Brinde para os leitores da página: um conto do novo livro de Dóris Fleury, "A Maldição das Cadeiras de Plástico".

A MALDIÇÃO DAS CADEIRAS DE PLÁSTICO

- Não tem nada pra comer aqui.

- Pede o camarão.

- Vem encharcado de óleo.

- (...)

- Nem lugar pra sentar tem.

- Senta aqui. Nessa cadeira.

- Você chama isso de cadeira?

- Pelo amor de Deus, Paulo. Senta, vamos resolver logo esse assunto.


No primeiro ano em que eles vieram, a praia era deserta. Só umas casinhas de caiçara. Pescadores. Assembléia de Deus. Desconfiados daquela moçada que descia da cidade grande, fumava maconha e tomava banho sem roupa.

Ela tinha trazido livros da faculdade. Ele só trouxe um short e duas camisetas. Comiam peixe e banana. Dormiam na tenda ou à luz das estrelas, de mãos dadas. Ou não dormiam. E no dia seguinte, bêbados de sono, cochilavam na areia da praia, entre mata, montanha e mar.

Branquinha, indefesa, numa dessas dormidas ela se queimou feio. Ele a levou ao Pronto Socorro da cidade mais próxima. Bolhas enormes, depois, descascaram seu rosto.

Ele a achava linda.


- Sabe qual é o problema? Isso aqui virou a galinha dos ovos de ouro. Estão quase matando a galinha. Qualquer imbecil acha que pode vir aqui, abrir uma espelunca, servir uma porcaria de comida, sujar a praia com o lixo e tudo bem, é festa, beleza, turista é pra ser explorado mesmo...

- Paulo, vamos chamar a garçonete?

- Olha só esse lugar. Olha o cardápio. Pizza de calabresa, meia catupiry... - Atirou o cardápio para cima da mesa, enojado - Imagina o que não deve ser essa pizza!

- Vocês vão querer o quê?

- Tem camarão?

- Camarão acabou - diz a garçonete, com os olhos postos no infinito. É magra, baixinha, morena, os cabelos alisados à força, tintos de cor de gema de ovo.

- Pescada tem?

- Vão querer frita, ou ensopada?

- Paulo - repete a mulher, pacientemente - Você prefere pescada frita ou ensopada?

- Sei lá o que eu prefiro... Não tem mais nada?

- O senhor olha o cardápio - sugere a garçonete, olhando a mesa ao lado, onde um cliente lhe faz sinal - Eu sou nova aqui, comecei ontem.

Paulo está mudo de indignação.


Na terceira vez em que vieram, já havia casas de veraneio, espalhadas pelas ruas sem calçamento. Compraram um terreninho e decidiram construir.Sem dinheiro, a obra parou no verão.

Em abril, voltaram para terminar a casa. Em julho, trouxeram um bebê loiro e branquinho como a mãe. Ela tinha tanto leite, que ajudou a amamentar uma caiçarinha faminta da vizinhança.

Da sétima vez em que vieram, trouxeram mais um bebê. Na rodovia que levava à praia, começavam a aparecer cartazes: lotes à venda, corretores de plantão. O mais velho achou uma concha na praia, que trouxe para casa e depois perdeu. Devia ter bicho morto, porque em dois dias a casa começou a feder. A família passou horas procurando a maldita concha. Tinha escorregado para o ralo do banheiro.

Mais alguns meses, e um prédio começou a ser edificado na encosta do morro. As falhas na verdura da mata já eram evidentes.

Na décima-segunda vez, ela veio sozinha. Precisava de tempo e sossego para redigir um trabalho - coisa impossível em São Paulo, com a balbúrdia das crianças, perguntas da empregada, telefone tocando. O marido, depois de muita discussão, concordou em cuidar dos filhos.

Chegou, desarrumou as malas, abriu as janelas. No chão, catou um pedaço de Lego, que o menor deixara por ali. Ao levantar-se, olhou a praia e notou a sujeira: uma lata aqui, um papel ali. A prefeitura não limpava. Falta de verba.

