"Nunca ficaremos livres deles" ...
MEIA OITO, OITO E MEIO

Eu odeio eles. Odeio todos esses caras, e meu destino, minha sina, meu carma, é viver topando com eles.
Quando eu morrer, ainda é capaz de um deles comparecer ao funeral. Porque esses tiozinhos vão longe. Quase caindo na compulsória, mas estão lá, firmões. Produtivos, inclusive. Depois que inventaram a cirurgia de safena, o condicionamento aeróbico e principalmente o Viagra, ninguém segura eles.
Chegarão aos oitenta. Chegarão aos noventa. Completarão um século. E eu aqui, tocando suas campainhas e entrando em seus apartamentos bolorentos. Fingindo me interessar por suas histórias de luta contra a ditadura e destruição das barreiras morais, estéticas, químicas, literárias e não sei mais o quê.
Nunca vou me livrar deles.
O prato principal da revista onde trabalho são as mulheres peladas. Anônimas ou famosas, elas pagam nossas contas; sou-lhes grata. Mas a revista também precisa de uma cobertura de glacê, tipo “estilo” ou “cultura”. E aí me mandam à ala geriátrica.
É sempre mais seguro entrevistá-los, porque o tempo conferiu respeitabilidade a esses ex-riporongas, ex-terroristas, ex-gurus ou até ex-maridos de mulheres célebres. Não vão sair da moda semana que vem. E depois, participaram de uma época heróica. Não importa se o cara era um perfeito idiota em 68, o importante é que estava  lá, entende? E eu, como representante da ala “séria” da revista, sou encarregada de fazer seus perfis. Assim, o leitor não fica tão constrangido em comprar uma... revista de mulher pelada.
Estou nessa há anos.
Claro que às vezes entrevisto caras mais jovens, com quem é possível manter um diálogo, não um monólogo a dois... Mas no número seguinte os pauteiros já me designam mais um membro do baby boom.  
Por que odeio eles? Nossa, quer por ordem alfabética?
Primeiro ítem: é a geração da condescendência. Anything goes. Indulgência com os outros, claro, mas antes de mais nada consigo mesmos. Como crianças mimadas em loja de brinquedos, acham que tudo lhes é permitido. Aderir ao governo, ter trezentos filhos e não pagar pensão, comer a estagiária, falar mal das ex-mulheres, beber todas, cheirar todas, fumar todas. Ah, sim, e também produzir filmes medíocres, livros xexelentos, música repetitiva, e exigir que o mundo caia de joelhos perante sua Arte.
Segundo motivo: as cantadas. Eles elogiam muito a revolução feminista, que “liberou” as mulheres. Mas apenas um aspecto da tal liberação os interessa. Como dizia um deles, com o olhinho brilhando atrás das sobrancelhas grisalhas:
- Veja você: quando eu era menino, as mulheres tinham que casar virgens. Hoje em dia, qualquer garota  de quinze anos já teve várias experiências sexuais! Eu mesmo...
Não vou dar os detalhes, mas o cara passou os próximos minutos tentando me convencer que já tinha comido várias ninfetas - que ficaram, é claro, encantadas com sua  performance sexual.
Convencidos de que o mundo se tornou uma imensa Disneylândia de mulheres carentes, todos eles me cantam. Não estou escrevendo isso pra bancar a gostosa. Eles cantariam qualquer coisa que aparecesse na frente. Nem importa o sexo. Já fui cantada até por gays.
Eles perguntam se tenho namorado. Eles colocam sua mão boba em meu joelho. Então eu sinto aquele cheiro deles, essa geração toda cheira mal.
Eles com suas carecas de vários tipos e formatos, eles com suas barbas mal-feitas, eles com suas roupas lamentáveis e suas barrigas pendentes, eles com seu mau-hálito crônico ainda se acham extremamente sedutores, com direito a todas as mulheres na faixa dos vinte. E não posso mandá-los à merda. Tenho que dar um sorriso de Mona Lisa e desviar suavemente do seu caminho.

