história!
- Mas quem vetou?
- Não sei, meu filho. O esquema de poder em grandes jornais é
muito complicado... Eles sempre têm rabo preso com alguém.
Aquela matéria feriu os interesses de alguém muito poderoso,
com o qual eles tinham ligação. Isso é o máximo
que eu posso adivinhar. Muita gente caberia nessa descrição.
"Eu saí dessa matéria com duas certezas. Primeiro,
como eu já te disse, que essa moça está morta. Segundo,
que faltou uma coisa no meu trabalho".
- Faltou o quê?
- Falar com o Banana Geral.
- O pianista dela?
- Justamente. Esse sujeito pode ser a chave do caso. Se eu tivesse conseguido
falar com ele, amarrava melhor a minha história. Talvez até
conseguisse publicar, em algum outro jornal... Era uma grande matéria.
- Mas por que o Banana Geral é tão importante?
- Vou te explicar porque. Eu entrevistei uma das irmãs da Aída
Marques, que era mais próxima dela - uma tal de Iranita. Essa moça
me garantiu que a Aída estava namorando alguém. Outras pessoas
já tinham me dito isso, mas ninguém me dava o nome do namorado.
Mas Iranita, mesmo sem saber quem era o rapaz, sabia que o Banana Geral
tinha apresentado os dois. E eu tenho certeza - esmurra a mesa de novo
- que se esse sujeito não tivesse excursionando na Europa, naquela
época, poderia me solucionar o caso. Ouça o meu palpite,
Totó. Quem descobrir o nome desse namorado, vai chegar ao assassino.
- Já conseguiu
achar o Banana Geral?
Entro em casa feito um furacão. Mariana me olha surpresa:
- Calma! Já achei o endereço. Ele está internado
numa casa de velhinhos. Não tem família, coitado...
- Será um lugar muito sinistro?
- Não. Quem me deu essa informação foi uma ex-dona
de boate, que era amiga dele. Parece que é um lugar decente, ela
vai sempre visitar o velhote. O Banana Geral tem grana, sabia? Ele vem
de uma família rica. Parece que cansou de morar sozinho, por isso
se mudou para esse lugar. Mas por que essa pressa toda de encontrar o
homem?
Conto a conversa que tive com Luís Garcia. Mariana assobia, entusiasmada.
- Vou ligar já pra ele. Mas tem uma condição.
- Qual?
- Quero ir junto. Até agora, só consegui entrevistar uma
velhinha gagá.
- A propósito...
- Não se preocupe. A amiga dele diz que o Banana Geral está
lúcido. E ele é bem espertinho, tá ligado?
- Totó, sabe
uma coisa que me preocupa?
Estamos no ônibus, a caminho da casa de repouso. (Mais uma vez,
meu carro está na oficina).
- O quê?
- Esse nosso cliente.
- Eu também acho muito esquisito, trabalhar para alguém
que não conheço...
- Sabe que eu fico pensando? Vai ver, ele é quem matou a Aída.
E contratou a gente só para saber se alguém desconfia...
- Depois de quarenta anos? Me poupe, Mariana. - digo eu, fingindo um desprezo
que estou longe de sentir. A hipótese pode ter um fundo de verdade...
Por que não? Quem sabe estejamos trabalhando para o próprio
criminoso. Quem mais se interessaria pela história de uma cantora
desaparecida na metade do século passado?
Chegamos à casa de repouso.
O lugar é bonito, todo ajardinado. Na piscina, um grupo de velhinhas
de touca faz hidroginástica. Casais idosos, de braço dado,
passeiam pelas aléias do jardim.
- Deve ser um lugar caro - cochicha Mariana, no meu ouvido.
- Seu Elias está esperando vocês na sala de estar - diz a
moça que nos atende. Aqui, obviamente, ele não é
o Banana Geral.
Sentado num sofá vermelho, um velhinho nos espera, muito empertigado,
de terno e gravata. A sala de estar é clara, decorada em cores
alegres. Num canto, fica o piano.
