OUVIDO, s. m. Um dos cinco
sentidos, pelo qual se percebem os sons; a orelha; orifício por
onde se comunica fogo às armas ou às peças de artilharia;
ter bom -: facilidade de fixar na memória qualquer música;
duro de -: que não ouve bem; entrar por um - e sair pelo outro:
não merecer atenção, e não ser levado em conta
(conselho, advertência, lição, etc.); tapar os -s:
(fig.) não querer ouvir; fazer-se: moucos: não dar atenção.
Já era madrugada quando finalmente ele resolveu
sair da cama. Aquele chiado que vinha de longe como um zumbido de colméia
o perturbara tanto que o fez sair do conforto das cobertas. Ao levantar-se
vagarosamente, olhou para o lado e viu sua mulher gorda e cansada. Virou
para frente e percebeu a televisão ligada. Trepidando sob o tubo
de imagem como milhões de pequenos insetos, a estática acinzentada
brilhava no escuro do quarto emitindo um som apavorante como em Poltergeist.
Mas ele sabia que Eles não estavam lá. Ele sabia que aquela
mão não iria saltar da tela. Ele sabia que o único
perigo que aquela porcaria representava era se de repente entrasse no
ar um daqueles programas de fim de tarde que sua mulher costumava assistir.
Aquela estática na verdade era para ele como um presente, não
àquela hora da madrugada, mas se ela permanecesse durante todo
o dia seria realmente maravilhoso.
Ainda embolado no edredom, ele levanta e procura por seus óculos.
A dor profunda no joelho esquerdo lhe faz lembrar de quanto tempo havia
passado até que ele chegasse ali, aos 65 anos. E pensar que essa
idade trazia como troféu muitas outras coisas desagradáveis
além daquela artrite dolorosa.
Ele olhou para o copo com água até a metade e para a dentadura
suja, que boiando parcialmente, arrastava a ponta de alguns dentes na
parede de vidro. Pensou até em colocá-la, mas logo em seguida
decidiu que não seria necessário. Só iria levantar,
iria até o fim do quarto e desligaria a televisão.
Deu mais uma olhada na cara gorda de sua mulher e na baba espessa que
escorria pelo queixo, formando um pequeno lago sobre o travesseiro. Sentindo
ainda um pouco daquela dor penetrar na dobradiça enferrujada do
joelho, se levantou finalmente e, apoiando-se na parede do quarto, caminhou
em direção à televisão. Deu uma espiada pela
janela e observou o poste de luz com a lâmpada ainda queimada e
se lembrou do exato momento que havia ligado para a companhia elétrica:
- Sim, senhor; já anotamos seu recado e iremos fazer o reparo!
- dissera o atendente empolgado cinco dias atrás. -Preguiçosos
miseráveis. Não sabia que minha mulher tinha parentes lá
- pensou.
Ele continuou caminhando em direção a televisão,
e mesmo apoiando-se na parede como fazia, aquela era uma tarefa difícil.
Locomover-se na escuridão, tendo apenas como referência aqueles
insetos chamuscantes, era para ele definitivamente uma tarefa difícil.
O som, que vibrava em sua cabeça, ia aumentando com a aproximação
ao aparelho. -Filha da puta... Já falei pra não deixar essa
merda ligada. Ainda mais com esse volume tão alto... E ainda diz
que eu é que sou surdo. - Apoiando-se agora sobre a cortina empoeirada
ele finalmente alcança o interruptor. Pensa rapidamente na possibilidade
de iluminar o quarto e decide não fazê-lo, pois sua mulher
poderia acordar, e aí sim, a noite estaria perdida. Continuou apoiado
sobre a cortina de chenile deslocando-se para o outro lado do quarto,
onde a televisão estava... Parada, imponente, - "Você
é como uma arma na mão de um policial... Anda constantemente
sobre o fio da navalha... E dependendo do seu humor, salva ou condena..."
Acho que li isso num livro. Ou foi na televisão? Sei lá...
- ligada, gastando a porra da sua luz e lhe irritando com aquela merda
barulhenta. Tropeçou num soutien largado no meio do caminho e se
lembrou de que seu outro joelho também doía caso fosse incomodado.
Aquilo era uma merda. A velhice era uma merda. Sentir uma dor daquelas,
por ter tropeçado num soutien? O tipo de coisa que costumava chutar
pra bem longe antes de comer uma mulher. Não... Aquilo era acima
de tudo, decadente. Ajeitou com a ponta do pé o maldito soutien
e o colocou debaixo de uma das quinas da cama. Caminhou por mais dois
ou três passos dolorosos parando em frente àquela caixa iluminada.
