Não olhe agora, mas a periferia invadiu o condomínio fechado...

A MULHER DE CARAPICUÍBA

Ô, inferno! Eram nove da manhã e a Luana só queria dormir. Eu botava o seio na sua boca, ela sugava um pouquinho e caía no sono. Quando eu tirava o bico, começava a chorar.
Enquanto isso, os dois maiores faziam a maior bagunça  lá em cima. Pedi pra empregada ver o que estava acontecendo – a babá estava de novo atrasada. Precisava arranjar outra.
Tinha passado a noite em claro com o nenê, e já estava caindo no sono quando a campainha tocou. Devia ser alguém do condomínio; se fosse de fora, teriam avisado da portaria. Me levantei com dificuldade, a cicatriz da cesariana ainda dava umas pontadas. Mas Carol já estava entrando. Vinha ofegante, descabelada, e com um vestido verde que seria até bonitinho, se não fosse uma mancha de gordura na altura do decote.
Levei um susto. No seu estado normal, Carol nunca sairia na rua daquele jeito. E aquele olhar de demente no rosto?
- Marina, você precisa vir comigo.
- Vir aonde?
- Vem comigo, que eu te mostro.
- Mas o nenê...
Nesse momento a babá chegou. Carolina passou Luana pra moça como se fosse um pacote, me puxou para fora e praticamente me empurrou pra dentro do Audi estacionado na calçada.
- Você precisa ver uma coisa.  – ela disse.
- Escuta, Carol, eu...
Mas ela já tinha dado a partida, e saído feito maluca nas ruas do condomínio. Um perigo. O Refúgio dos Beija-Flores tem as ruas quase vazias. Tem criança brincando por aqui.

- Você não sabe por quem ele me trocou! Aquele cachorro! Pústula!
As lágrimas escorriam debaixo dos óculos escuros que ela tinha posto. Brecou numa esquina bem em cima de um menino que vinha andando de skate. O menino soltou um palavrão e mostrou o dedo médio.
- Carol, você não quer que eu dirija? – perguntei.
- Você não sabe onde é a casa da mulher.
- Mas... o que você vai fazer na casa dela?
- Te mostrar – respondeu ela, rangendo os dentes. – Só isso, quero te mostrar.
Fechei a boca. Eu gostava - gosto - sinceramente da Carol. Andava preocupada com ela desde que Luiz Carlos tinha ido embora, há um mês.
Por outro lado, depois de quinze dias trancada em casa com o nenê, ficava até feliz por sair um pouco.  Sem falar na curiosidade. Onde ela estava me levando?
Saímos pela estrada e ela pisou no acelerador. Calada, parecia mastigar a raiva. De repente pegou uma saída que eu não conhecia. E começou a nhana:
- Nunca pensei que o Luiz Carlos fosse descer tanto! Já é horrível ele me largar depois de vinte anos de casamento. Mas se pelo menos me trocasse por uma pessoa... uma pessoa...
Fez esforço para se conter.
- ... uma pessoa com certo nível, sabe, Marina?
- Claro, claro – disse eu. 
- ... eu ainda entendia. Mas o filho-da-puta me trocou por uma... uma... uma mulher de Carapicuíba!
- Como?
- Isso mesmo que você ouviu: Carapicuíba. Tô indo pra lá agora – disse, ajeitando o espelho retrovisor e costurando na pista feito demente.
- Mas...
- Nem colegial a criatura tem, imagine. Desempregada. Deve ser praticamente analfabeta. E tem um filho, Marina! Um menino! O Luiz Carlos abandonou nossos filhos pra criar o dessa vaca, que com certeza nem sabe quem é o pai!
Tirou os óculos escuros e recomeçou a chorar. Fiquei pensando em alguma coisa inteligente para dizer, mas não consegui me lembrar de nada. Acabei apelando:
- Vai ver é só uma fase...
- Fase o caralho!
Nossa, antes ela nunca falava palavrão.
Entramos num lugar horrível: avenidas e mais avenidas acinzentadas e feias; postes com tênis pendurados, sujeira na rua, casario desigual, medonho. Só cimento, nem uma árvore. Carros velhos, tipo Brasília e Corcel, passavam com a lataria chacoalhando. Moleques corriam descalços pela rua. No ponto de ônibus, um monte de gente se apinhava, à espera do “busão”, como eles dizem, debaixo daquele sol medonho.
Não que eu não conheça bairros assim. Cansei de levar minha empregada pra Zona Leste, quando tinha greve de ônibus. Ela morava num lugar bem ruinzinho. Agora, graças a Deus, resolvemos o problema da criatura. Fizemos um apartamento bem bacaninha pra ela, quando construímos a casa. E é mais prático também, se a gente precisa de alguma coisa à noite.