Banana Geral se ergue do sofá com facilidade:
- Muito prazer. Aristóteles Ferreira, não é?
- Isso mesmo. Essa aqui é a Mariana, que trabalha comigo...
- É um prazer conhecer. Não é todo dia que recebo
a visita de moças tão bonitas... - diz ele, com uma cortesia
antiquada, bem "velho Rio". Olho para a minha irmã: e
não é que ela está sorrindo? - Sentem-se, por favor.
Vou pedir à moça um cafezinho.
- Não é preciso.
- Bonito o lugar, não? - diz ele, indicando a sala com um gesto.
- Quando eu digo que estou numa casa de repouso, meus amigos imaginam
que é um horror. Mas estou feliz aqui. Tenho amigos, toco piano
todas as noites, e freqüentemente saímos. Vamos ao cinema,
à Colombo... Não tenho queixas.
- Que bom, seu Elias.
- Banana Geral - corrige ele. - Eu prefiro que me chamem assim... Essas
mocinhas aí da recepção é que não aprendem.
Olha para nós. Há um longo silêncio.
- Vocês vieram falar sobre a Aída, não é?
- Viemos.
- Você é da polícia?
Penso na conversa que tivemos no caminho para cá. Um cliente misterioso,
do qual não sabemos nem o nome! Se o Banana Geral souber disso,
vai ficar desconfiado. E com razão. É preferível
mentir. Polícia, pelo menos, todo mundo conhece.
- Somos sim. O caso pode ser reaberto.
Espero que ele diga mais alguma coisa. Nada.
- O senhor a conheceu bem, não foi?
- Senhor não, por favor: você. Nos três anos de carreira
da Aída, eu fui o único pianista que tocou com ela. Recusei
muitos convites para andar atrás dela. A Aída sempre conseguia
me encaixar nas boates, porque modéstia à parte eu era bom.
- Nós sabemos disso, seu Banana - Mariana abafa uma risada. - Quer
dizer, Banana. Você deve ter tido muita amizade com ela...
- Eu era apaixonado pela Aída - diz ele, muito tranqüilo.
- Cansei de pedir ela em casamento. Várias vezes. Ela sempre dizia
que não queria estragar nossa amizade. Acho que realmente me via
como irmão... Nunca aconteceu nada entre nós.
- Mas o senhor gostava dela.
- Por que você acha que nunca me casei? Depois que a Aída
morreu, pensei até em largar a carreira. Fiquei dois anos sem tocar,
fui trabalhar no negócio da família. Mas depois pensei:
se ela estivesse viva, não gostaria de me ver aqui em Campos, comprando
e vendendo boi. Larguei tudo e voltei pro Rio.
Inegavelmente, estou comovido. Coitado do velhinho... Mas Mariana é
mais prática do que eu:
- Desculpa, Banana, mas como você sabe que ela morreu?
- Como?
- Você disse, "depois que ela morreu". Como sabe que ela
está morta?
Ele suspira. Uma sombra cai sobre o seu rosto.
- É uma longa história. - Ajeita-se melhor na cadeira -
Sabe, meu bem, de certa forma fui um pouco responsável pela morte
da Aída.
- O senhor sabe como ela morreu? - pergunto, quase perdendo o fôlego.
Fuçamos em todos os lugares, e a resposta estava aqui o tempo todo,
com esse velhinho! Será o possível?
- Eu sempre desconfiei de como ela tinha morrido. De uns dez anos para
cá, eu sei.
- Mas se o senhor desconfiava, porque não foi à polícia?
- Não tinha provas, e depois... É uma longa história,
como eu disse. Vou contar para vocês desde o comecinho.
"Quando eu tinha uns vinte anos, lá em Campos, decidi que
a minha vocação era a música. Você não
avalia o desgosto dos meus pais. Papai era fazendeiro, e eu era o seu
filho mais velho. Ele fazia questão que eu o sucedesse. Bati o
pé, e ele acabou me expulsando de casa. Era um homem inflexível.