Apoiando sua mão sobre o topo da carcaça plástica,
percebeu que ela está quente, muito quente, devendo estar ligada
a horas. - Filha... Essa conta de luz ela vai me ajudar a pagar! - Para
ele, não era justo que sua mulher se divertisse com uma infinidade
de canais e ele apenas com simples prazer de desligar o Show da Estática
no meio da madrugada. Tateou com a ponta dos dedos a lateral do aparelho,
deixando sua mão escorregar por uma camada fina de poeira. Apertou
de início o botão do volume para tentar amenizar um pouco
aquela chiadeira em sua cabeça. Pressionou o pontinho emborrachado,
abaixo do sinal de menos, umas três vezes sem obter êxito,
o que lhe fez optar por usar o que considerava ser a maior invenção
do homem desde a criação da televisão, seu botão
de desligar. Enfiou o dedo numa saliência redonda e profunda, dando-lhe
um imenso prazer ao desligar aquilo, penetrando devagar como numa masturbação
feminina. Seu dedo suado deslizou lento para fora daquele buraco quente
e apertado, fazendo vibrar o que, há muitos anos, vinha sendo usado
apenas como seu escape de urina. - Precisamos nos encontrar mais vezes
benzinho... - A imagem piscou e resumiu-se num único ponto ovulado
no centro da tela, sumindo rapidamente e deixando o quarto na total escuridão.
Porém o chiado de estática permaneceu fritando sua cabeça.
- Será que existe um botão para desligar a imagem e outro
pro som? Não... Nenhum japonês ia ser tão burro assim.
Essa filha-da-puta deve ter deixado outra coisa ligada! - Meio tonto e
ainda com o joelho dolorido, ele virou para trás e percebeu que
no canto esquerdo, mais ao fundo, perto de sua mulher, o rádio-relógio
estava ligado e provavelmente fora de alguma estação. -
Filha-da-puta... Quem ela pensa que eu sou? O Rei da Luz Elétrica?
Ela acha o quê? Que o gato que eu fiz segura isso tudo? Merda...
- Ele deu meia volta e refez o caminho pelo outro lado do quarto. Tropeçou
em mais duas peças de roupa e jurou que se tivesse que ir à
cozinha por qualquer que fosse o motivo, pegaria a faca de carne e acabaria
esfaqueando aquela gorda sem-vergonha.
Terminada a caminhada dolorosa e lenta até a cabeceira da cama,
ele não esperou nem por um segundo. Arrancou a tomada da parede
num puxão rápido e firme, dando apenas para ver que marcavam
03:15 da manhã. Os números vermelhos permaneceram acessos
por alguns segundos e foram esmaecendo na escuridão do quarto.
Mas para sua surpresa e desespero, o chiado não parou. Ele continuou
lá. Continuou em sua cabeça como um enxame de vespas construindo
seu ninho.
Numa ação instintiva ele cutucou as costas da esposa com
a ponta dos dedos tentando acordá-la para saber o quê mais
ela poderia ter deixado ligado. Ela apenas se virou, deu uma pequena ressonada
e, engolindo um pouco de saliva, espalhou um outro pouco sobre a bochecha
amassada.
Perturbado com o barulho e sem saber o que fazer, ele decide ir até
a cozinha. Não para pegar a faca de carne, pelo menos naquele momento.
Tomaria uma água, um ar,qualquer coisa. Ele tinha era que sair
de lá, e encontrar a fonte daquele maldito ruído.
Chegando com muito custo até a porta do quarto, ele a abre e finalmente
consegue sair daquela atmosfera pesada. Olhando através dos óculos
para o fundo do corredor, percebe que uma luz ilumina o que era para estar
escuro. Percebe que ela também deixara a luz do banheiro acesa.
- Não é possível... Essa mulher quer acabar comigo!
Ela quer que tenha um enfarte? Só pode ser! - Ele caminha um pouco
mais rápido pelo corredor e, numa ação impensada,
enfia a mão através de um vão entre a parede e a
porta do banheiro, desliga o interruptor da luz e com uma velocidade ainda
maior, volta a ligá-lo, percebendo que a pia está encharcada
e que a torneira fora deixada aberta, fazendo par com uma escova de dente
suja, largada sobre a bancada de mármore. Seu coração
dispara de raiva. - Desgraçada! Porca filha-da-puta... Pensa que
o meu dinheiro é capim? - A raiva começava a brigar contra
o enxame de vespas por um lugar em sua cabeça. A faca de carne
começava a se tornar uma possibilidade bem real. De repente, o
velocímetro do seu coração ultrapassou os limites,
fazendo-lhe lembrar de que não havia tomado o remédio para
taquicardia àquela noite.
