Nasci
em torno das fogueiras. Cresci cercada pelos lobos.
No fim, éramos só eu e meu pai. Com o tempo, nossa aldeia
foi se dispersando; as mulheres morreram, as famílias acabaram, e
os homens - jovens e velhos - foram caçar nas montanhas. Depois disso,
os lobos começaram a rondar a cidade vazia, onde as casas se esboroavam
e o mato invadia tudo. Veados e coelhos corriam pela rua principal, e a
praça transformou-se em território de caça das alcatéias.
Os homens colocavam suas trouxas nas costas e partiam vagarosamente, sem
olhar para trás. As mulheres tinham sido mortas. Solteiras, amanheciam
em suas camas com as gargantas cortadas; casadas, morriam com uma pancada
na cabeça, enquanto lavavam as roupas da família no córrego.
Ou eram simplesmente abatidas a bala, com um tiro certeiro vindo da floresta.
Em vão os homens tentavam protegê-las. Acabavam enterrando
as mulheres, impotentes, e se iam. Sem uma mulher - diziam - não
faz sentido ter casa. Só as mulheres sabem aquecer o lugar, cuidar
das roupas, da comida. Sabem cantar velhas canções, para que
os homens se lembrem de dias melhores. Os dias em que não haviam
tribos enlouquecidas nos rondando.
Assim todos partiram; mas meu pai ficou. Achava que eu corria menos perigo
sozinha com ele, na aldeia. Vivíamos ali tão quietos, tão
esquecidos do mundo, que nunca chamaríamos a atenção
dos Assassinos. Além do mais, eu era muito jovem - quando a última
família deixou a aldeia, nem tinha visto meu primeiro sangue.
Ficamos ali, e o tempo foi passando. Meu pai criava galinhas, plantava batatas
e feijões; tinha também uma horta, e eu o ajudava a cuidar
da terra. Nos fins de semana, atrelávamos a charrete e íamos
vender nossas coisas na feira da cidade mais próxima. No inverno
-- a cada ano mais gélido -- ficávamos trancados em casa,
em volta da lareira. Meu pai me falava dos tempos em que havia bisões
da neve, e me mostrou algumas figuras. Eles acabaram, disse, muito triste.
Está tudo acabando, menos os Assassinos. Eles se multiplicam.
Eles e os lobos - pensei.
Ainda menina, antes que todos partissem da aldeia, eu ouvira histórias
sobre os Assassinos. Histórias de gelar o sangue. Relatos de famílias
inteiras trucidadas sem nenhum motivo aparente. Nem mesmo a crueldade. A
morte era rápida e muitas vezes, indolor. O alvo eram sempre as mulheres.
Só matavam os homens se estes tentassem defender suas mães,
filhas e esposas. Senão, eliminavam apenas as mulheres e se iam.
Eram bandos inteiros de homens fortes, barbados, vagando como nômades
através das florestas e montanhas desoladas de nosso país.
Quem os vira de perto afirmava que quase não falavam.
Era como se o seu objetivo fosse só aquele: a morte. Eles nem roubavam
as casas atacadas. Meu pai não gostava de falar no assunto; mas,
de raro em raro recebíamos uma visita de uma família desgarrada,
fugindo dos Assassinos. Eles nos diziam que as tribos de olhos frios, que
matavam as mulheres, estavam aumentando. Havia mais deles, agora. Era como
se brotassem da terra. Havia tantos, que pareciam capazes de dar cabo de
todas as mulheres do mundo.
E as mulheres, de fato, andavam cada vez mais escassas.
Eu notava meus quadris se arredondando, os seios crescendo. Era uma mulher
agora; talvez uma das últimas. Meu sono começou a ser perturbado
por um estranho ruído, que me acordava no meio da noite. Um ruído
baixo, seco, metálico. Levei dias para identificá-lo: era
o som de um rifle se armando.
Olhava para o canto. Meu pai dormia tranquilamente. Como sempre, seu rifle
estava ao seu lado, já armado e ao alcance da mão. De onde
viria aquele ruído?
Meu pai dizia que minha mãe morrera de febre, quando eu era pequena.
Mas eu sabia que ele estava mentindo: ela também fora assassinada.
Talvez tivesse sido uma das primeiras. Os Assassinos tinham surgido nos
últimos vinte anos, vindos não se sabia de onde, como uma
praga.
Eu andava pelos quinze anos quando, uma noite, fui despertada por pancadas
na porta. Meu pai empalideceu, agarrou a arma e espiou pela janela. Disse
simplesmente:
-- São eles.