"Fiquei com uma mão na frente e outra atrás. Vim para
o Rio sem um tostão no bolso - justo eu, que tinha sido criado
com todo o conforto. Queria trabalhar como pianista, mas até lá,
como me arranjaria?
"Fui procurar um tio meu, um homem muito importante. Ele era irmão
da minha mãe, e sempre gostou de mim. Tinha uma cadeia de lojas,
e era um dos homens mais ricos do Rio de Janeiro, naquela época.
Até hoje, aliás, a família é milionária.
Vocês já devem ter ouvido falar neles.
Menciona um nome, e eu e Mariana nos entreolhamos. É dinheiro sólido,
antigo e influente. Até eu, desligado que sou, já ouvi falar
do tio de Banana Geral. Fazia e desfazia prefeitos, governadores e até
presidentes.
O pianista prossegue:
- Meu tio foi de uma bondade extraordinária comigo. Podia ter me
virado as costas, não é? Artistas eram muito malvistos,
naquela época. Mas ele me apoiou. Achava que eu tinha talento,
e me apresentou a pessoas importantes do meio artístico. Me abriu
uma série de portas. Graças a ele, logo estava ganhando
a vida como pianista.
"Além disso, meu tio me chamou para morar na sua casa. Ele
e minha tia me tratavam como filho, e nunca fizeram nenhuma exigência:
eu chegava na hora em que queria, trazia meus amigos para casa... E ao
mesmo tempo convivia com meus primos, tinha amizade com eles. Com o tempo,
meu tio também conseguiu reatar minhas relações com
papai. Eu posso dizer que devo tudo a ele. Tudo.
"Eu gostava de sair com meus primos, levá-los aos lugares
onde tocava. Além das minhas duas primas, também havia os
rapazes - Ronaldo e Zé Eduardo. Zé Eduardo morreu há
muitos anos, de câncer. Ronaldo continua por aí. Hoje é
ele quem comanda os negócios.
Aceno com a cabeça; também conheço Ronaldo de nome.
- E fui eu que apresentei Aída ao Ronaldo.
- E os dois começaram a namorar - adivinha Mariana.
- Exatamente, minha querida. É engraçado, porque durante
muito tempo o Ronaldo queria ser apresentado a ela. Pedia, e eu ficava
inventando desculpas. Era como se já tivesse um pressentimento
sobre os dois.
"O Ronaldo queria ser apresentado simplesmente como um amigo meu.
Não gostava do jeito com que as pessoas o tratavam, quando descobriam
que era milionário.
"Assim que os dois se encontraram, percebi que era um caso perdido.
Foi, como dizem, amor à primeira vista. Os dois pareciam um casal
de bobos. Não se largavam. Só quando o namoro estava firme,
o Ronaldo lhe contou quem era, qual era a sua família, etc. Acredito
que isso não tenha feito a menor diferença para Aída.
"Por mais amigos que fôssemos, eu nunca tinha contado ao Ronaldo
da minha paixão pela Aída. Certas coisas, vocês entendem,
a gente tem pudor de comentar... De modo que ele me fazia confidências.
Um dia, veio me procurar e disse que ia casar-se com ela. Estavam planejando
fazer a coisa discretamente, no fim do ano, depois que se formasse - meu
primo estava estudando Direito.
"Fiquei branco, mas o Ronaldo nem percebeu; continuou tagarelando,
falando do seus planos - essas coisas de gente apaixonada. Perguntei como
ele achava que a família ia receber a notícia. Ninguém
sabia nada sobre o namoro... Nem na família, nem fora dela; eles
eram muito discretos. Ronaldo hesitou um pouco, mas disse que ia colocá-los
diante do fato consumado. Lembrou que o pai era um homem esclarecido.
'Ele não tem preconceito contra artistas, até ajudou você'.
"Naturalmente, o pior problema não era esse... Acho que o
Ronaldo estava se iludindo, como tanta gente faz em situações
difíceis. De qualquer forma, eu também preferi não
pensar muito sobre o assunto. Já era bem difícil saber que
a Aída ia casar com outro.