Mas aquela cidade era pior que o bairro da Eliane. Medonha, suja, horrível. Carol, calada, dirigia, dirigia, e não chegávamos nunca.
- Mas onde a gente está, Carol?
- Em Carapicuíba.
- Nossa... que lugar feio!
- Pois é – disse ela. Pelo jeito que guiava, não era a primeira vez que vinha ali. – Olha onde mora a piranha!
- Como os dois se conheceram?
Ela embicou o carro por uma travessa da avenida.
- Se encontraram numa convenção, parece que ela estava fazendo um bico de recepcionista. Agora veja: pra quê botar uma mulher dessas num evento? Tem tanta menina mais preparada, classe média até, precisando de uma chance...
- É mesmo, nem diga.
Continuamos a andar, a pegar travessas de travessas, até que fomos parar numa rua que nem asfalto tinha. Quase favela. Galinhas ciscavam na rua.
- Olha só! – disse Carolina, parando o carro. E me mostrou a casa. Era de esquina; até grande, mas torta, desconjuntada, como se tivesse sido construída em camadas que não combinavam.
- Ela mora com a mãe, a tia, um primo, mais o filho, uma irmã e dois sobrinhos – disse Carolina. – Imagine o ajuntamento.
- Nem sei como eles conseguem.
- Eu também, acho que morria de aflição.
A rua estava deserta. O calor, àquela hora da manhã, já estava terrível. O Audi de Carolina tinha ar condicionado, mas ela desligou o motor e nem baixou as janelas.
- O que a gente está fazendo aqui? – perguntei.
- Esperando ela sair. Quero que você veja a peça, Marina, você não vai acreditar.
- Mas ela pode demorar horas!
- Não demora não, já conheço a rotina dela. A essa hora está sempre indo pra algum lugar, cabeleireiro, manicure – o Luiz Carlos tá pagando, né? – ou ver as vagabundas das amigas.
- Como você sabe disso?
- Depois te conto – disse ela, com ar misterioso. O calor estava insuportável mesmo, e pra piorar as coisas, senti um ponto úmido na frente da camiseta.
- Carol, preciso voltar pra amamentar – disse.
Mas ela nem me ouviu. Continuava olhando a casa, esperando a outra sair.
- Justo o Luiz Carlos! Sempre foi tão sério, não dava liberdade pra ninguém. Uma vez quase despediu a secretária porque ela veio trabalhar de saia curta, sabia?
- Não, não sabia. Escuta, Carol, você tem aí um lenço de papel... papel higiênico... qualquer coisa assim?
- Não tenho. Uma pessoa tão culta, tão refinada. Meu Deus, a música preferida dele era ópera! Lembra?
- É, lembro – o Luiz Carlos era um chato, eu só agüentava por causa da Carol.
- E agora, está aí com essa tipinha... Você não tem noção, Marina, ela adora pagode.
- Pagode?
- Pagode. Pra quem se achava tão refinado, tão culto...
- Mas como você sabe disso?
- Não que a família do Luiz Carlos seja grande coisa – ela estava embalada. – Minha sogra, você viu, né, Marina; ótima pessoa, mas muito ignorante, coitada. Eu não tenho preconceito! O Luiz Carlos, sim, é que sempre teve vergonha da família. E vou dizer uma coisa, aproveitou bem o dinheiro do meu pai! Se hoje tem um diploma, uma profissão, é porque a gente ajudou. Ele entrou nesse casamento com  a roupa do corpo.
E você tirou  – pensei. A idéia era tão engraçada, que dei uma risadinha. Ela me olhou torto:
- É verdade, Marina. Pode perguntar pros nossos amigos.
- Não, que é isso, Carol. Acredito em você.
- Sugou tudo que podia, e agora arranjou outra. Ele deu o golpe do baú. É isso que eu fui pra ele: um golpe do baú.
E começou a chorar de novo. Ô meu Deus.... agora o leite estava vazando de verdade, e eu estava com uma mancha enorme na camiseta, pior que a do vestido da Carol. Dei uns tapinhas no ombro dela:
- Isso passa. Você ainda é moça, quem sabe...
- Nunca mais vou gostar de outro homem. Nunca mais! – ela uivava. – Dediquei minha juventude a esse canalha, abandonei a carreira pra cuidar dos nossos filhos... Ele é um monstro, Marina. E burro, além de tudo. Será que ainda não percebeu...
- Carol!
- ... que essa baranga está atrás do dinheiro dele? O que ele pensa? Que de repente ela se apaixonou por um quarentão careca?
- Carol! Tem uma mulher saindo da casa. Será que é ela?
Carol colocou rapidamente os óculos escuros, espiou por uma fresta da janela:
- Ela mesma. Vaca! – sibilou, baixinho.