Na verdade, eram só dois. Arrebentaram a porta a pontapés,
e lançaram-se sobre mim. De olhos fechados, aterrorizada, fiquei
esperando o clique da arma que ouvira em meus pesadelos. Em lugar dele,
o que veio foi um som surdo, e algo mole e pesado caiu em cima de mim. Abri
os olhos. Meu pai havia matado um dos homens, com uma pancada na cabeça.
O outro ainda conseguiu lhe acertar um tiro de raspão, antes de fugir
- o alvo era eu. De qualquer forma, meu pai se ferira no braço, e
tive algum trabalho para limpar sua ferida e enfaixá-la. Ele gemia
baixinho, aterrorizado - já era muito velho.
Depois que ficou mais calmo, preparei uma sopa e fiz com que a tomasse.
Quando terminou o prato, eu disse:
-- Pai.
Ele me olhou.
-- Eles vão voltar.
-- Não. Não voltam. Ficaram com medo - afirmou. - Eu matei
um deles.
Não disse nada, mas sabia que estava errado. Aqueles homens não
tinham medo da morte. O sobrevivente só fugira porque não
me conseguira me pegar. Fora buscar reforços. Outros como ele estariam
de volta na manhã seguinte -- talvez até antes. Viriam me
matar. E matariam meu pai, se me defendesse.
Quando ele finalmente caiu no sono, agi imediatamente. Peguei meu casaco
mais quente, as botas para a neve, fósforos, alguma comida. Fechei
a porta e saí para a rua.
O frio lá fora era glacial, mas eu já estava acostumada. Passara
muitas noites ao relento, nas ocasiões em que os Assassinos rondavam
nossa aldeia. Não era a primeira vez que fugira deles, e sabia os
truques de sobrevivência - as cavernas onde me esconder, os pequenos
animais que podia caçar, como acender uma fogueira e afugentar os
lobos.
Dessa vez, entretanto, não pretendia voltar para casa. Nunca mais.
Estava farta de viver com medo. Ouvira alguns sobreviventes falarem, aos
cochichos, sobre as mulheres que se organizavam em grupos armados, entrincheirados
nas montanhas, prontos para enfrentar os Assassinos. Os homens balançavam
a cabeça, desaprovando. Se seus maridos e filhos não podiam
defendê-las, como elas, sozinhas, conseguiriam? Quanta insensatez.
Deviam ter sido mordidas pelos lobos, e contaminadas pela loucura que às
vezes matava matilhas inteiras.
Mas eu nunca ouvira dizer que os Assassinos tivessem matado uma daquelas
mulheres. Além disso, queria vê-las. Sim, queria ver outras
mulheres: há tantos anos não encontrava uma! Sentia saudade
das suas vozes doces, dos seus cabelos compridos. Do cheiro diferente que
tinham.
Quanto ao meu pai, estaria mais seguro sem mim.
Caminhei pela noite
ouvindo, ao longe, o uivo dos lobos. Carregava uma tocha em minha mão
para afastá-los; mas, na verdade, não estava com medo deles.
Só os Assassinos me preocupavam.
No meio do dia seguinte, o terreno começou a mudar. O solo tinha
um aclive suave. Sabia que tinha chegado ao sopé das montanhas
-- mas ainda tinha muito o que andar. Ao anoitecer, encontrei uma caverna.
Entrei, acendi uma fogueira na entrada, e comecei a mastigar minha ração.
Estava exausta, e o calor da fogueira, aliada à agradável
sensação do estômago cheio, me fez cair no sono quase
que imediatamente. Acordei muitas horas depois, com a sensação
de que alguém me observava.
Olhei para a boca da caverna. Os olhos que me espiavam, por trás
da fogueira, eram amarelados, fixos, e tinham uma estranha expressão.
Eles me olhavam sem medo, com curiosidade. Era um olhar quase amistoso.
Fiquei ali, imóvel, até que o lobo deu as costas e se foi.
Depois, caí no sono outra vez.
No dia seguinte, consegui matar dois coelhos. O solo estava se tornando
íngreme, e eu já fazia planos para encontrar a aldeia das
mulheres. Mas minha sorte acabou no outro dia, quando não encontrei
nenhuma caça. Nos dias seguintes, continuei sobrevivendo apenas
das minhas raízes. O frio piorava, e o ar se tornava rarefeito.