"Passaram-se uns dois meses. O namoro continuava às escondidas.
Eles tinham procurado um cartório, adiantado a documentação...
Em princípios de novembro, meu tio veio falar comigo.
"Ele estava muito nervoso. Fechou a porta do meu quarto e disse que
tinha um assunto grave para falar comigo. Foi direito ao ponto, e perguntou
se eu sabia do namoro de Ronaldo com 'aquela cantora'.
- E você confirmou? - pergunto.
- Não tive jeito de negar... Ele já tinha se informado.
Nunca descobri quem contou para ele. Mas, afinal das contas, por mais
que o Ronaldo e a Aída se escondessem, em um ano de namoro, alguém
deve ter visto os dois juntos. Era inevitável. Muitas pessoas,
por exemplo, tinham me perguntado quem era o misterioso namorado da Aída...
"Nunca vi meu tio tão furioso. A gente pensa que conhece as
pessoas, e como se engana! Tive medo até que passasse mal. Me lembro
bem: fazia muito calor, ele estava vermelho, transtornado, suando... Já
sabia que os dois planejavam se casar. Sabia até a data. Disse
que aquilo não poderia acontecer de forma alguma, que seria um
escândalo, que a vida do Ronaldo ficaria arruinada. Eu perguntei
se o problema era a profissão dela. Ele me deu um olhar torto que
nunca vou me esquecer, e respondeu: 'Não banque o ingênuo,
Elias. Você é um rapaz inteligente. Se pensa que eu vou deixar
uma crioula entrar na nossa família, é porque não
me conhece.' Disse que a mãe do Ronaldo morreria de desgosto, que
eles não seriam recebidos em lugar nenhum, que seria ruim até
para os negócios. E os netos, então? Preferia morrer a ter
netos mulatos.
- Que horror - diz Mariana. - Não sabia que as pessoas pensavam
assim naquela época.
- Minha querida, se você acha que as coisas mudaram muito de lá
para cá, está sendo ingênua... Esse incidente me abriu
os olhos para uma série de coisas. Eu via meus tios tratar muito
bem os empregados negros, até colegas meus que eram de cor. Mas
aceitar uma nora negra... Aí já era outra coisa.
"No fundo meu tio era como a maioria dos brasileiros. Você
raspa um pouquinho um brasileiro, e sempre aparece o racista. Sempre.
Se a Aída tivesse aceito a minha proposta de casamento, como você
acha que meu pai se comportaria?
"Tentei acalmar meu tio. Mas ele não estava raciocinando.
Queria porque queria que eu convencesse o Ronaldo a largar a Aída.
Eu disse que com certeza ia fracassar, que ele estava decidido. 'Foi você
que apresentou os dois', disse ele, 'agora conserte o estrago'. Eu continuei
me negando, e ele disse que ia oferecer dinheiro à Aída.
'Com certeza essa negrinha safada vai aceitar', disse. 'Deve ser uma golpista'.
"Fiquei furioso. Não queria brigar com meu tio, gostava muito
dele, mas disse uma coisa de que me arrependi depois. Falei que nem todas
as pessoas podiam ser compradas do jeito que ele pensava.
"Me lembro até hoje da sua resposta: 'Nesse caso', ele disse,
'vou ter que tomar outras providências'. E saiu batendo a porta.
Não conversei mais com ele sobre o assunto."
Tira o lenço do bolso, passa pelo rosto. Não é mais
aquele velhinho alegre que nos recebeu há alguns minutos. Seu rosto
é uma máscara de tristeza.
- E aí, o que aconteceu? - pergunta Mariana.
- Bem, eu tive essa conversa com ele no dia 15 de setembro. No dia 30,
a Aída sumiu.
"Nunca fiquei sabendo se ele chegou a oferecer dinheiro para ela.
Se ofereceu, ela provavelmente recusou e ele tomou as 'outras providências'.
