"He
had used his wealth and his power for what he knew both to be worth;
he had taken honour when it came his way; he had seen men and cities
far and near, and men and cities had stood up and honoured him.
Now he would let these things go, as a man drops the cloak he needs
no longer."
(Rudyard
Kipling, "The Miracle of Purun Bhagat")
A cidade às
sete da manhã: um lugar sombrio, onde as pessoas andam na rua como
sonâmbulos, tentando esfregar da cara o sono e a desilusão...
Hoje vai chover.
Sentada no banco de trás do carro, recolho fragmentos do pesadelo
cotidiano. Pontos de ônibus lotados de gente sombria. Camelôs
armando suas barracas. O trânsito piorando a cada minuto. O caos
nosso de cada dia, se instalando.
Estamos passando pelo Teatro Municipal. Avisto o cartaz na entrada: "Alda
Steiner, a partir de 7 de outubro". Sete de outubro é daqui
a dez dias. Alda Steiner sou eu.
-- Pelo menos nessa encarnação... - resmungo. Teodoro me
olha, surpreso.
-- O que você disse?
-- Nada - respondo, ausente. O motorista parou no sinal fechado em frente
ao Teatro. As belas linhas do edifício ainda lutam com a sujeira
e a degradação do centro da cidade. Pichações
oligofrênicas cobrem suas paredes. Nas escadas, a sujeira se acumula:
folhetos de propaganda, latas vazias de cerveja, jornais...
Em meio aos degraus cinzentos, emerge uma figura colorida.
O carro chega mais perto, e vejo: a figura vaga, de linhas borradas, é
a de uma mendiga. De longe não consigo distinguir seu rosto, mas
noto uma cabeleira negra. As roupas são trapos de uma cor muito
viva, entre o vermelho e o laranja...
-- Que mulher estranha - murmura Teodoro, seguindo a direção
do meu olhar. O sinal se abre, o carro avança, e por um momento
posso ver claramente a mendiga. É uma mulher de meia-idade, imunda.
Seu olhar se fixa no meu. Tem olhos vazios.
Sinto um estranho arrepio, e me encolho no assento. Aperto a medalha que
me pende do pescoço.
-- É italiana?
- pergunta Lucca. Tirou a medalha de mim e está revirando-a na
mão. Parece fascinado. Seus olhos brilham de cobiça.
Ainda deitada na cama, me viro de lado. Tiro a jóia da sua mão,
sem muita sutileza:
-- Nunca soube a nacionalidade dela... -- Foi minha mãe quem me
deu.
-- Então. Sua mãe não era italiana?
O sotaque fica mais carregado quando se interessa por algo e deixa cair
a máscara blasé. Sem responder, olho de novo a medalha.
Dez anos, eu tinha dez anos. Sem motivo ou ocasião especial, ela
abriu a caixa de papelão onde guardava as coisas importantes: cartas
do meu pai, o passaporte, minha certidão de nascimento. No fundo
estava a medalha. Aquilo me assombrou, porque várias vezes, na
sua ausência, eu já mexera na caixa e nunca vira aquela jóia.
-- É nova, mamma? - perguntei, revirando-a entre os meus dedos.
-- É para você - disse ela, sorrindo.
Fiquei olhando, cada vez mais assombrada. Minha?
-- Mas é nova?
-- Imagine, é herança da sua avó.
Quis perguntar, como, herança da minha avó? A nonna não
era paupérrima? Não vivia num povoado miserável da
Sicília? Pelo menos essa era a última história que
mamãe tinha me contado; na penúltima, minha avó era
uma condessa perseguida pelos fascistas. Minha mãe era assim, misturava
as histórias. Melhor nem perguntar mais da medalha, senão
era capaz de inventar uma terceira história.
Estávamos sentadas na nossa cama de armação, no quartinho
de cortiço onde morávamos. Na cômoda ao lado, ficava
a bola de cristal de minha mãe, as cartas encardidas de tarô.