A comida acabou. Dois ou três dias terríveis se seguiram;
mas continuei andando, apesar da fome. Sabia que, se parasse, morreria.
Às vezes avistava, ao longe, vultos de pequenos animais que corriam.
Mas não tinha forças para alcançá-los. Eram
muito ariscos, como se vivessem em contato com o homem. No quarto dia,
estava cambaleando pela neve, quando ouvi um ruído esquisito, logo
à minha frente. Fui olhar: era uma toupeira, presa numa armadilha.
Meu coração deu um salto. A armadilha significava que alguém
andava por perto -- um caçador. Eu sabia que os homens desgarrados,
e as mulheres das aldeias, estavam mais próximos ao cume da montanha.
O dono daquela armadilha podia ser um Assassino.
Não que eu tivesse escolha: mesmo que fosse chamar sua atenção,
precisava daquela caça. Soltei delicadamente a toupeira, matei-a
com uma pedrada na cabeça e fiz uma fogueira para cozinhá-la.
Foi quando estava descansava perto da fogueira, à noite, depois
de comer, que os lobos apareceram.
Devo ter cochilado um pouco, e a fogueira se extinguiu. O frio me despertou,
e eu os vi à luz das poucas brasas restantes. Quatro ou cinco deles
estavam à minha volta, imóveis.
"Vou morrer", pensei. Era uma daquelas situações
em que não há nada a fazer: nenhum estratagema que eu pudesse
inventar, nem toda a minha força e agilidade, me livrariam daqueles
lobos. Eles me rodeavam num círculo de ferro. Fechei de novo os
olhos, e esperei o ataque.
Nada aconteceu.
Abri de novo os olhos: lá estavam eles. Não pareciam ameaçadores.
Tranqüilos e imóveis, me olhavam com a mesma curiosidade daquele
outro, na caverna.
Me ocorreu que, talvez,
estivessem sem fome. Os lobos só atacavam homens quando estavam
famintos, dizia meu pai. Além do mais, era provável que
nunca vissem homens, nem os considerassem suas presas.
Lembrei da toupeira. Cautelosamente, me movendo com extrema lentidão
e cuidado, peguei os seus restos. Sem movimentos bruscos, ofereci-os ao
lobo que estava mais próximo de mim (um que tinha olhos amarelados.
Talvez fosse o meu amigo da caverna, no outro dia.)
Ele cheirou a toupeira, ganiu sem muito entusiasmo e voltou a fixar seus
olhos em mim. Os outros também continuaram no mesmo lugar.
Aos poucos, foram se agachando em torno da fogueira, assumindo posições
de descanso e adormecendo. Só o de olhos amarelados continuou acordado,
também agachado no chão, me olhando. A fogueira quase apagada
reavivou-se um pouco, e nos deu um calor agradável. Mais de uma
hora depois, o sono me venceu.
Antes de dormir, fiz algo estranho: estendi minha mão para o lobo
que continuava acordado, e acariciei sua pelagem macia e espessa, em volta
do pescoço. Ele lambeu a minha mão.
No dia seguinte,
ao acordar, pensei que sonhara. Os lobos tinham desaparecido. Mais neve
caíra, não havia nenhuma pegada, a fogueira se extinguira...
Mas então vi os restos da toupeira semi-enterrada na neve, e me
convenci que não havia sonhado.
Levantei-me com dificuldade, estendi os músculos rígidos,
e continuei andando.
Andei muito naquele dia, e encontrei outras armadilhas. Dessa vez, não
havia dúvidas: o caçador estava perto. Achei apenas um coelho
desgarrado numa das armadilhas, mas foi suficiente para alimentar-me.
Quando encontrasse o dono daquelas armadilhas - decidi - explicaria que
as usara apenas para não morrer de fome.
À noite, armei de novo a fogueira, e eles vieram. Eram quatro ou
cinco, de novo. Dessa vez ficaram mais longe, a uma distância respeitosa
do fogo.
Me ocorreu que talvez fossem os únicos sobreviventes de uma matilha.
Mas não pareciam amedrontados ou famintos; tinham o ar satisfeito
de um animal que já caçou. Aproximei-me mais deles. Como
convém a velhos amigos, não se amedrontaram. Agachei-me
a seu lado, murmurando palavras carinhosas, e acariciei outra vez o pelo
do chefe - o de olhos amarelados.
De fato, havia vestígios de sangue em sua boca, no pescoço.
O que caçariam, naquela imensidão semi-deserta? - pensei.