No dia 30, eu estava no estúdio, esperando Aída aparecer
para gravar. Quando ela se atrasou, senti um mau pressentimento. Chamei
o Ronaldo e fomos ao apartamento dela, antes mesmo do empresário
dela, o Ladislau. Percebemos que o porteiro do dia não sabia nada,
e fomos atrás do da noite. Ele também disse que não
tinha visto nada, mas estava na cara que mentia. Aída deve ter
sido retirada dali em algum momento da noite - provavelmente ainda viva.
Não tenho a mínima idéia de onde foi executada.
"Ainda subi o morro com o Ronaldo para ver se ela estava com a família
- uma hipótese improvável, porque Aída andava brigada
com eles. Só falava com uma das irmãs, a Iranita. Não
a encontramos lá, também.
"Nos dias seguintes, nós dois - eu e o Ronaldo - ficamos feito
loucos atrás dela. Fizemos a ronda dos hospitais, necrotérios,
delegacias... Nada. Eu comecei a remoer as minhas suspeitas. Não
conseguia parar de pensar nas 'outras providências' que meu tio
tinha ameaçado tomar. E algumas coisas que foram acontecendo naqueles
dias aprofundaram minhas suspeitas.
"Desde o começo, eu sentia que a polícia não
estava muito interessada em apurar o caso. Já foi um custo fazer
a queixa de desaparecimento. Eles diziam que a Aída devia ter ido
viajar e esquecido de avisar. Ou então que estava com algum namorado.
'Sabe como são esses artistas'. O Ronaldo disse que era namorado
dela e não estava sabendo de nada. Nem sequer interrogaram ele.
E nem passaram essa informação para os jornais.
"A atitude da imprensa também foi curiosa. Nos primeiros dias,
houve um certo estardalhaço, notícias na primeira página...
Depois, de repente, o assunto sumiu dos jornais. Não se falou mais
de nada. Em alguns meses, era como se a Aída nunca tivesse existido.
A família, que não era muito ligada a ela, logo desistiu
da busca. Eu e o Ronaldo persistimos mais - gente apaixonada sempre é
mais persistente. Chegamos a contratar um detetive.
- E ele não apurou nada? - pergunto, surpreendido.
- Ele sumiu! Era um ex-policial, que nos foi muito bem recomendado. Mas
depois de alguns dias, desapareceu. Fechou o escritório, mudou
o telefone... O homem virou fumaça. Cinco anos depois, encontrei
ele na rua: fingiu que não me conhecia.
- É muito misterioso - comento.
- Depois de uns três meses, o Ronaldo entrou em depressão.
Trancou-se no quarto, não saía para nada. A família
mandou-o para uma clínica, no maior segredo. Ficou lá seis
meses.
"Nesse tempo todo, várias vezes pensei em comentar a conversa
que o pai dele tivera comigo. Não fiz isso por dois motivos. Em
primeiro lugar, porque não queria criar uma suspeita - que podia
ser injusta - entre os dois. Em segundo lugar, porque o Ronaldo, de alguma
forma, acabou percebendo que o pai já sabia do caso dele com a
Aída. Então, cheguei à conclusão de que não
teria nada de novo para contar ao meu primo.
"Mas pensava no assunto noite e dia. Não tinha mais coragem
nem de trabalhar. Não apenas sentia falta da Aída, mas também
ficava aquela suspeita me roendo. Meu tio teria feito alguma coisa com
ela? Me lembrava como ele parecia enfurecido, antes da morte da moça.
Em compensação, agora, andava sempre alegre, calmo. Nem
se preocupou muito com a depressão do Ronaldo. 'Isso vai passar',
ele disse.
- Mas não passou... - adivinha Mariana.
- Nunca mais meu primo foi o mesmo. Voltou da clínica quieto, envelhecido.
Não era mais aquele rapaz alegre de antes. Terminou o curso e foi
trabalhar nos negócios da família. Dali pra frente, dedicou-se
exclusivamente ao trabalho... Só se casou com mais de quarenta
anos. Os filhos dele ainda são jovens, nenhum tem mais de trinta.