- Pensei que fosse mais nova.
- Tem quase trinta anos. Pelo menos o Luiz Carlos não deu pra correr atrás de garotinhas. Seria ridículo, né? Mas é ordinária, vulgar... Olha só, Marina. Dá uma boa olhada.
- É, realmente.... Nossa, que chapinha horrível.
- E as roupas? E a cor do cabelo? Nossa Senhora!
- E tem uma bunda enorme.
- E eu que me mato de fazer regime!
 A mulher dobrou a esquina. Resolvi assumir o comando:
- Vamos embora, Carol. Preciso mesmo amamentar a Luana.
- Tá bom – disse ela, resignada. Ligou o carro, deu a partida, e já estava dois quarteirões à frente quando voltou ao assunto:
- Golpe do baú, minha filha. Essa mulher está querendo se arranjar. Não se engane.
- É, pode ser...
- Pode ser não; é! E vou provar isso pro Luiz Carlos. Vou deixar ele com a cara no chão. Descobri um monte de coisas sobre ela. Contratei um detetive.
- Um o quê?
- Um detetive particular – ela voltou para a avenida. – Especializado nesses casos.
- Carol, você ficou louca?
- Quero mostrar pro Luiz Carlos com quem ele está se envolvendo.
- Mas...
- O detetive grampeou o telefone da casa dela. Já conseguiu um monte de coisas. Quer ver?
Sem parar o carro, abriu o porta-luvas e tirou de lá um CD, que colocou para tocar. Uma voz de taquara rachada encheu o carro:
... só consegui comprar o acém, que pro patinho meu dinheiro não tá dando...
- Não, não é isso – disse Carolina, apertando a teclinha para avançar o CD.
... show de bola, mano, esse ano só dá o Palmeiras...., dizia um homem.
- Também não é isso – disse ela, apertando a teclinha de novo e se atrapalhando toda. Eu estava vendo a hora que ela ia bater o carro.
- O detetive gravou tudo que eles conversavam?
- Pra dar uma idéia geral, sabe, do tipo de gente... 
... nesse feriado ele me levou pra Bahia, menina, nem acreditei!
- É ela – informou minha amiga, cerrando os dentes.
- A namorada do Luiz Carlos?
- Namorada não, amante. Ele ainda é casado comigo!
 .. não foi pra Porto Seguro, não, foi pra outro lugar. Um desses... como é que chama? resort, né. Chique no úrtimo! Tomei sol que tô preta... a gente ficou num quarto lindo, precisa ver...
- E comigo o desgraçado não queria ir pra Bahia! - disse Carol - Agora olha só essa passagem.
Apertou a tecla, e a voz da outra voltou:
 ... menina, sabe o que ele me prometeu de presente de aniversário?
- Não, o quê?
- Uma tevê de plasma!
Do outro lado, um silêncio. E depois:
- Não brinca!
- Já imaginou? Dessas grandonas, que cobre a parede... nossa, Dri, quanto deve custar um bagulho desses, hein?
- Sei lá! Uma fortuna! E depois aquele celular lindo que ele te deu?
- Dri... acho que ele deve ser rico, né? Quer dizer, pra comprar essas coisas todas pra mim....
- Aí! – disse minha amiga, triunfante. – É esse trecho que eu vou mostrar pro Luiz Carlos. Esfregar na cara do imbecil, pra mostrar quem é  essa namoradinha dele.
Nessa altura, a frente da minha blusa estava encharcada. Carol tinha se perdido na avenida central, e procurava feito tonta a saída pra estrada. Ocupada com o CD player, quase enfiou o carro na traseira do caminhão.
- Vou tocar esse CD inteiro pra ele! – repetia, feroz.
Perdi a paciência, confesso, fui até meio grossa:
- E daí? Você toca, e o Luiz Carlos volta pra você? Cai na real, Carol!
Ela parou de mexer no aparelho e me olhou, desolada. Fiquei até com pena.
Na estrada, chorava baixinho. Mas parecia mais calma. O trânsito não estava ruim, e em pouco tempo a gente estava de volta ao Refúgio. Dei um suspiro de alívio, quando passamos pela portaria. Graças a Deus a gente tinha saído daquele lugar horrível.
Carol não tinha falado uma palavra no caminho. Mas quando estacionou o Audi em frente à minha casa, ainda perguntou:
- Você acha mesmo que não adianta mostrar o CD pra ele?
Suspirei, e dei o golpe de misericórdia:
- Carol, o máximo que esse CD prova é que a mulher gosta de celular e TV de plasma.
Ela baixou a cabeça, conformada. Bati a porta do carro e entrei correndo em casa para ver o almoço. Lá dentro, Luana chorava de fome. Fui desabotoando a blusa.

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