Como animais grandes e fortes conseguiriam sobreviver ali? Só com
toupeiras, coelhos? Era um mistério.
Voltei para a fogueira e dormi. Antes de fechar os olhos, tive a impressão
de que eles uivavam juntos.
No dia seguinte, entrei numa espessa floresta de pinheiros. Ela se estendia
por muitos quilômetros, e era cheia de vida: eu podia ver e ouvir
os pequenos animais passando, e, uma vez, avistei um veadinho correndo.
Foi no meio do dia - deviam ser duas ou três horas da tarde - que
ouvi ruídos diferentes. Sabia que não eram sons de animal.
Lembravam, isso sim, os de uma pessoa se atarefando em volta de uma fogueira.
Senti o cheiro da fumaça, e um arrepio me percorreu.
Era o dono das armadilhas - pensei.
Aproximei-me cautelosomente, procurando ficar sempre atrás das
árvores. Espiei.
De fato, ele estava perto da fogueira. Usava um casaco grosso de peles,
e um chapéu do mesmo material. Outras peles, todas de pequenos
animais, pendiam em varais à sua volta, como se estivessem secando.
E ele mesmo estava costurando peles, com uma grande agulha.
Enquanto fazia seu trabalho, cantarolava. Isso me pareceu bom sinal: não
podia imaginar um Assassino cantando. Quando levantou o rosto, fiquei
surpreendida em ver como era jovem -- no máximo, alguns anos mais
velho que eu. Continuei espiando-o por trás das árvores
enquanto ele afastava o trabalho, tirava carne de uma imensa bolsa e começava
a cozinhá-la numa panela, perto da fogueira. Minha boca encheu-se
de água, ao sentir o cheiro da comida.
Sentia um esquisito prazer em olhá-lo. Observava seus movimentos,
o brilho dos seus olhos negros e líquidos; a barba suave; a boca
macia, que às vezes assumia uma expressão de zanga, como
a de uma criança. No fim da tarde, já decidira que ele não
era, não podia ser um Assassino. Assassinos tinham olhos duros
e frios; Assassinos não acariciavam a cabeça do seu cão
como ele.
Entretanto, no fim da tarde, quando me decidi a aparecer, fiz o possível
para surpreendê-lo. Avancei já com os músculos tensos,
prontos para a fuga. Se ele fizesse qualquer gesto agressivo, correria
em direção à floresta, me confundindo com as árvores
- decidi.
E foi assim que apareci à sua frente. Ele assustou-se, claro.
-- Quem é você? - perguntou, engasgado de susto.
-- Estou procurando a Aldeia das Mulheres - eu disse, em vez de responder.
- Sabe onde é?
Ele me olhou demoradamente, e deve ter achado graça no próprio
susto. Começou a rir:
-- E para quê você quer ir à Aldeia das Mulheres? -
perguntou.
-- Quero morar lá.
-- Você? - disse ele, com um ar de ironia bondosa - Escute, franguinha:
aquelas malucas não precisam de pirralhas como você. Elas
precisam de mulheres grandes e fortes. Já que dispensaram os homens,
têm que se defender sozinhas, entende?
-- Elas não vão me mandar embora - disse eu, teimosamente.
Ele deu de ombros:
-- Você é quem sabe... Mas não fique com essa cara
de condenada à morte. Sente-se. Vou lhe dar alguma comida. De onde
você vem?
Sentei-me ao lado da fogueira e contei-lhe minha história. Ele
ouviu com atenção, e, no final, mais uma vez, tentou me
dissuadir de procurar a Aldeia das Mulheres:
-- Elas são completamente loucas. Ouvi dizer que jogam água
fervendo em todos que tentam se aproximar da cidade. Já imaginou?
-- Mas nunca nenhum Assassino matou uma delas.
Ele meteu os dentes na carne que tinha acabado de tirar da panela:
-- E isso é tudo que importa para você? Sobreviver?
-- Existe alguma coisa mais importante?
Ele foi de novo até a panela, tirou outro pedaço lá
de dentro, e me ofereceu. Comecei a comer imediatamente. Estava com fome.
Quando terminei, olhei para ele, e imagino que meu rosto tivesse uma expressão
culpada:
-- É você quem espalha aquelas armadilhas?
-- Você viu? - perguntou ele - Sou eu, sim.
-- E come tudo o que caça?
-- Não - ele disse, e se aproximou mais do fogo. - Eu uso as peles
deles, entende. Sou peleteiro - é assim que se dizia, antigamente.