"Notei que ele se afastou do pai. Foi morar sozinho. As poucas vezes
em que vi os dois juntos, depois disso, só falavam de negócios.
"Eu também me afastei do meu tio. Foi nessa época que
fui trabalhar em Campos. Na volta, me mudei para um apartamento em Copacabana.
Me sentia melhor assim.
"Os anos foram passando. Ninguém falava mais de Aída,
ela foi totalmente esquecida. De vez em quando eu encontrava o Ladislau
Gomes e batíamos um papo sobre ela - mas, fora isso, era como se
nunca tivesse existido.
"Minha carreira continuou, graças a Deus com algum sucesso.
Nunca me faltou trabalho. Viajei, fiz excursões para a Europa,
toquei com grandes nomes. Tive muitas namoradas, algumas até bem
sérias. Mas na hora de casar sempre arrumava alguma desculpa. Não
sei, talvez fosse só medo de perder minha liberdade. Mas no fundo
eu não esquecia dela."
Banana Geral se cala. Está olhando para o chão. Parece perdido
em seus pensamentos. Mariana, muito prática, rompe o silêncio:
- Então o senhor suspeitava que seu tio pudesse ter mandado matar
a Aída...
- Sem dúvida suspeitava. Não tinha a menor prova concreta,
mas tinha vários indícios. Por exemplo, sabia que meu tio
não era avesso ao uso da violência. Numa ocasião em
que houve um desfalque na sua empresa, dizia que ele tinha mandado espancar
e até ameaçar de morte os responsáveis. Nada foi
provado, mas ficou a suspeita...
"Além disso, meu tio era um homem muito poderoso. Se de fato
decidisse eliminar a Aída, tinha formas de abafar a história,
de parar a investigação logo no começo. Como é
que alguém 'mata' uma história dessas em três dias?
Não sou jornalista, mas isso sempre me pareceu muito esquisito.
Por outro lado, eu sabia que meu tio tinha ótimas relações
com donos de jornais... A polícia também nunca me pareceu
muito interessada em apurar a história. E o tal detetive que sumiu
do mapa? É mais estranho ainda."
- De fato - comento - é tudo muito esquisito. Se o que o senhor
está dizendo é verdade, seu tio tinha os meios, a oportunidade
e o motivo para matar essa moça. Nada mais fácil: era só
contratar um bandido qualquer - ou, talvez, alguém da própria
polícia - executá-la e depois encarregar um certo dono de
ferro-velho de sumir com o cadáver...
Minhas palavras têm o efeito esperado: ele arregala os olhos, branco
de susto:
- Como você sabe disso?
Penso na história do cadáver encontrado no porta-malas do
Buick, e decido que é cruel demais para ser contada a esse velhinho.
Me limito a dizer:
- Também fizemos algumas investigações. Por que o
senhor não procurou a polícia?
Ele solta um longo suspiro.
- Por vários motivos. O principal foi covardia, imagino... Mas
não foi só porque meu tio era um homem rico e poderoso.
Foi também porque eu gostava dele. Ele era como um pai para mim.
Não conseguia aceitar que ele fosse capaz de um horror desses:
executar uma moça inocente, apenas porque não queria uma
nora negra. Eu poderia ter perguntado diretamente para ele, mas nunca
tive coragem. É horrível você pensar que uma pessoa
de quem você gosta possa fazer uma coisa dessas. Preferi me afastar
dele.
- Mas o senhor não ficou na suspeita - diz Mariana - O senhor sabe
que Aída foi assassinada.
- Sei.
- Como?
- Por que ele me contou.
- Ele quem? Seu tio?
- Ele mesmo - Faz uma pausa, passa as mãos, pelo rosto: - Por favor,
minha filha, você pode pedir à atendente um copo d'água?
Gente velha se cansa rápido...
Depois de beber a água, continua:
- Há uns quinze anos, quando meu tio fez oitenta, deu uma grande
festa na sua casa. Fez questão de me convidar, e disse que não
aceitaria nenhuma desculpa. "Eu preciso muito falar com você",
me disse. "Venha, porque pode ser a sua última chance".