Os miseráveis do cortiço pagavam um dinheirinho para que
minha mãe lesse seu futuro. Ela previa casamentos fabulosos, prêmios
na loteria, sorte no jogo, sorte no amor. Na bola de cristal, enxergava
viagens para terras distantes.
Nunca ouvi ela dizer a um miserável que ele continuaria morando
naquele buraco, esfalfando-se dia e noite, pegando o bonde lotado, lavando
a única roupa para ir trabalhar no dia seguinte, até morrer.
Nunca.
Olhei de novo a jóia e não tive dúvidas: era verdadeira.
O ouro era ouro, os brilhantes brilhantes, e as pedras cor de sangue que
cercavam a medalha eram rubis verdadeiros. Já naquele tempo eu
tinha uma espécie de sexto sentido para essas coisas. Dentro de
cada italiano há um Cellini lutando para sair. Minha mãe
também era assim, só de olhar já sabia: "Banhado
a ouro, sim, mas não é maciço", avisava, devolvendo
o relógio à mocinha, deslumbrada com os presentes do namorado
rico. Com pérolas, nem precisava fazer o teste do dente.
-- Posso mesmo usar? - perguntei.
-- Claro - disse ela - Debaixo do vestido, senão podem roubar...
-- Sim senhora.
-- E não deixe ninguém pegar. Faça de conta que é
a sua alma.
-- Minha alma?
-- Sua alma. A alma, carina, essa coisa que a gente tem aqui dentro, entende?
- e fez um gesto misterioso para o próprio corpo. Belo corpo, minha
mãe era linda. - Isto aqui é só o embrulho. O pacote.
A alma é o que vem dentro.... Você não vai dar sua
alma, não vai vender sua alma. No è vero?
Minha mãe
morreu seis anos depois. Tuberculose. Me empreguei como datilógrafa
num escritório; vendi produtos de beleza de porta a porta; distribuí
folhetos na rua; enfim, dei um duro danado para sobreviver e pagar meus
estudos. Até o dia em que fui parar num grupo de teatro amador.
Como profissional, houve ocasiões em que chorei, de puro ódio
e frustração, por não ter dinheiro para montar uma
peça. Houve ocasiões em que os críticos me cobriam
de elogios, e eu não tinha dinheiro para pagar as contas. Até
encontrar Francisco, muitas vezes fui trabalhar na televisão, só
para pagar as dívidas do teatro.
Nunca pensei em vender a medalha.
-- É verdadeira,
não? -- insiste Lucca, com os olhos cada vez mais faiscantes. Esse
também traz no sangue o amor pelo ouro.
-- Claro. Acha que iria usar uma jóia falsa?
Francisco uma vez mandou avaliar a medalha. O ourives fêz uma proposta
deslumbrante. "Ele disse que é uma raridade", explicou
meu marido, com voz sussurrada. "Deve haver duas ou três no
mundo. Você não devia andar com ela no pescoço, minha
querida..." Não pude explicar para ele: Francisco, você
guardaria sua alma no cofre do banco?
Tão bom, tão afetuoso. O melhor homem do mundo. Não
podia durar muito, claro: um dia, ao voltar do ensaio, encontrei-o morto,
sentado na cadeira de palha da varanda. "Enfarto fulminante",
diagnosticou o médico. "Mesmo se estivesse no hospital, não
poderíamos fazer nada". Tinha quarenta e dois anos.
Já Lucca vai durar até os noventa. Posso até vê-lo
com essa idade: um velho distinto, de cabeça branca e ternos impecáveis,
que passará seus dias tomando vermutes nos bares de Roma... E conservará
esses olhos cruéis.
Recoloco a medalha no pescoço. Levanto da cama, e começo
a me vestir.
-- Já? - diz ele, com voz decepcionada.
Finjo aborrecimento:
-- Pois é... Estou esperando uma visita, daqui uma hora. Negócios.
Não leve a mal, meu querido, mas vou te pedir para ir embora.