Curto as peles, costuro-as e vendo casacos nas aldeias.
-- Tirei alguns bichos das suas armadilhas - confessei, embaraçada.
-- Para comer?
Fiz que sim com a cabeça. Ele suspirou:
-- Por isso eu caçava tão pouco, ultimamente...
-- Posso pagar pelos bichos - assegurei -Posso trabalhar para você,
antes de ir à Aldeia das Mulheres.
-- Não é preciso - disse ele. - Você estava com fome
e não sabia caçar. Eu faria a mesma coisa. E, depois, já
coloquei outras armadilhas.
-- Mas quero pagar o que tirei - insisti.
Ele não queria falar sobre o assunto, mas acabei convencendo-o.
Naquela noite, dormi ao seu lado, perto da fogueira. Na manhã seguinte,
ele me ensinou a curtir uma pele. Prometeu que, mais tarde, me mostraria
como costurá-las.
No outro dia, viajamos. Colocamos todos as suas coisas no trenó
puxado pelo cão, e fomos andando através da neve. Pouco
tempo depois, chegamos a um amontoado de cabanas.
-- São criadores de cabras - explicou o Peleteiro, enquanto nos
aproximávamos - Na primavera, quando as pastagens voltam, eles
levam seus rebanhos para pastar, lá em cima - e apontou para o
cume das montanhas.
-- E no inverno?
-- No inverno, as cabras ficam guardadas nas cabanas, morando com eles.
Dizem até... - e começou a rir.
-- Dizem o quê?
-- Nada - respondeu ele, ainda rindo. - Não são histórias
para uma menina da sua idade.
Quando chegamos às cabanas, os homens todos vieram ver a mercadoria
do Peleteiro. Reuniram-se em volta dos casacos, apontando alguns, discutindo
preços. Eram homens sujos e barbudos, com um ar fatigado; mas,
entre eles, não vi nenhum que tivesse o olhar frio dos Assassinos.
-- Onde estão as mulheres? - perguntei ao Peleteiro, enquanto os
homens examinavam a mercadoria.
Ele passou o dedo pela garganta, num gesto significativo. Senti um arrepio.
-- Todas?
-- Todas. Há uns três anos, quando vim aqui pela primeira
vez, ainda encontrei algumas... Agora estão todas mortas.
-- Se tivessem fugido para a Aldeia das Mulheres - eu disse, provocando-o
para recomeçar a nossa discussão - estariam vivas até
hoje.
-- Pode ser - disse ele - mas vivas para quê? Para passar a vida
inteira trancadas com outras mulheres? Isso é vida?
-- Melhor que ser assassinada.
-- Bobagem. O lugar de uma mulher é ao lado dos homens - afirmou
ele, convicto.
Atendeu ao chamado de um dos aldeões e lhe deu um casaco, guardando
ao mesmo tempo em uma bolsa um lote de queijos. Os aldeões lhe
pagavam em comida, outras roupas, objetos. Um até nos deu um tamborete.
Notei que os homens me olhavam. Um deles chamou à parte o Peleteiro,
e começou a cochichar em seu ouvido. Ele ouviu até um certo
ponto, e depois fez um gesto enérgico com a cabeça. O outro
parecia insistir. O Peleteiro negou mais algumas vezes, até que
o homem foi embora, lançando-me um último olhar.
-- O que ele queria? - perguntei.
-- Queria comprar você - disse o Peleteiro - Ofereceu três
cabras.
Larguei a pele que estava levando para curtir e fiquei olhando-o, horrorizada.
-- Você devia ficar orgulhosa. Separar-se de uma cabra, para esses
homens, é um sacrifício. E ele queria pagar três!
Eu não conseguia dizer palavra.
-- Não se preocupe - disse o Peleteiro. - Eu recusei. Disse que
você era minha mulher. Assim, estará mais segura.
Mesmo chocada com a proposta, senti um calor agradável no corpo.
Ele passou de leve a mão nos meus cabelos, e voltou ao trabalho.
Cobri meu rosto com um capuz e passei o resto do dia ocupada, curtindo
peles. Outros homens chegaram, vindos de uma aldeia vizinha. Compraram
mais casacos. Não havia uma só mulher entre eles.
No dia seguinte, fomos embora.
Fiquei aliviada em
partir. Sentia arrepios, quando me lembrava da proposta do homem ao Peleteiro.