Fiquei assustado, é claro, e fui.
"Fazia anos que não colocava o pé naquela casa. Nunca
perdi o contato com o Ronaldo, mas sempre nos víamos no apartamento
dele. Estavam todos lá: meu tio, minha tia, minhas primas com os
maridos e filhos, o próprio Ronaldo com a esposa e os filhos pequenos...
Só faltava o Zé Eduardo, que já tinha morrido.
"Você não imagina minha emoção em entrar
de novo naquele lugar. Era como se a minha juventude tivesse voltado.
Cada cantinho daquela casa guardava uma lembrança para mim... Mas
percebi que meu tio estava magro, muito envelhecido. Minha tia me contou,
em particular, que ele não tinha muito tempo de vida. Há
anos sofria de câncer, que vinha progredindo devagar - parece que
é assim com gente velha. Mas agora estava no fim da linha. Os médicos
não lhe davam mais que alguns meses.
"Lá num determinado momento, meu tio me chamou para conversar
com ele na biblioteca. Me lembro até hoje dessa conversa, com detalhes.
Me lembro de cada palavra que me disse.
"Ele foi direto. Começou perguntando se eu me lembrava daquela
moça que o Ronaldo namorara, em 59. Quase perdi a flaa... Mas respondi
que sim; afinal, tínhamos trabalhado juntos.
"Aí ele perguntou: 'Você não tem idéia
do que aconteceu com ela?'. Estava muito calmo, me lembro bem, e me olhava
direto nos olhos. Naquele momento, tive certeza que ele matara a Aída.
Comecei a tremer da cabeça aos pés... Era como se ele, e
não eu, fosse culpado daquela morte.
"Respondi que imaginava que ela estivesse morta. Ele perguntou: 'E
quem você acha que matou ela?' Respondi que não sabia.
"Ele então sentou em frente à escrivaninha - estava
com um uísque na mão - e disse: 'Elias, não vamos
ser hipócritas. Eu estou na reta final. Preciso me abrir com alguém.
Eu mandei matar aquela moça.'
"Não sei nem dizer o que senti naquela hora... É engraçado,
sempre tive o pressentimento que ele de fato assassinara Aída.
Mas ver meu tio ali na minha frente, confessando o crime, friamente...
Foi horrível.
"Ele foi contando os detalhes. Um amigo dele, muito poderoso dentro
da polícia do Rio, arranjou um policial que 'subcontratou' - por
assim dizer - o serviço. Ganhou muito dinheiro por isso. Foi pago
não apenas para assassinar Aída, mas também sumir
com o corpo. O cadáver foi colocado no porta-malas de um carro,
e um dono de ferro-velho se encarregou de sumir com ele. Nem o policial,
nem o bandido, nem esse sujeito do ferro-velho sabiam quem os estava contratando.
Esse amigo do meu tio era um sujeito cem por cento fiel a ele. Morreu
alguns anos depois.
"Meu tio também usou sua influência para fazer a história
sumir dos jornais. Explicou aos seus amigos da imprensa que, como o Ronaldo
andava envolvido com aquela cantora, ele não queria que se ventilasse
o assunto. Podia prejudicar o filho.
"A gente tem que dar um crédito ao meu tio: ele fez um serviço
impecável. Assassinou a Aída, não apenas fisicamente,
mas também da memória das pessoas. Hoje, pouquíssimas
pessoas sabem que ela existiu. A carreira dela foi apagada. O Ladislau
tentou várias vezes relançar o disco dela. Nunca conseguiu.
Não havia interesse, porque ninguém mais sabia quem foi
Aída Marques."
Um longo silêncio se faz na sala.
- E o que foi que o senhor disse, depois que ele contou essa história
toda? - pergunta Mariana.
- Perguntei se ele não sentia remorsos. Como é que uma pessoa
consegue fazer uma coisa dessas e dormir tranqüila à noite?