Ele sorri. Lucca não tem interesse em brigar comigo. Eu sou seu
passaporte para a fama. Na sua cabeça, os planos estão bem
claros: da minha cama para um bom papel nas novelas, aproveitando o sotaque
italiano e os olhos azuis, o físico de gladiador. E dispensando
talento, claro -- já que ele não tem nenhum.
-- Então já estou indo. Mas você me liga de noite,
não é? - e ele acaricia o meu pescoço.
-- Claro.
Fico olhando pela janela, enquanto ele se afasta pela rua arborizada.
Eu lhe dei o dinheiro para o táxi. Até agora, tenho mantido
Lucca nessa base: gorjetas, pequenos presentes, não precisa trazer
o troco. Vamos ver quanto isso dura...
Me arrumo com cuidado. Quando esse homem chegar, quero estar impecável,
esperando por ele na melhor poltrona da sala.
Ele chega à
uma da tarde. É um homem de estatura média, aspecto cansado,
começando a engordar. Deve ter a minha idade - calculo. Talvez
tenha filhos, também.
-- O senhor quer beber alguma coisa?
Ele pede um café, a empregada traz. Quando ela se retira, faço
sinal para que fale. O homem coloca de lado a xícara de café.
-- Infelizmente, vou ter que desiludir a senhora. Ainda não encontramos
ela.
Ele fala sempre no plural, mas sei que trabalha sozinho. "É
o melhor", me garantiram. "Acha agulha em palheiro. Se ele não
conseguir, ninguém consegue."
-- Note que estou dizendo "ainda". Mas vamos encontrá-la.
Tenho pistas muito boas. -- Nota que não estou acreditando, e avança:
-- Por exemplo, sei onde ela estava há um mês.
-- Há um mês? Onde?
-- Na rua.
-- Na rua onde?
Ele menciona uma das áreas mais deterioradas do centro.
-- Mas o que ela estava fazendo lá?
-- Pedindo esmolas para comprar droga.
Meus olhos se enchem de lágrimas. Fico calada, desmoronando na
frente desse homem que mal conheço. Ele balança a cabeça
em sinal de simpatia:
-- Eu sei que é duro para uma mãe...
-- Mas é seu trabalho, não é? -- digo.
Ele olha para o chão. Depois pergunta:
-- Posso acender um cigarro?
-- Claro.
-- Não tenho dúvida de que é ela. - risca o fósforo
- Mostrei o retrato da sua menina para todas... todas as pessoas do lugar,
entende? Muitos a reconheceram.
-- Ela está se prostituindo para comprar droga?
-- Existe essa possibilidade, sim.
Fico calada. Impossível sofrer mais.
-- Ela nunca procurou a senhora? Quer dizer, para pedir dinheiro?
-- Não. Nunca.
-- É estranho.
Gastei anos construindo o muro entre nós duas: anos de ausências,
de abstenções, de mais-tarde-outra-hora-estou-muito-ocupada-agora.
Quando Valéria fez quinze anos, caí em mim. Tentei conquistá-la.
Ela se afastava, se encolhia feito um bichinho. Trancava-se no quarto
horas seguidas, sozinha ou com amigos que eu não conhecia. Um dia
engravidou. Dezesseis anos. Queria ter o filho, mas nem dizia quem era
o pai.
"Não vou deixar que você faça a maior besteira
da sua vida" disse, incisiva e cheia de sabedoria. Eu mesmo a levei
à clinica. Faltara a tantas reuniões, festinhas de escola,
até aniversários; mas à clínica eu fui. "Um
dia você vai me agradecer", disse, na volta, enquanto ela chorava
no banco traseiro do carro. O muro agora era definitivo: ela passou os
próximos anos sem falar comigo. Afundando, afundando. Quando me
olhava, às vezes, eu não conseguia distinguir o que havia
em seus olhos. Era só indiferença mesmo?
A verdade é que, drogada ou não, Valéria tem a sua
integridade. "Não quero nada de você", disse, claramente,
da última vez em que saiu de um tratamento. "Quero que me
deixe em paz". Quinze dias depois, sumiu. Não levou sequer
as roupas.
E agora ela mendiga. Como aquela mulher nas escadarias do Teatro.
