Beija-me :: Marco Aurélio P. Maida

“Quando escrevo não sou homem nem mulher,
nem humano e nem bicho... sou com o mundo
misturado, pulsando
Quando escrevo não tenho papel,
sou papel; linhas e formas, .., sou símbolo e significado.
Quando escrevo não sei o começo e nem o fim;
não sei da verdade e nem da mentira, não sei se é fantasia ou realidade;
é-sendo algo que está no meio ...;
pulsando ...!”

“Desejo olhar-te ainda uma vez... Já foram tantas, não é?”
Ele sabia muito bem que cada olhar denota um novo olhar, ele sabia que não sou mais o mesmo que entrou por aquela porta alguns instantes atrás. Ele sabia muito bem o quanto cada fonema tinha reverberado em mim... palavras encantadas que me desconcertavam, desenraizavam, desiludiam... Não eram apenas palavras, ele todo passava a morar em mim... E ele sabia disso... sabia através do meu olhar.

Não posso negar... o amo!

Lemos Guy de Maupassant durante as férias. Me lembro que o impressionava a forma como a realidade fica pequena nas linhas do Horla. Ele disse que ficou muito entusiasmado com o fato de alguém conseguir traduzir em palavras a intuição que ele já tivera, algo que ele chamava de Marginalização da Realidade.
Ah, como me fascinavam os seus neologismos... mais que os neologismos eu me encantava com o sistema teórico que ele criava em torno do termo para defini-lo e fundar a sua pertinência. Meu olho brilhava quando ele falava, não queria parar de ouvi-lo. Em alguns momentos pensei em beijá-lo... não sei o que iria pensar! Ele sabia que muitas vezes pensei em beijá-lo... sabia através do meu olhar!
“Então... a Marginalização da Realidade ...” me lembro que suas frases sempre iniciavam com “Então ...”; era enfático, denotava certeza e segurança. Gesticulava muito, excessivamente na verdade. Parece que tentava construir a idéia com as mãos. Como uma escultura modelava o seu discurso talvez para torná-lo mais evidente. Um cacoete ...? Não sei ... nunca falamos sobre isso!
E ele continuava inflamado sobre a Marginalização da Realidade “... tem a ver com a impossibilidade de apreensão do todo dada a limitação dos órgãos sensoriais. Assim criamos uma ficção e acreditamos que é a totalidade dos dados objetivos... ledo engano! Existe muito mais do que a ficção que criamos. Para poder viver com segurança colocamos à margem o incompreensível, o inexplicável, o estranho e consideramos fundamental a redução do existente que podemos apreender. Empobrecemos o que está aí. Acreditamos em mundos imaginários. Marginalizamos a totalidade do Real!”
Esfregava as mãos ao final para aquecê-las. Tinha as mãos constantemente frias, dizia que era má circulação e que a mãe era incomodada pelo mesmo fenômeno.
Adorava quando me segredava as suas impressões
Dizia que muitos o olhavam enquanto falava, mas poucos percebiam o que estava além do seu discurso. Nem antes e nem depois, mas além. Preocupava-se com a falta de cuidado com que as pessoas ouviam as outras “... perdemos o melhor que os outros nos podem dar! Perdemos os suspiros entre as palavras, as expressões faciais, as mordidas nos lábios, as movimentações dos supercílios, perdemos o balé do rosto que dança ao som das palavras. Adoro cantar as minhas palavras para as pessoas que bailam com a minha música. Você é um deles!”.
Ele me fazia sentir importante.
Parece que tinha encontrado algo de misterioso junto a esse mistagogo, algo que podíamos contemplar, comungar! Oferecia a minha carne para ser comida por ele... queria sentir-me mastigado, ter meus nervos entre os seus dentes... meu corpo sendo metabolizado pelo dele, pretendia me tornar algo dele ...!

Uma lágrima ...!