Andávamos mais devagar agora, através da neve, pelas subidas
cada vez mais íngremes. O cão puxava o trenó vagarosamente,
carregado com as coisas que os aldeões tinham dado em troca dos
casacos.
Passamos aquele dia verificando as armadilhas que o meu companheiro deixara
pelo caminho. Quase todas tinham algum animalzinho, que o Peleteiro sacrificava
rapidamente. Sua habilidade me assustou. Uma pedrada na cabeça,
e pronto: estava tudo acabado.
Depois - ele me ensinou - era preciso separar a pele do corpo do animal,
com cuidado para não estragá-la. No fim da tarde, eu já
tinha aprendido a técnica. À noite, estávamos exaustos.
Encarreguei-me de cozinhar a carne e ele comeu, afirmando que estava ótima.
-- Muito melhor do que a minha - afirmou - Não sou bom cozinheiro.
Sentamo-nos perto da fogueira, e ele me ensinou um jogo de cartas. Jogava
com um baralho velhíssimo, no qual as cartas rasgadas ou danificadas
tinham sido substituídas por gravuras coloridas, com estranhas
figuras.
Estávamos recostados à beira do fogo, muito próximos;
e às vezes, enquanto ele se concentrava em suas cartas, eu ficava
olhando-o. Nunca imaginara que pudesse ser tão agradável
olhar o rosto de alguém. Sentia um suave choque quando nossas mãos,
por acaso, se tocavam. Nessas ocasiões, ele corava, e sorria para
mim.
Já estava cabeceando em cima das cartas quando, de repente, o uivo
dos lobos me despertou.
Levantei-me. O Peleteiro também se pôs de pé, num
pulo. O uivo ia ficando mais próximo; era um som quase musical.
No instante seguinte, senti, mais do que ouvi, alguma coisa saltando em
nossa direção.
Meu amigo Olhos Amarelos estava a poucos metros, me olhando.
-- Fique tranquila - disse o Peleteiro baixinho, ao meu ouvido. - Ele
não vai chegar perto. Tem medo da fogueira. E, se chegar... - agachou-se,
e pegou sua espingarda. Apontou o cano para o lobo.
-- Não! - disse eu, assustada. - Não atire. Ele não
é perigoso. Veja só uma coisa.
E, antes que ele pudesse me parar, já estava agachada perto do
lobo. Passei a mão na pelagem macia de Olhos Amarelos. Ele lambeu
minha mão. Olhei para o Peleteiro: estava branco de susto.
-- Está vendo? - eu disse, sorrindo - Viu como é manso?
-- Mas... - gaguejou ele, tonto - como você consegue?
-- Eles sempre me procuram. São bons lobos.
O Peleteiro tentou aproximar-se também, mas Olhos Amarelos grunhiu
e arreganhou os dentes.
-- Bons lobos, pois sim! - resmungou meu companheiro.
-- Ele não te conhece - expliquei, embora visse uma autêntica
animosidade nos olhos do lobo. - Espere só ele vir outras noites...
-- O quê, está me dizendo que ele vai voltar?
-- Eles sempre voltam.
-- Não posso deixar ele rondando o acampamento. Pode roubar nossa
carne.
-- Ele não rouba - afirmei. - Já está satisfeito
essa noite. Está vendo?
Suspendi o maxilar do lobo, e mostrei-lhe os vestígios de sangue.
-- Mas o que um animal desses caçaria por aqui? - perguntou o Peleteiro,
desconfiado. - Não há nada grande o suficiente para ele
comer. A não ser...
Interrompeu a frase no meio, mas eu perguntei:
-- A não ser o quê?
Ele passou a mão pela barba, e articulou uma única palavra:
-- Homens.
Os dias seguintes
foram felizes. Tínhamos comida suficiente e, depois do trabalho,
sentávamos perto da fogueira. Jogávamos cartas até
que os olhos nos doessem, e caíssemos de exaustão, e então
dormíamos perto um do outro, para não sentir frio. Não
foram poucas as vezes que acordei com o seu braço passado pela
minha cintura. E me sentia feliz.
O Peleteiro me contou a história da sua vida. Não que houvesse
muito para contar -- como eu, ele fora criado pelo pai. Desde que se conhecera
por gente, os dois vagavam de uma aldeia a outra com o trenó, o
cão e as peles. Até que o pai ficou velho demais para viajar,
e foi morar numa aldeia, criando cabras. Ele herdara o negócio.