-- Eles sempre procuram os parentes para pedir dinheiro - divaga o homem
-- É o padrão...
-- O senhor tem alguma idéia de onde ela está agora?
-- Tenho algumas pistas. Estou procurando.
-- Ela pode estar morta?
-- Eu não considero provável. - Me olha nos olhos, sincero:
-- Francamente não considero. O corpo teria aparecido.
No fim da tarde,
estou de novo no mesmo carro, indo ao Teatro Municipal com Teodoro, o
produtor, no banco da frente.
A única diferença é que já choveu. Mas nuvens
negras ainda pairam no céu, ameaçando despejar mais água.
Teodoro não pára de falar:
-- Estreamos em dez dias. Será um sucesso, você vai ver.
Não respondo. Se for um sucesso, certamente o mérito será
todo dele. Eu não queria fazer essa peça... Estou farta
de textos "leves e descompromissados". Nunca me imaginei fazendo
Feydeau. E neste teatro, ainda por cima! Mas o secretário da Cultura
era um velho amigo de Francisco; meu nome abriu outras tantas portas,
e aqui estamos, instalados no Municipal. Os jornais já começaram
a falar. "Está bem que ela seja uma grande atriz, mas, francamente,
uma comédia de bulevar no Municipal! Que desperdício do
dinheiro público!"
No fim, todos eles virão à estréia, claro, e formarão
uma longa fila na porta do meu camarim, brigando para dizer algumas palavrinhas
amáveis. Depois, se desmancharão em elogios no jornal. Aos
cinquenta anos, trinta de gloriosa carreira, sou uma espécie de
monumento intocável. Não sou mais uma atriz. As pessoas
não vêm mais ao teatro para ver minhas personagens. Vêm
ver Alda Steiner.
Já posso ver as críticas impressas à minha frente,
com o seu cortejo de clichês. Vão dizer que eu dei "nova
vida a um texto cansado".
-- Ah, programei uma entrevista para hoje - diz Teodoro, num tom casual.
Finge até olhar para os meninos do farol que pedem esmolas. Franzo
as sobrancelhas:
-- Ah, Teodoro, por favor, não!
-- É só uma, Alda. A gente tem que fazer um pouco de publicidade,
não é? Ainda mais para esse jornal... Cita o nome do diário
- É rapidinho, a menina entra depois do ensaio, faz meia dúzia
de perguntas. Coisa de uns quinze minutos.
Não respondo.
-- Você dá aquela sua entrevista de sempre - diz ele, piscando
o olho. É uma velha piada entre nós. Como muitos atores,
tenho uma entrevista pronta para todas as ocasiões, com as anedotas
encaixadas nos lugares certos. Os fatos e datas já vêm digeridos
para aqueles repórteres jovens, que não conhecem a carreira
do monumento nacional, nem tiveram tempo de consultar o arquivo. Com o
tempo a entrevista é decorada, sai sozinha. Ninguém precisa
inventar coisas novas.
Nem eu, nem eles.
-- Teodoro, hoje eu não quero. Não quero dar nem aquela
entrevista de sempre.
-- São só uns minutinhos. Eu aviso a moça que você
está cansada - diz ele, enquanto o carro manobra para nos deixar
à porta do teatro.
Abro a boca para replicar, mas me calo ao ver a figura da mendiga, de
novo nas escadarias. Está ensopada, mas não se moveu do
lugar que ocupava de manhã. E me encara, de novo. Correspondo ao
olhar e vou subindo a escadaria. Ao passar pela mulher, ela me agarra
a mão.
Eu devia me desvencilhar; mas, em vez disso, correspondo ao aperto. Sinto
o contato da mão - estranhamente quente e seca. E então,
ela diz:
-- Venha ficar aqui...
Sua voz é rouca e felpuda, parece ter saído do fundo de
uma caverna. Fico olhando-a, assombrada. Teodoro me alcança e me
puxa pelo braço. A mulher solta a minha mão. Entro no teatro
com a impressão de que algo estranho e primitivo se mexeu, bem
no fundo de mim.