Enchendo sua mão de vontade, e pensando em livrar-se definitivamente
daquele chiado enlouquecedor, girou a torneira enferrujada, sufocando
a saída de água, estrangulando-a de uma vez por todas.
O coração continuava acelerando - Eu sei o porquê...
O remédio... Eu não tomei o remédio. - Ele ainda
estava tomado pela raiva - Eu também sei por quê... Eu odeio
minha mulher... Na verdade eu gostaria de poder matá-la... - O
chiado ainda enlouquecia sua cabeça. - Por que? Alguém me
diga...! POR QUÊ? - O nervosismo se instalou definitivamente, e
como um projétil desgovernado, atingiu-o no fundo do peito. Uma
pontada mais forte e o coração descompassou. Ele ergueu
uma das mãos até o armário à procura do remédio
enquanto a outra apertava firme o peito dolorido. Tateou por entre os
vidros à procura da salvação. Para sua sorte, o vidro
era o mais alto da prateleira. Ele o apanhou, e observou que havia apenas
um comprimido soterrado debaixo de um tufo de algodão, e pensou
rapidamente que, naquele fim-de-semana, se tudo desse certo na Operação:
Não Posso Morrer Assim, eles não iriam fazer uso daquela
bela faca para carnes que, minutos antes, pensara tanto em usar em sua
esposa. Só que antes, o plano era outro. O plano era usá-la
com a carne do churrasco que infelizmente não poderão comprar,
pois se ele sobreviver, terão que usar o dinheiro para comprar
um novo vidro de remédios.
Ele tenta abrir a torneira - Por que é que eu não deixei
essa merda aberta? - e percebe que sua força era realmente movida
por aquela máquina descompassada que ele carregava guardada no
peito e que já não visitava uma oficina fazia muito tempo.
É, talvez estivesse realmente na hora de fazer uma vistoria. Mas
sabe como é... Não levamos um carro para ver o motor até
que tenhamos que trocá-lo por outro depois de bater os pinos. -
Essa merda não vai abrir... Melhor eu pegar água na cozinha...
- Agarrado ao vidro de remédio, ele apaga a luz do banheiro e se
lança do corredor à cozinha.- Barulho desgraçado...
De onde é que está vindo isso? Será que é
o gás que está vazando? - Para sua surpresa, ao entrar na
cozinha, percebe que a Outra não havia deixado o gás escapando,
eliminando sua ultima opção em descobrir a fonte daquele
barulho ainda nessa vida. Ele se arrasta até a bancada da pia e,
pegando um copo de plástico, enche-o com água do filtro.
Abre o vidro de remédio e, ao puxar o algodão, observa o
comprimido escorregar de sua mão, deslizar pela cuba de aço,
e descer pelo ralo numa fração de segundos. O peito dolorido
já não guardava mais um coração. O que se
escondia por detrás das costelas era uma pedra quente que lhe queimava
o peito. Desesperado com aquele barulho, e com o coração
dilacerado, arrasta-se de volta para o quarto e, cambaleando pelo corredor,
chega até a entrada da porta.
Ele sabia que havia chegado sua hora. Ele sabia que daquele ele não
iria escapar, mesmo tendo conseguido fugir dos outros dois no ano passado.
Aquele era especial. Aquele, talvez nem sua pílula da salvação
conseguisse deter. E ainda tinha o barulho - Maldito barulho! - Além
do que, naquela altura, as vespas já haviam se instalado e, para
tirá-las de lá, talvez tivesse que ser um pouco mais jovem.
- Maldito barulho... Maldito... Maldi...ta esposa... - Ele se apóia
no portal, e pensando em acender a luz, desiste novamente. - Melhor deixar
apagada... Tinha muita coisa acesa... Essa conta vai acabar vindo alta
demais... - E naquele instante insólito, naquele segundo que seria
o último segundo de sua vida, ele o gastara com um pensamento medíocre.
O chiado, enlouquecedor, abre uma vala em sua cabeça. Um clique
de escopeta, e outro disparo é dado, apertando-lhe o peito como
numa descarga de desfibrilador - só que, desta vez, estão
usando ele do lado de lá... - fazendo-o desabar para dentro do
quarto como uma velha árvore morta.
Seu corpo desvia da televisão e sua cabeça bate na quina
da cama, arremessando seu aparelho de surdez (Zzzz...Zzzz...Zzzzz...Zz...)
quebrado (Zzzzzzzz...Zzz...Zz...) para bem longe, destruindo aquele ninho
de vespas e o fazendo, enfim, descansar em paz.
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