O quarto úmido e escuro denunciava a ausência de cuidado. Proposital talvez... um anúncio para aqueles que usavam aquele espaço: “faremos algo de semelhante contigo...!”. Os detalhes ficam escondidos à sombra. Pouca luz deixa margem à imaginação... Poderia jurar ter visto um rato subir a parede. Mas ratos não têm ventosas ...!
A sensação de frio causa desconforto, faz tremer desde dentro, dá até a impressão que eu sou a fonte de onde emana todo o frio do lugar. Ninguém por perto, nenhum barulho. Não sei que horas são e nem mesmo o que as pessoas lá fora estão fazendo. Na verdade estou muito acostumado a ficar aqui, não penso mais no que está para além daqui... essas paredes são agora a totalidade das possibilidades, me propõem uma condição ...
Sei muito bem que me responsabilizam pelo que aconteceu. Mas como eu poderia ...?! Eu o amava e sabia o quanto o nosso relacionamento era intenso.
Mesmo sem nunca tê-lo tocado dei-lhe carinho... sabia o gosto do seu beijo saboreando as suas palavras... o seu rosto de prazer quando tinha uma intuição e corria me contar valia mais que uma gozada! É impróprio pensar que se nunca o toquei por amor o tocaria para fazer-lhe mal.
Me lembro de cada instante daquela noite em seu apartamento!
Ele tinha me dito uma vez que ouvia vozes. Pensei que fosse uma metáfora... algo relativo à coisas que ele pensava e que tomavam uma força tão intensa ao ponto de se materializar em impressão sonora dentro dele.
Ele andava preocupado desde algum tempo em expressar o que pensava acerca da subjetividade. Segundo ele era a única forma de considerar o ser humano enquanto existente. Disse que não pretendia expressar seus argumentos através de textos de cunho acadêmicos, com estrutura sistemática, ABNT... achava um contra-senso defender a sua tese usando uma estrutura objetiva. Tenderia à literatura!
Pensou em um conto... um texto curto, pleno de metáforas e múltiplo em possibilidades de leitura. Disse ainda que a idéia não era sua, mas do seu personagem que lhe soprara ao ouvido.
Eu ria muito cada vez que ele falava que ouvia vozes e conversava com os personagens... ria enquanto estava fora desse quarto...!

Outra lágrima ...!

Seguiu contando que seu personagem estava em um Buraco e tentava encontrar razões para sair de lá e voltar à sua vida. Disse que o personagem o tocava sobremaneira: “... o Buraco é um lugar escuro, e a única luz possível emanava de dentro do personagem que estava lá dentro considerando acerca da sua existência”. Porém ele percebia um problema, “... não encontrava nenhuma razão para sair do Buraco!”
Dito isso ele apagou a luz ...
Ficamos sob a luz branca da luminária da escrivaninha ... ele tinha acabado de trocar a luminária pois a anterior fazia um barulho infernal, semelhante a um enxame de abelhas!
Me olhou como nunca tinha feito até aquele instante...
Segurou com a mão esquerda um porta-retrato que ficava sobre a mesa; ele nunca revelou quem era... mulher, cabelos castanhos, compridos e encaracolados; um sorriso lindo, descontraído, segurava um garfo ...
Com a mão direita pegou um pequeno revólver ...!
“... eu também não consigo encontrar nenhum motivo para sair do meu!”

Cano à boca ...

Músculos tensos ...

Silêncio ...

Disparo ...

Um silêncio que em mim nunca mais foi quebrado ...!

Sinto um peso excessivo em meu colo.
Ao abrir o olho vi, bem iluminado pela luz branca o buraco em sua cabeça ... vermelho, vertia muito sangue, algo ainda pulsava ... lembrei que me disse pensar em nossa relação tendo a gestação como modelo. Dizia ter-me gerado em seu ventre, e depois de um tempo vim à luz. Não sei, talvez a sai carne exposta me fez pensar em um parto!

Sinto muito a sua falta!

Ainda outra lágrima... amparada agora por um dedo que corre até os olhos para enxugar as anteriores.

Sabia que você vol... um beijo longo silenciou-me ...!

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