As Arranhaduras de Fingir :: Macau

A manhã de sexta chegou. Olha só está bagunça na sala: livros espalhados no sofá: um sobre zodíacos, uma biografia de Tennesse Willians, outro de pontos de Do-in, outro de Ginsberg no banheiro. Por onde se anda na casa há livros. O pó envelhecido de dias na estante, na TV. Restos de jornais. Almofadas enfadadas desajeitadas. Tapetes com resquícios de pão. Na pia da cozinha copos de café, pratos engordurados, panelas de molho. Uma mosca em ziguezague passeia querendo lamber. Olha aí, o cheiro da vida de novo: exercícios de viver! Átomos ao redor e envolta. Como se me dissessem: “Você não escapa!”.
Sei que são dias tropeçando. Enchendo o lugar do ir e estar. Nada mais parece me punir. Estou insatisfeita aos quarenta e tanto... (ah, deixa pra lá essa contagem!) Quem dera! Perdi tantas coisas lá e cá. Olhe só esta bagunça na estrada. Os parceiros daqueles e desses dias: Kerouac, Bukowski, Fante, Celine, Burroughs, Bernhard, Virginia Wolf, Lispector... Eles e mais eles fazendo farras, dando dicas, inspiração, expiação, comendo comigo, bebendo comigo, fumando e enchendo as horas, ah, e Tom Castanha. Ele é novo no pedaço. Quase novo devo dizer.  Ficou meu par nesses dias de encontrão querendo escolher caminhos, já no caminho, de outrora e formas e fama na on the road de Muarã. Nossos projetos mirabolantes de poetas e utopias. Nossos atalhos! Ah, parecem olhos demais e boca de menos.
Abro a geladeira e falta tanta coisa de vitaminas. Agrião, couve, beterraba. Nem maçã, mamão, laranja, banana. Esqueço de proteger o organismo. Olhe só! De novo a vida pedindo passagem. Sei que o estoque de
outras coisas está no ponto: café, açúcar, macarrão, arroz e feijão. Ah, e cigarros! Tenho maços suficientes para uma semana e cerveja para três ou quatro dias. Mas e a comida? Ah, deixo de lado isso tudo. Não me pergunte
como fiquei assim. Nem sempre fui. Ao contrário, aos 25 anos eu só fazia uma refeição decente por dia. Pesava 47 kgs. Todos me achavam mignon e esbelta e era. Tinha energia para rodar o mundo, encher uma mochila com
algumas peças de roupas, um vidro de perfume, outro de shampoo, um tênis surrado e lá ia eu toda dona de mim.
Hoje, se penso em sair de casa, mesmo até a esquina, derrapo com meu fantasma de pijama e olheiras, fazendo um dedo em riste, dizendo: “ volte para a sua toca!” Um medo tal de não sei onde me agarra pelos pés, me bota dentro da casca, diz que não vou ser feliz fora de casa, representa uma serpente, um dragão, um monstro, uma fornalha do inferno, diz que não mereço, que sou prisioneira e então, aguardo, aguardo as esperas
cansativas de viver os esperados. Fico eternamente com aquele olhar de espera. Esperar não sabe o quê? Dedo no gatilho de um outro “Malrboro”. Uma boca crispada se enche de cerveja bebendo num copo opaco, a talagada asca, salvadora de minutos voadores.
A tarde vai ganhando os seus troféus: molecada na rua brincando de bola. Gritando “caraio” o tempo todo. São mantras de seus minutos na vida. Outros empinando pipas colorindo o céu límpido. Reparo que cada um tem seus mantras secretos. Uns caras que passam nas ruas imitam hienas. Mulheres tagarelas lamentam as crias choramingas. Casas sem quintais aprisionam seus moradores. Há uma mesmice agora que urge e grita! Um comentar do último capítulo da novela, um diz que diz de futebol, um diz-que-diz das notícias sucos de violência que me arrepiam até a última gota. Cazuza não iria querer estar aqui, nem Janis Joplin, aposto. Ou será que sim?
As ruas estão cheias de buracos estrangulados de chuva outra vez. Os poetas ressentidos dentro das cascas. Mãos untadas de punhetas psicodélicas. O sol rasgando os ventres das putas otárias chapadas de rugas! Visões, tragam a semente de inspiração que semeia no vento nu e cru. O Espírito de Neal Cassidy brincando nas estradas outra vez! O mundo esportivo das taras! Tudo vai morrendo de novo e de novo! Tudo está morrendo e nascendo de novo e denovo! É a chance! A chave da chance!

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