A CHAPELEIRA :: Miriam Mermelstein

Foi um tempo assim. As pessoas eram assim, como se pode dizer? Cobertas de carne. Pouco osso à mostra. Dedo era encoberto por anel de grosso quilate, pescoço por renda e tornozelo por meia de seda.
Foi um tempo assim. De bengala com cabo de prata, do quase escravo limpando chaminé. Tempo do rio que secava marcando as estações, tempo de sonho lembrado, de presença vestida, de gramática usada.
Foi um tempo assim. Fatigado, antigo.
Hoje é tempo de osso.
Dona Sura vive entre a bruma e a nuvem. A orelha crescida pela gravidade com o brinco pingente a esticar mais, os óculos de lentes riscadas, a manta xadrez que aquece suas pernas pesadas.
Ela olha o céu pela fresta da janela, come com amigos mudos uma sopa diferente a cada dia, ouve rádio, penteia o cabelo hirsuto com uma escova de cerda natural e tem à disposição a boneca de roupa azul.
Tem dia certo para passear entre as azaléias: entre dez e dez e trinta das manhãs de sol. Tem dia de música, quando algum voluntário entoa antigas canções em iídiche, dança em roda e conta história.
Tem dia de visita. O chão é lavado com creolina, cada cortina é aberta, cada vaso recebe um buquê de flor e cada atendente leva seu paciente ao encontro na sala de leitura, um local agradável com poltronas estofadas e um piano encostado. Os que não querem ou não podem sair de dentro das paredes, o quarto os recebe. Trocam silêncio e interrogação.
D. Sura quase não recebe visita. O filho guarda na lembrança, o amor na fotografia.
Tem, porém, a boneca de vestido azul. Presente do neto, de uma quermesse.
Esfrega todos os dias com sabonete perfumado aquele corpo inerte, canta para ela reclinada na cadeira de balanço e a abraça para poder adormecer.
A atendente flagra vez por outra a senhora admirando a boneca nos seus braços esticados em direção à luz. Como se algum detalhe, algum sinal faltasse para que ela ganhasse vida. Vira, sacode, levanta a roupa azul, desdenha o corpo plástico para logo depois acariciar a cabeça vazia, sorrir e chorar em silêncio. - Coisas de dona Sura.
E o tempo passa assim. O inverno impetuoso traz o medo mais para perto da porta de madeira, da janela que não abre para o jardim, da parede nua. Na enfermaria diagnosticam senhores adoentados e pelo corredor só circula o vento.
Mas nada como o tempo para aquietar tanta ausência. O passaredo e o rádio anunciam, impreterivelmente, a primavera quando tudo parece estar terminando mal. E depois da primavera o verão e os anos, e os anos. Em um dia de visita, dona Sura é reconhecida.
- Não seria ela a grande chapeleira da sociedade? Madame Sura? Chapéus e grinaldas para tantas pessoas, mãos de fada, um gosto tão refinado? A atendente é chamada. Leva a pessoa ao quarto da chapeleira.
Ela foi sua cliente vovó, diz em tom delicado.
Lembra-se, querida?
A velha olha a toalha bordada na cômoda. Quem, porém, naqueles olhos se detivesse, veria a perturbação de um mar, veria barcos com velas infladas lutando para contornar a fúria de ondas expulsando cascos quebradiços. Nos olhos que olham uma toalha.
- Trarei fotografias. Lembra-se de como éramos elegantes? A senhora enfeitava noivas com grinaldas de pérolas e strass, debruava peles em chapéus que viajavam a Europa, entremeava fitas em ráfias italianas. Mais vento. As velas inclinam-se. Dona Sura volta-se para a mulher sem chapéu, sem luva, sem salto agulha. Vê somente uma boca que derrama palavras em tempestade .... linda, elegante, vovó, chapéu, pele, fitas, chapéu....
Ela quer recuperar cada palavra, guardar na velha caixa de costura. Agita os braços, abre e fecha as mãos, vai ajeitando o recolhido. Ainda sentada, desenha um aro no ar e com o polegar e indicador unidos, borda um meio. Em seguida, as duas mãos ajeitam o objeto estimado.
Então se levanta. Bordeja, afasta a mulher da palavra, esbarra na atendente e segue até a cama. Os olhos atracam na boneca de vestido azul.
Encontrado o porto, reencontra o pulso. Respira pelas duas no balanço do seu corpo.
Mas, e a tempestade costurada? Não deve descuidar, pois as palavras capturadas agora têm destino.
Ergue o bordado, mede com os dedos sua circunferência, leva com delicadeza à cabeça vazia. O efeito a agrada e ela sorri.

Voltar Subir