-- Alda?
O ensaio já terminou, os outros atores se dispersaram e eu - a
única que tem camarim - estou me olhando no espelho. Meu artificioso
traje já está pendurado em um cabide, no fundo do cômodo.
Retomo meu lugar em frente ao espelho, que me devolve uma face cansada.
As rugas, pela primeira vez, não parecem marcar nenhuma expressão
- e sim dissolvê-la.
-- Alda? - batem de novo à porta do camarim.
O que está acontecendo? Fiz a peça toda mecanicamente; apenas
um quarto de mim aflorava à superfície, e eu representava,
sim, representava como uma boneca de cera pintada. Dava as réplicas,
fazia as expressões corretas, com uma perfeição de
mecanismo de corda. Sem alma.
O interessante é que ninguém percebeu.
-- Alda?
-- Teodoro?
-- A moça do jornal está aqui...
Suspiro. Passo as mãos pelo rosto, voltando à superfície:
-- Um minutinho.
Abro a porta do camarim, e Teodoro está ali à minha frente,
naquela perpétua animação.
Será que ele nunca fica chateado? Aborrecido? Quieto?
Ao seu lado, uma moça magrinha, de cabelos oleosos e ar reverente,
aguarda uma apresentação.
-- Essa é a Rosana - diz Teodoro, sorridente. Rosaninha, Alda Steiner...
- Aperto a mão que me é estendida. - Querida, não
quero te apressar, mas seria melhor se você fizesse sua entrevista
rápido. Com essa correria, a Alda está tão cansada...
Uma expressão decepcionada se espalha pelo rosto da moça;
ela tenta bravamente ocultá-la.
-- Vou tentar ser breve - promete.
-- Entre, Rosana - digo, entreabrindo a porta. Ela penetra no camarim,
cautelosa. Não é tão moça assim, deve ter
uns trinta anos.
Fecho a porta.
-- Sente aqui neste sofá. Quer alguma coisa? Uma água? Uísque?
Ela recusa, num murmúrio. Sirvo para mim mesma uma dose generosa.
São mais de cinco horas. Alcoólatras são aqueles
que bebem de manhã.
-- E então, Rosana? - e a encaro, com uma expressão absolutamente
neutra. Nenhuma amabilidade, nenhum sorriso ou comentário para
facilitar as coisas. Mas ela deve ter vindo preparada. Tenho fama de "difícil".
A moça liga o gravador, e, ao mesmo tempo, puxa o bloco de notas.
Tosse, uma tossinha nervosa:
-- Antes de mais nada, Alda, eu gostaria de perguntar: por quê Feydeau?
Fico olhando-a por alguns minutos, com a mesma expressão. Estou
pensando na mulher da porta do teatro. "Venha ficar aqui", ela
disse. "Venha ficar aqui". As palavras se repetem infinitamente
na minha cabeça, como um cântico. Um mantra. Houve época
em que o budismo me tentou.
-- E por que não Feydeau?
Ela sorri, aprovando. Continuo:
-- Aliás, pensando bem, por que não Branca de Neve e os
Sete Anões? Dá tudo na mesma, não é, Rosana?
O sorriso continua, mas já há uma certa apreensão
no seu rosto.
-- Talvez uma montagem tradicional de Shakespeare? Hein? Ou uma mais inovadora,
com gelo seco no palco? E por que não uma ópera? Eu nunca
cantei, mas hoje em dia isso não é problema.
O sorriso se desfêz. Ela balbucia:
-- Você quer dizer... Ah, já entendi: qualquer texto, bem
montado...
-- Não importa se for bem montado - minha voz soa cortante O público
não percebe a diferença.
A boca dela se abre vários centímetros. Vou dar a essa garota
uma experiência inesquecível.
-- Eu posso fazer qualquer coisa - digo, engolindo um belo gole de uísque.
-- Claro - ela concorda, nervosa.