Olhos Amarelos aparecia todas as noites, com seus amigos. O Peleteiro
insistira várias vezes em matá-lo, mas eu ameacei ir embora,
se ele fizesse isso. Ele, então, contentou-se em ficar longe dos
lobos, resmungando, com a arma em punho.
-- Você deve ser bruxa - disse, uma vez. - Só uma bruxa faria
amizade com esses bichos.
Mas o Peleteiro tinha outros problemas para resolver. No dia seguinte,
me anunciou:
-- A lenha está acabando. Vou ter de procurar mais na floresta.
-- Não! - quase gritei.
Ele me olhou sem entender:
-- Qual é o problema?
-- Não quero ficar sozinha. Pode ser perigoso.
-- Perigoso por quê? Você não é amiga dos lobos?
-- Não é dos lobos que tenho medo.
A compreensão acendeu-se no seu olhar. Ele ficou por alguns minutos
calado, pensativo, olhando para o chão. Depois, disse, pausadamente:
-- Escute. Eu preciso ir, e tenho que ir sozinho. Preciso desse trenó
para carregar a lenha. E, por outro lado, se deixar as peles sozinhas,
elas podem ser roubadas. Já aconteceu antes.
Eu estava com medo. Me desabituara à solidão. Era como se
toda a coragem que tivera na primeira semana de caminhada -- quando galgara
sozinha o sopé da montanha -- houvesse desaparecido. E a culpa
era dele.
-- Vou te deixar o cachorro - disse o Peleteiro, pausadamente, como se
estivesse refletindo enquanto falava. - E também isso.
Tirou de dentro do casaco a espingarda, e me entregou.
-- E você? - perguntei. - Como vai se defender?
Ele deu de ombros:
-- A floresta não é perigosa - assegurou. - Faço
uma fogueira e afugento os lobos. Amanhã de manhã estarei
de volta.
E foi assim que ele partiu, assobiando, com o trenó atrás
de si. Escalou um barranco e sumiu da minha vista. Fiquei parada, ruminando
um mau pressentimento.
Para me distrair, trabalhei a tarde inteira, curtindo as peles. À
noite, fiquei perto da fogueira, esperando que os lobos aparecessem. Mas
eles não vieram - e eu me senti mais solitária do que nunca.
Fiquei contente quando o sono chegou. Agora - pensei, cobrindo-me com
o cobertor de peles - é só fechar os olhos e dormir. Amanhã,
quando acordar, o Peleteiro já estará de volta.
Quando abri os olhos, na manhã seguinte, já era bem tarde.
O pálido sol de inverno estava alto. E não havia sinal do
Peleteiro.
Espreguicei-me, e comecei a arrumar as coisas para o almoço. Fiz
comida para dois. Ele devia ter se atrasado - pensei. Logo estaria de
volta.
Esperei.
As horas passaram. Quando o sol, transformado numa bola de fogo, começou
a se esconder por trás do barranco, compreendi que passaria mais
aquela noite sozinha. Minha cabeça estava cheia de visões
terríveis: o Peleteiro atacado por uma matilha de lobos; caído
da montanha; ferido e sangrando até morrer, sem ajuda. Na minha
aflição, eu me acusava de egoísmo: como permitira
que ele saísse sozinho, sem sequer uma espingarda para defender-se?
Percebi então como seria triste voltar à solidão
de antes.
Terminei chorando, enrolada no cobertor de peles. O cachorro veio encostar-se
a mim, lambendo-me o rosto. Abracei-o, pensando nos lobos. Por que teriam
sumido? Um pouco antes de cair no sono, é verdade, pensei ter ouvido
uivos.
O que me acordou, entretanto, foi um ruído bem nítido e
conhecido. O som de um revólver se armando. Clic-clic.
Despertei suando,
apesar do frio. Acordei o cão, e agarrei a espingarda que deixara
ao meu lado. Mas eu estava sozinha no descampado; nada se mexia à
minha volta.
Fora só um sonho; meu velho pesadelo tinha voltado. Dessa vez,
entretanto, parecia ter invadido a realidade, atravessando a tênue
parede que separa nossos sonhos do mundo real. Não consegui dormir
de novo. Passei o resto daquela longa noite de olhos arregalados, assustada.
Quando já começava a clarear, cochilei um pouco. Despertei
com os latidos do cachorro. Ainda era cedo, mas, mesmo assim, levantei,
alimentei a fogueira e comecei a preparar o almoço. Quem sabe o
Peleteiro voltasse hoje?
De repente, avistei-o em cima do barranco. Corri em sua direção
-- mas algo me parou, no caminho.
