TÉTRICAS ARANHAS :: Ray Silveira

Narciso nato, sempre fui cuidadoso quanto à aparência. A cabeleira, especialmente, era o centro das atenções. Aparava a cada dez dias, ainda que o cabeleireiro não achasse necessário. Sou assim desde criança. Sofria de insônia, falta de apetite e sentia dores fortíssimas se passasse desse prazo.
Estive num analista. Jamais porei os pés ali outra vez. O médico mandava deitar num sofá e pedia para falar qualquer coisa a cada palavra que pronunciasse. Imediatamente. Sem pensar em nada. Tudo ia muito bem. Estava me sentindo melhor. Cogitava mesmo a idéia de ir ao cabeleireiro apenas de quinze em quinze dias... Quem sabe, mensalmente.
Até que o dia terrível aconteceu. Estávamos praticando livres associações, quando, de repente, pronunciou a palavra “cabelo”. Respondi: “mamãe”. Ficou calado. Subitamente, uma ansiedade intolerável. Poucos minutos depois, insistiu para dizer por que associei “mamãe” à palavra “cabelo”. Foi uma das situações mais dolorosas que aconteceram até hoje. Não queria falar naquilo. Não podia. O analista declarou que a cura dependia disso. Saí quase correndo.
Há alguns meses venho percebendo que o cabelo não cresce como antes. Não é mais possível cortá-lo sequer a cada quinze dias sob pena de ficar sem nenhum. Já sei o que está acontecendo. Tenho certeza que cresce. Só que cresce pra dentro. Sinto uma coceira estranha no interior do crânio. Na verdade, é mais do que uma coceira: é uma irritação insuportável. São os fios de cabelo, com as pontas crescendo invertidas, a arranhar. Aranhas tétricas a tecer teias no tecido cerebral. Ninguém me convence do contrário.
Sinto que isso vai me matar. Os cabelos não caberão na cabeça. O crânio não comportará, por muito tempo, o volume, nem suportará o traumatismo dos pêlos que se acumularão continuamente entre os miolos. Por esse motivo, resolvi contar tudo neste escrito. Jamais falaria dessa coisa para quem quer que fosse. Devia ter entre quatro e cinco anos, mas me lembro de tudo. Numa incerta noite, empurrei, sem querer, a porta do quarto dos meus pais. Faziam uma coisa que nunca tinha visto. Pensei que estivessem brigando. Claro que hoje sei que estavam copulando.
Mas isso não aterrorizou tanto quanto o que vi pouco depois. Meu pai saiu de cima da minha mãe. Então, ela se levantou e se acocorou numa bacia. E lavava aquela pentelheira preta e nojenta. Era como se estivesse tentando extrair uma imundície que tivesse acabado de introduzir. Senti náuseas e corri, em pânico, para o quintal. E vomitei. Desde aquele instante senti pavor de que meus cabelos crescessem demais e ficassem iguais àquela coisa escabrosa. Dias depois, fui ao cinema. Tratava-se de um filme sobre a Revolução Francesa. Cada cabeça que rolava da guilhotina, o carrasco suspendia pelos cabelos. Não pude deixar de associar aquelas cenas hediondas à minha própria cabeça degolada e recoberta com os pêlos pubianos de minha mãe.
Daí a razão de mandar cortar o cabelo de dez em dez dias. Estava certo de que se deixasse crescer além desse tempo, ia ficar igual àquilo. Essa idéia nunca me abandonou. Mesmo quando já era adolescente e, portanto, tinha conhecimento dessas coisas, o medo permaneceu. Acontecia outro fenômeno muito esquisito. Enquanto, sentia esse terror, uma força estranha me impelia a imaginar o meu couro cabeludo igual àquilo que vi entre as pernas de minha mãe. Cheguei a ponto de simular, no computador, a minha imagem assim configurada. Quase enlouqueci ao me ver recoberto por aquela peruca asquerosa. Foi isto que não tive coragem de contar para o analista.

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