-- Dá tudo na mesma - afirmo.Você é jornalista, não
é, Rosana? Bem, um dia você vai chegar à redação,
enfiar o papel na máquina... ah, desculpa, hoje em dia vocês
usam computadores... enfim, um belo dia você chega ao jornal, liga
o computador e percebe que dá tudo na mesma.
Ela definitivamente perdeu a fala.
-- Nesse dia - acrescento, com um sorriso - espero que você já
tenha construído uma bela carreira. Eu construí. Estou vivendo
dela.
-- Mas...
Ela vai falar. E sinto que a pergunta não será um clichê.
Esplêndido!
-- Mas, Alda, desculpe, sempre ouvi dizer...
-- Ouviu dizer o quê?
-- Que você não precisa disso para viver - diz ela, avermelhando
até as orelhas - Quer dizer, seu marido era rico...
-- Com certeza eu não ganhei meu dinheiro no teatro - confirmo,
com uma risadinha malévola. É verdade, Rosana. Eu tenho
dinheiro. E sei administrar. Não precisaria trabalhar, se não
quisesse.
-- Mas então por quê? - pergunta ela. - Por que montar Feydeau
aqui, no Teatro Municipal?
-- Certo, Rosana, você aprendeu direitinho a sua lição
- dou outra risada, me sinto cada vez mais sádica - O Municipal
é solo sagrado, certo? Não se traz comédia de bulevar
para cá, não é?
-- Não foi isso que eu quis dizer...
-- Escute aqui, Rosaninha - digo, me aproximando dela -- se você
faz teatro em cima de caixotes, os caixotes também são solo
sagrado. Todo palco é solo sagrado. Entendeu?
-- Claro.
-- E provavelmente o trabalho de qualquer grupo amador, com caixotes e
tudo, é mais importante do que eu faço aqui, ou do que fiz
nos últimos... dez anos.
-- Você podia tentar algo diferente -- ela reage.
-- Estou muito velha para subir em caixotes.
-- Então, por que não larga o teatro?
Sacudo as pedrinhas do gelo no copo.
-- Para fazer o quê? Viajar? Já viajei pelo mundo inteiro.
Ficar em casa, vendo televisão? Fazer tricô para os netos?
Eu não tenho netos - concluo, amargurada.
"Produtores e diretores aparecem com as suas idéias, e eu
sempre me deixo levar. Eles dizem que dessa vez vai ser diferente, que
vamos dar 'nova vida a um texto cansado'... Já ouviu essa expressão?
E lá vou eu de novo. Em geral, só vou me dar conta da da
irrelevância do que estou fazendo lá pela primeira semana
em cartaz. Mas os prazos estão diminuindo. Agora, por exemplo:
nem sequer estreei e já me sinto uma idiota. Você me pegou
num péssimo momento, Rosana... Péssimo. É a idade.
Quando a gente envelhece, as ilusões vão encolhendo. Você
sabia disso?"
-- Não - disse ela, com os olhos pregados em mim. Quer dizer, nunca
pensei no assunto.
-- Muito cedo para pensar. Você está numa ponta do caminho,
eu estou na outra. Lá longe. Você mal consegue me enxergar...
Mas chega um momento, Rosana, em que você percebe que toda a sua
vida, as coisas que você fez, não são mais importantes.
Já foram. Não são mais.
E continuo, mais baixo:
-- É como uma roupa velha, que não te serve mais. Seria
preciso jogar fora...
Fico alguns momentos em silêncio. O camarim está tão
quieto, que poderia se ouvir uma agulha caindo. Tento precisar algo que
ouço ao longe, essa música, esse mantra...
-- Mas então, por quê Feydeau?
Não é possível, ela voltou à pergunta inicial!
Como num círculo. Me volto, irritada:
-- Por quê Feydeau? Feydeau é uma bosta, Rosaninha. Teatro
para a burguesia rir e depois sair para jantar. Eu já fiz coisas
que fariam essa montagem chorar de vergonha. Mas hoje não há
nada de tão bom por aí -- no mercado, como vocês diriam.