Em cima da elevação, o Peleteiro estava tão absolutamente
imóvel, tão quieto, que parecia ter se transformado em estátua.
Mesmo à distância, pude ver que me olhava fixamente. Um pensamento
terrível me atingiu. Fiquei olhando para ele também, durante
alguns minutos, sem respirar. Na mão direita, carregava a espingarda
que me dera.
Mas de repente ele se mexeu, sorriu, e eu me senti muito tola.
-- Olá! - disse. - Demorei muito?
Começou a puxar o trenó barranco abaixo. Meu alívio
era tão grande que transformou-se em raiva:
-- Você disse que vinha ontem - respondi, furiosa. - Por que me
deixou aqui esperando, sozinha?
-- Ficou preocupada? - perguntou, num tom casual.
-- Fiquei.
Ele começou a descarregar o trenó. Enquanto colocava a lenha
no chão, ia explicando:
-- Houve uma nevasca terrível na noite passada. Não pude
me mexer de onde estava.
Era uma explicação - disse eu para mim mesma. Uma nevasca,
claro. Uma noite escura... Mas por que ele evitava meus olhos enquanto
falava?
-- Agradeceria se você me desse um pouco de comida - disse. - Estou
faminto.
-- A comida está quase acabando - adverti, enquanto enchia seu
prato.
-- Amanhã vou ver minhas armadilhas - prometeu ele. - Já
deve haver mais caça nelas.
Notei, surpresa comigo mesma, que não conseguia sentar ao seu lado,
enquanto comia. Tinha perdido a fome. Alguma coisa me deixava alerta,
perturbada, com o coração batendo mais forte. De repente,
sem saber porque, pensei em minha casa, no meu pai.
-- Venha sentar comigo - disse ele, depois de comer.
-- Agora não. Preciso arrumar as coisas...
-- Ora, venha cá - disse ele; e, sem mais rodeios, puxou-me para
o seu lado, bruscamente. Fiquei surpresa; mas, mesmo contrafeita, sentia
uma emoção intensa tomando conta de mim. Algo que ficava
entre o medo e... o quê? Nem eu mesma sabia definir.
O cheiro do seu corpo era forte, perturbador. Ele me tomou as mãos,
acariciou-as. Deslizou os seus dedos pelas palmas. Enfiou-os pelas mangas
do meu casaco até atingir os cotovelos, que alisou docemente. E,
de repente, me beijou.
Provei a saliva doce e espessa. Sua língua, passeando pela minha,
acordou em mim uma sensação intensa, desconhecida, mas da
qual eu sempre suspeitara. Meu corpo amoleceu.
-- Espere um minutinho - sussurrou ele. - Já volto.
Esperei, deitada no cobertor que ele estendera perto do fogo. Conservei
os olhos fechados, aturdida e feliz. Sabia que algo de importante, maravilhoso
e secreto ia acontecer. Acontecia a todas as mulheres, um dia. E eu não
tinha medo; estava pronta.
E então, o Peleteiro voltou.
Abri os olhos, gritei e me sentei, num pulo. Ele estava de pé,
com a espingarda apontada para mim. Parecia muito alto e poderoso. Seus
olhos estavam frios, pétreos. Os olhos de um Assassino.
Soube então o que lhe acontecera na floresta.
Encolhi-me no chão, apavorada, suplicando que me poupasse. Ele
nem sequer parecia ouvir. Encostou a arma no meu crânio, e ouvi
aquele som que me perseguira por tantos anos.
Clic-clic.
E então, de súbito, um furacão de pelos e dentes
precipitou-se sob o Peleteiro. Gritei com toda força, mas meus
gritos não encobriram os ruídos da batalha -- uma batalha
curta e feroz. Quando olhei de novo, o Peleteiro estava caído,
com a garganta dilacerada. Ao seu lado, Olhos Amarelos rosnava, ainda
inquieto.
Quando me viu, baixou humildemente a cabeça e começou a
ganir. Abracei-o, sem medo. O Peleteiro tinha razão, afinal: ele
se alimentava de homens.
Mas não de mulheres.
No dia seguinte,
coloquei o cão no trenó, e continuei andando através
da neve. Estou andando até agora, e o cume da montanha fica cada
vez mais próximo. Durante o dia durmo, com a espingarda do Peleteiro
no colo. À noite, ando.
Sei que estou chegando à Cidade das Mulheres.
Ao longe, posso ouvir os uivos dos lobos.
FIM
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