Eles já fizeram de tudo. T-U-D-O, absolutamente; nada do que eu faça e diga tem relevância, à luz de suas façanhas.
É o caso desse aqui que eu vou contar. Cineasta. Fez dois ou três filmes razoáveis nos anos 80 e passou a última década produzindo um fluxo consistente de merda. Hoje em dia, ficou mais difícil para o gênio do celulóide levantar financiamento para seus roteiros mal-escritos.  Então ele se diz vítima de um “assassinato cultural, como o Gláuber”.
Ele coleciona DVDs. Seu diretor favorito é Fellini, e entre os filmes de Fellini o que mais gosta é Oito e Meio. Se identifica com o cineasta interpretado pelo Marcello Mastroiani (morro de rir!)
- Vou colocar pra você assistir.
- Eu já vi.
- Vê de novo, é maravilhoso. Quero te mostrar umas coisas...
- Fica pra outra vez.
Digo isso esperando que não haja outra vez, mas a verdade é que sempre volto. Deve ser o uísque, ele bebe o melhor uísque do mundo.
Também me dá presentes. Claro, sempre coisas velhas ou usadas. Nunca se deu ao trabalho de ir a uma loja e comprar algo especialmente para mim, pensando na minha pessoa, quem sou, do que gostaria. Um meiaoito jamais faria isso, pois vive absorto em seu precioso umbigo. E isso inclui também os salvadores da humanidade, como esse aqui. Foi preso, torturado, trocado, exilado e não sei mais o quê, tudo por amor à Humanidade e ao Proletariado. Mas é incapaz de lembrar o nome da faxineira ou o aniversário da namorada. Vejo ele choramingando no telefone:
- Ah, amorzinho, não fica chateada. Você sabe que eu te amo...
A menina tem minha idade, é lindinha, e ouve as histórias dele em estado de êxtase. E ele, por sua vez, chifra ela sempre que pode. Tenho pena, mas quem manda essa mina ser tão panaca?
Desliga o telefone e continua pregando:
- Essencial para sua formação. Você não quer escrever sobre cinema? (caí na besteira de lhe contar, e desde então tenho direito a intermináveis preleções sobre o assunto).  Não se concebe um crítico que não tenha assistido “Oito e Meio”.
- Mas eu já assisti!
Tinha esquecido, não presta a mínima atenção no que digo. Mesmo assim, continua insistindo para que eu veja o filme com sua bondosa orientação. Invento uma desculpa qualquer e saio lá para fora, com chuva e frio. Tudo é melhor que ouvir suas patacoadas.
Se bem que cinema não é tão ruim como papo de mulher. Não posso mencionar nenhuma mulher famosa e bonita, de qualquer idade, que o olho dele acende:
- Ah, sim, Fulana. Conheci muito...
Podia estar dizendo: “Comi muito...” E o pior é que algumas vezes deve ser verdade. E de repente é uma atriz bacana, por exemplo, que eu admiro... É chato perder seus ídolos.
Aí ele começa a falar da Fulana, conta todos os podres dela, aquelas coisas  que ninguém quer ver expostas: pai alcoólatra, filho problemático, dívidas, vícios...  Diz que pelada nem é essas coisas. E que teve de mudar o número de telefone, porque ela “é muito carente”.
Mulher, pra ele, não é propriamente ser humano.

A verdade é que a geração dele deixou pra minha um monte de merda.
Eu também bebo, também às vezes perco o controle, e digo essas coisas pra ele. E o pior é que sorri, tolerante, e responde:
- É possível. Talvez você tenha razão, quem sabe?
Nada o afeta, ele está acima da minha raiva. E também está disposto a mostrar que tem a cabeça “aberta”. Outro dia cheguei lá e estava enrolando um baseado, oh que revolucionário, um baseado! Disse que tinha comprado especialmente pra mim.
- Não sei se você curte essas coisas...
Fiquei olhando, e de repente me deu pena. Ele pensa que inventou a maconha. Ele pensa que inventou o sexo. Ele pensa até que inventou o cinema.
- Tá bom, enrola unzinho aí pra mim.
Acho que fumei uns três, e fiquei até altas horas conversando. Contei minha vida inteira pra ele. Falei das coisas que fazia aos doze anos, quando morava num apartamentinho da Vila Madalena com minha mãe e ele era o último exilado brasileiro em Paris. E é engraçado, o fumo deve ter desentupido seus condutos auditivos, porque realmente estava me ouvindo. Dava pra ver  pela cara de choque. No fim da noite, notei até uma certa depressão.
Foi aí que resolvi ir embora.
- De jeito nenhum! Você não tem condição de sair na rua!
- Eu tomo um táxi.
(Ah, sim, de vez em quando ele banca o protetor.)
- Já são quase três da manhã. Você dorme no quarto de hóspedes.
- Não vai dar.
- Eu fico acordado com você, então. A gente assiste “Oito e Meio”.
Reprimo um sorriso.
- Hoje não. Fica pra outra vez, tá? Uma outra vez, prometo que venho assistir contigo.
- Jura?
- Claro que juro, pai.
Dou um beijo na sua testa, abro a porta e saio para a noite fria.

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