A menos que eu volte aos caixotes. Eu estava sozinha em casa, entediada
e angustiada, e me convidaram para fazer Feydeau. Você não
iria? E por quê não? Já ficou sozinha em casa, olhando
pra cara do seu gigolô? Não? Quem sabe um dia você
chega lá.
"Aqui no teatro, pelo menos eu estou divertindo as pessoas. Venha
à estréia. Vou te fazer morrer de rir."
Ela me olha, chocada. De repente, pega as suas coisas e levanta-se.
-- Já vai? pergunto, num tom de voz amável.
-- É, já vou.
-- Não quer saber mais nada sobre a peça? Sobre a minha
carreira? A história do teatro nacional?
-- Não.
Aperta o gravador nos braços, e pergunta:
-- Você não quer que isso saia no jornal, não é?
-- E por que não?
-- Se você não quiser, eu não publico.
-- Eu sou a favor da liberdade da imprensa - digo. E abro a porta para
ela sair. Depois, fico de novo me olhando no espelho.
Este rosto parece me dizer cada vez menos.
Na saída, nem preciso olhar para a mendiga. Sinto sua presença.
Vou para casa e me tranco no quarto. Digo a Lucca que hoje não
posso ficar com ele, não hoje...
No meio da noite, me levanto, vou até a penteadeira e me olho no
espelho. Não resta dúvida: algo se dissolve em mim.
Nos dias que se seguem, enquanto a estréia vai se aproximando,
a imagem no espelho se torna cada vez menos nítida. O único
ponto visível é a medalha pendurada em meu pescoço.
Sua cor de ouro vermelho, suas bordas de rubi.
A medalha que minha mãe me deu. Ela disse que era minha alma.
Será que eu ainda tenho uma alma?
Um dia antes da estréia, seguro entre os dedos um cartãozinho
amassado. Disco o número do detetive, outra vez. A sua voz é
educada, gentil:
-- Não, minha senhora, ainda não tenho novidades. Tenha
calma, paciência...
Mal ouço a minha voz, quando dou uma réplica que nem sei
qual é. Ele responde:
-- Seria preciso se infiltrar entre essa gente, procurar... Estou estudando
a possibilidade.
Desligo o telefone. Minha memória está se apagando, mas
três coisas ainda restam nela.
Uma é a imagem de Valéria -- mais próxima do que
jamais esteve, em todos os anos que vivemos juntas.
A outra é a mendiga, que não arredou pé das escadas
do Municipal. E que cada dia me olha com mais intensidade.
E a última é o texto de Feydeau.
Quando a cortina
cai, os aplausos começam, frenéticos. Muitos aplausos. Faço
todos os gestos que se espera de mim: volto à cena, agradeço,
volto outra vez, converso com as pessoas que se apinham no camarim. E
vejo Rosana, a jornalista, num dos corredores:
-- Você não publicou aquela entrevista - digo.
-- Não tive coragem - responde ela, embaraçada. Disse ao
editor que você tinha cancelado...
-- Mas não jogou a fita fora.
-- Não.
-- Guarde. Pode precisar.
Ela me olha surpresa, tenta falar alguma coisa, mas alguém já
entrou na sua frente. Depois, aos poucos, o teatro vai esvaziando. Digo
a todos que tenho muita dor de cabeça, que a comemoração
da estréia fica outro dia. Enquanto falo, seguro firme a medalha.
Até que fico sozinha.
Saio pela porta da frente e encontro a mendiga. Continua sentada, mas
há algo diferente em seus olhos, que ergue para mim. Estão
vivos, animados. São os olhos da mulher que um dia eu fui. Nos
olhamos por vários segundos. E, finalmente, eu executo um singelo
ritual, que estive planejando por todos estes dias.
Entrego em suas mãos a medalha.
No momento seguinte, estou sentada nos degraus do teatro; meu corpo está
imundo, meus pés em chagas, e minha roupa é um amontoado
de trapos vermelhos. Lentamente, me levanto, e fico olhando a mulher bem-vestida
que se afasta do Teatro -- enquanto me preparo para trilhar, descalça,
as ruas da cidade.
FIM
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