Meu mundo preferido está morrendo :: Raimundo Neto

Eu não sou louca. Fui diagnosticada como tal, e posso dizer que ficou estampado na minha cara para o resto da minha vida, como dois vezes dois são quatro, e ficar de quatro é tomar na bunda.
- Seu doutor, eu só acordei achando que podia fazer alguém feliz.
Num dia imenso, impregnado de mim, um dia qualquer, portanto, acendi a ponta do dedo indicador e fiz mágica modesta: qualquer amor simples poderia fazer parte da minha vida, num desenho de luz, que ganhava forma em qualquer parede. Com o mesmo dedo, numa operação inusitada, meu peito, sem derramamentos, sem perder-se, foi colocado na mesa, pura e simplesmente; um bichinho vivo, sem uma palavra a declarar, batendo, batendo, com sua qualidade de bom operador, quatro aberturas, entradas e saídas, vermelho de falta de ação para a vida, deixando de dividir o espaço do peito com alguns infortúnios. Meu primeiro grande ato.
Se é de família meu mal? Que mal? Olhe, seu doutor, mamãe, que vivia cedendo em empréstimos o verde dos olhos para outros olhos menos apreciáveis que o dela - olhos castanhos e pretos, por isso tristes, segundo ela - nunca estranhou meu dedo erguido, brilhando feito estrela inventada de sonho de criança a operar meu animal de carne viva. Ela sempre passava ligeira declarando amor eterno e trancava-se no quarto. Dizia que não queria se comprometer com aquela doidice toda. Meu pai? Era um labrego escroto, que nem sabia apreciar os sonhos que tinha; morreu quando eu era criança ainda ao me ouvir dizer "Pai, tem umas vozes me dizendo que o senhor não vale uma Cibalena vencida!". Desgosto. O senhor, seu doutor, já morreu de desgosto? Nem eu.
- Isso é grave, seu doutor?
- Psicose, filha. Tá no CID-10!
- Doutor, esse Doutor Cid sempre tem certeza das coisas? Não há possibilidade de equívoco?
Equívoco. A palavras mais madura e bonita do vocabulário que me foi apresentada quando eu ainda era pingo de gente. Não pelo que expressa; é só pelo som, pois foram os sons que primeiro amoleceram os meus domínios.
Ah, se meu coração pudesse explicar praquele doutor que não é maluquice inventar a própria vida ou um amor saudável, que eu não tenho medo, de vez ou outra, falar sozinha, fazer coração de papel com anúncios de "Procura-se alguém que brilhe a ponta do dedo indicador direito", ou gritar com os olhos de dentro daquela cela.
- Você ouve vozes?
- Ora, doutor, quem não ouve? Nem sou surda.
- Não, minha filha! Você ouve vozes na sua cabeça, dentro dela, sons que vêm de dentro, quando mais ninguém está por perto, vozes desconhecidas.
- Sim, isso sim. Na verdade, e desculpe minha estupidez, mas isso chamo de pensar as vozes que ouço... acho que penso as vozes.

Doutor, deixa eu te contar. Posso dizer assim "Te contar", né? Afinal, somos tão chegados um do outro, e nem se preocupe que ninguém vai saber o que se passa nessa sua cabecinha que eu leio há cinco anos. Mas, hoje, amanheci querendo ser o melhor sushi do planeta mergulhado num molho-de-amor-shoyu. Você já virou sushi por um dia?. Garanto que é bem melhor que estar morta, porque é assim que eu vivo: como comida animada na boca de quem eu amo. Nenhum problema nisso. Nenhum. Nem parece que sou mulher de comer coisas desse tipo ou amar um homem, não é?
Porém, é a tristeza que nunca mais me deixou gritar; uma tristeza importada, com nome farmacêutico, que fez abrandar tudo enquanto era luz nos meus milhões de poros. Sabe por que? Enfiram algum medicamento no meu rabo, sabia? Fizeram todos aqueles meus sonhos morrerem um pouco; um pouco a cada dia, a cada dose, uma morte por dose. Logo no dia que eu ia ser Hittler vestido de branco e assumir todos os meus erros.
Já fui o sonho das pessoas do mundo todo, menos o de quem eu sempre quis.
Não digo o nome dele, doutor. É que se eu pronunciar acontece mágica na certa: Ele desisti de si e vai viver inteiramente pra mim; e detesto homem fácil. mas era naquele mundo que vivia uma mulher saudável, que perdeu a sanidade quanto teve que engolir medicamentos, humilhações, falta de respeito, e minhas verdades: Tudo sem gostinho de novo carinho e bons tratos.
O agravante dessa situação, portanto, digo-lhe sem receio, pois o diagnóstico me condena desde sempre, é que sinto, com leveza e precisão, os toques de um homem; um toque fino, conformado, de um amor sem escândalos, de cores modestas, que faz uma chama morna vibrar em  cada poro. E pode até parecer exagero - o que me importa, já que é loucura o que me habita! - mas parece que em cada poro sinto uma fagulha de amor, um pontinho de bom sentimento, que se propaga, se alarga, como cheiro bom; se no meu corpo existem um milhão de poros, confirmo ao senhor que acontece, um milhão de vezes, o nascimento de um querer sem explicações. Não é só o toque, a ponta dos dedos em sabor concentrado, que me faz saber que tudo é  provável naquela minha realidade, mas também o som que aquele toque ocasiona, um riscar de lápis solerte em papel virgem, um rangido fino de acordar para a vida, música de letra única, melodia de amor eterno; chega a ser doce, se não fosse maluquice ser tão cinestésica!
  Se me assusta isso tudo? Não. O que me assusta é a sua incompreensão.
Não me julgue pelos risos debochados, doutor; vou fazer o quê, senão rir desse mundo que me foi impedido saborear, soletrar... o senhor já tentou soletrar "Meu mundo preferido está morrendo"?
Sim. Eu ouço vozes; sinto doce e salgado quando meu julgamento tende para "bom" ou "ruim", respectivamente. Já fui homem e mulher, transei comigo mesmo, comigo mesma, emprenhei de meu próprio desejo, fiz brotar dos olhos o repúdio pelos que me condenam, e cuspi seus medicamentos como quem saliva fogo no auge da raiva acumulada: Filha abastada de mim.
Como eu me sinto, hoje? Morta. Mortinha da Silva. Mortinha da Silva Sauro. Dinossaura, eu? Por que não? Milhares de anos aqui explicando pro senhor o que eu sou. Só não me diga que sou verde e que meu rabo é grande. Grande mesmo é a loucura - agora sim eu sei - que nasce da certeza de querer fazer um homem feliz.
Feliz apenas. Eu escandalizo, às vezes, só pra mostrar que há vida no fundo do que resta de mim; e isso não é feio. Ridículo mesmo é não querer ouvir o que tenho pra dizer. Agora, com vossa licença, partirei para a luta pois me aguardam os medicamentos, e o homem da minha vida também me espera, para ser querido e me fazer menos louca, se possível. É isso que o senhor quer ouvir, não é?

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