Mas ele me respondeu que dormia muito bem. "Eu salvei minha família,
Elias. Você não é casado, não tem filhos, não
sabe o que isso significa. Dei a essa moça todas as chances para
sair dessa história. Ele estava irredutível. O que você
acha que eu devia fazer? Ela ia arruinar a vida do Ronaldo. Meu filho
ia ser a piada do Rio de Janeiro. Não sei nem se teria condições
de me suceder na empresa. Um empresário tem de impor respeito...
Você é artista, não entende essas coisas.
" 'Não, não sinto remorsos. Fico triste porque meu
filho se afastou de mim, e você, que eu considerava como um filho,
nunca mais veio me visitar.... Imagino que vocês desconfiem de mim.
O Ronaldo com certeza desconfia. Ele nunca me falou nada, mas eu sinto.
E é por isso que eu tenho um pedido a lhe fazer.'"
"Naturalmente, fiquei surpreso. Depois de tudo que ele me contara,
o que podia pedir? Mas ele me disse que sempre gostara de mim, que tinha
me ajudado quando eu precisara, que fora um pai para mim. E nada disso
eu podia negar... Disse que eu lhe devia um último favor."
- Que favor?
- Ele sabia que eu sempre me conservara próximo do Ronaldo. Fui
ao batizado de todos os filhos dele, ele sempre ia às estréias
dos shows onde eu tocava... Só não falávamos de uma
coisa: da Aída.
"Meu tio me perguntou se alguma vez já tínhamos dividido
as nossas suspeitas. Eu disse que não. Então ele me pediu
- me suplicou - que eu nunca contasse essa história ao Ronaldo.
'Não posso morrer sossegado sabendo que meu filho vai me odiar.
Hoje em dia, ele tem lá suas suspeitas, mas ainda deve me conceder
o benefício da dúvida. Senão, teria rompido comigo.
Por favor, faça com que ele continue assim. O que adianta ele saber
dessa história, hoje em dia? Não resolve nada e só
vai fazê-lo sofrer.'"
- E o senhor prometeu?
Banana Geral cruza os braços. Olha para mim.
- Prometi.
- Não acredito!
- vocifera Mariana, no táxi de volta.
- Não acredita no quê?
- Há quinze anos essa múmia sabe quem matou a Aída,
e nunca contou nada para o Ronaldo!
- Ele prometeu ao tio, Mariana... E depois, a essa altura, o que ia adiantar?
- Pelo que ele contou, até agora o cara deve remoer o assunto.
Deve ficar se perguntando se ela morreu mesmo, se alguém a matou...
Fico quieto. Quando minha irmã está com a macaca, é
melhor não discutir com ela. Depois de resmungar por mais alguns
minutos, ela me pergunta:
- Ué, mas onde a gente está indo?
- Ora essa, Mariana. O caso terminou! Agora, vamos prestar contas ao nosso
cliente.
Essa deve ser a casa
mais luxuosa em que eu e Mariana já botamos os pés, em nossas
vidas de pobre. O cliente nos faz esperar vários minutos, antes
de nos atender. Mariana - um pouco intimidada pelo escritório atulhado
de móveis caros - sussurra:
- Mas como você sabia que era ele?
- É óbvio, sua burralda - uma vez na vida, posso me dar
ao luxo de esnobar minha irmã. - Você não percebe?
Quem mais teria interesse, a essa altura dos acontecimentos, de remexer
nessa história? A família? Nem se lembram mais da Aída.
O Ladislau Gomes? Muito ocupado controlando as mulheres dele. O Banana
Geral? Ele já sabia de tudo.
- Então só podia ser o ...
- Evidente, criatura! E agora fique quieta. Ele está chegando.
A porta se abre devagarinho. Eu e minha irmã nos levantamos. Um
homem alto, imponente, impecável no seu terno escuro, aperta nossas
mãos, murmura alguns cumprimentos formais. Pede que nos sentemos.
Senta na escrivaninha, à nossa frente, e olha ansioso para nós.
Quarenta anos depois, Ronaldo finalmente vai saber que sua amada está
morta.
|