Foi para o escritório e trabalhou meia hora, até o telefone tocar. Era o marido perguntando das aspirinas. O caçula estava com febre.

Não parou de ligar, até ela voltar.


- Você viu só essa garçonete? Viu?

- Vi, Paulo, vi. Não adianta brigar.

- Eles têm tanto preparo pra abrir um restaurante quanto eu pra dirigir usina nuclear. É um povo escroto, vem de São Paulo querendo ganhar uma grana rápida... E olha os preços nesse cardápio. Que absurdo, meu Deus! Quando eu lembro que a gente comia quase de graça, aqui...

- É, em mil novecentos e bolinha. Esquece, isso acabou.

- Só querem explorar, é impressionante.

- Nem tudo é exploração. O pescado ficou mais difícil mesmo.

- Porque eles pescam sem controle... Esses caiçaras...

- Não são os caiçaras, você sabe muito bem.


Lá pela décima-quinta temporada, os caiçaras, expulsos da praia, estavam limpando os quartos das pousadas; vendendo bananada nos congestionamentos de feriado; ou abrindo barraquinhas na praia, onde as campanhas anti-poluição não conseguiam impedir que os turistas jogassem latinhas. Naquele ano, o cachorro da família veio junto e sumiu. As crianças ficaram inconsoláveis.

Na vigésima temporada, comemoraram a entrada do filho mais velho na faculdade. Assim que o resultado saiu no jornal, o pai, entusiasmado, comprou muita cerveja, dois quilos de camarão-pistola. Ela fez camarão com leite de coco. Quando a família sentou para almoçar, olhou para o filho risonho - e lembrou que a faculdade ficava a trezentos quilômetros de casa.

Na vigésima-quinta temporada, finalmente instalaram um ar-condicionado na casa. Mesmo assim, ela notou que o marido de vez em quando sumia. Um dia o viu telefonando de um orelhão. Tinha um ar ausente. Quando inventou de subir a serra no meio das férias, pretextando serviço, ela teve certeza. Chamou na chincha. Ele chorou, disse que era uma coisa passageira. Ela era a mulher da sua vida.

Na temporada seguinte ele já tinha celular. E ela não teve dúvidas em abrir a conta. O mesmo número se repetia, milhões de vezes.

Foi também nesse verão que a praia pela primeira vez ganhou bandeira vermelha da Cetesb. Imprópria para banho. Coliformes fecais. Falta de saneamento básico.

Ela podia ter se juntado à Associação dos Moradores - um pessoal simpático, ecológico, decidido a salvar a praia. Ela podia fazer terapia de casal, como o marido, arrependido, sugeriu. Mas sentiu um enorme cansaço.

Sei lá, nem era tanto cansaço. Mais uma preguiça.

 
- E esse pessoal que fica aí, derrubando palmito...

- Um horror. Mas é a pobreza, né, Paulo.

- E essa porcaria desse restaurante, é pobreza também?

- Não. Aqui é exploração mesmo, concordo.

- O senhor já escolheu? O dono mandou avisar que o camarão chegou.

Ele faz um ar resignado. Ela conhece essa cara.

- Pode ser o camarão, vai... Frito.

- Tá bom, frito.

A garçonete se retira e ele faz uma tentativa de humor:

- Com coliformes fecais.

- Pára de choramingar, você adora camarão frito.

- Pode ser. Mas olha onde estou comendo o camarão. Nessa porcaria desse restaurante xexelento, com parede de cimento, chão imundo e essa maldita... essas malditas... sabe o que me dá mais raiva, Irene?

- Sei, Paulo, sei.

- É isso mesmo. As cadeiras. Essas malditas cadeiras de plástico brancas. Tenho um horror disso, um nojo, um pavor, um... não sei nem te explicar!

Paciente como mãe, ela deixa que ele exploda. Abre a garrafa de cerveja. Ele toma o primeiro gole. Fica mais calmo. E ela então estende a caneta.

- Assina, Paulo, assina logo. A gente vende, racha a grana, fecha o divórcio. E você nunca mais precisa voltar aqui. Nem sentar nessas cadeiras de plástico.
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