"Eu tenho fé. Eu tenho fé. Eu teeeeeenho fé".
Alice é minha vizinha e atravessou o corredor que divide nossos
apartamentos numa manhã de quinta-feira ensolarada, pós-quarta-feira
de cinzas, entoando este mantra. Sempre teve um dedo podre para homens,
mas com o atual marido tinha se superado. O telefone havia sido cortado
três vezes nos últimos três meses. O IPVA do carro
estava atrasado, a escola das crianças quem bancava era o avô.
A fé de Alice não tinha como pilar um santo, messias ou
mestre indiano, mas sim uma cartunista uruguaia e uma contemporânea
da época da faculdade.
A cartunista tinha conquistado - um pouco antes dos quarenta e depois
de amargar por anos o nome sujo no Serasa, segurando sozinha a barra de
duas crianças cujos pais recusavam-se a pagar qualquer tipo de
pensão - maridão, sucesso e grana. Muita grana. A colega
de faculdade, Paula, era a coitadinha que só tinha tempo de fazer
as capas dos trabalhos e sempre se safava com a desculpa de ter de cuidar
sozinha um filho que chorava demais durante a noite. Não preciso
dizer que a coitadinha continuou se safando e hoje passa as manhãs
torrando na praia enquanto as babás fazem bolinhos de areia com
os dois pimpolhos de seu casamento com o dono de uma editora.
Alice tinha fé e apesar do tsunami financeiro que atravessava
sua vida há sete anos, ainda não estava prestes a enriquecer
nenhum psicanalista. No elevador, onde nos encontrávamos várias
vezes durante o dia, Alice dava a impressão de ser o tipo de mulher
que nunca perde o controle. Daquelas que nunca pegou sol entre o meio-dia
e as quatro da tarde, estudou em Colégio de Aplicação
e sabe exatamente quem somos, de onde viemos e para onde estamos caminhando.
Mas naquela manhã o mantra não estava surtindo efeito.
Naquela manhã era impossível fazer uma lista de prós
para se convencer de que talvez Tito pudesse se transformar num maridão,
de que talvez no mês que vem as contas fossem pagas no prazo, de
que um dia talvez ela pudesse abandonar o papel de chefe de família/mulher
de médico/dona-de-casa exemplar que havia assumido sabe-se lá
quando, para agradar sabe-se lá quem.
Alice saiu do elevador antes que as portas se fechassem, e minutos depois,
como meu táxi não chegava, pude ver a moça de pele
clara cuidadosamente desleixada enfiando duas malas enormes no porta-malas
do carro. Não cheguei a me despedir de Alice ou das crianças.
Na segunda-feira o porteiro me disse que havia saído do apartamento
com quase nada - as roupas, as crianças, a empregada de mais de
cinco anos.
Encontrei Alice há uma semana na casa de um amigo. Tinha passado
dois anos com as crianças no Canadá, recomeçou a
pintar e estava expondo em uma galeria no centro. Voltou para o Brasil
há seis meses, para ficar mais perto do namorado, que construiu
para ela e as meninas uma casa de sonho na beira da Lagoa e com quem iria
se casar em setembro. Conto esta história para mim mesma várias
vezes por dia, e desde o nosso encontro, passei eu também a entoar
o mantra. "Eu teeeeeenho fé"...
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